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PT: passado e presente

Lincoln Secco - 2003
 

O Partido dos Trabalhadores cumpriu seu objetivo estratégico. Chegou ao governo federal depois de cerca de 20 anos de atuação política. Em 1987, o famoso V Encontro Nacional definiu que a conquista da presidência da República por Lula era o elemento central da disputa de hegemonia na sociedade brasileira. Naquela época, os conceitos gramscianos estavam entrando no debate interno do PT e a palavra hegemonia circulava muito.

O PT passava pelo seu primeiro aggiornamento. E só quem militou no partido sabe o que significou aquele grande tournant de 1987. Nem os dois congressos do PT ou os demais encontros conseguiram superar as formulações do V Encontro.

Todavia, o II Congresso, feito depois da terceira derrota de Lula à presidência, produziu outro tipo de aggiornamento no PT. Muito diferente. Nos anos 80, os petistas visavam reconstruir o país à sua imagem e semelhança (afinal, é isto que deseja fazer todo grupo que disputa o poder por razões ideológicas). No novo milênio, eles preferem se adaptar ao país em que vivem, mas promovendo pequenas mudanças, que, no futuro, possam servir de base a um novo modelo econômico solidário (para usar a expressão que surgiu para substituir "socialismo").

No V Encontro, o PT declarava usar a legislação para transformar a sociedade e, no limite, aceitava desrespeitá-la sutilmente. No início dos anos 80, afirmava-se que "a luta faz a lei". Assim, a organização interna do partido, baseada em núcleos, diretórios e tendências, procurava subverter a legislação eleitoral, a qual aprisionava os partidos numa camisa de força. Só se podia organizar na base das zonas eleitorais do TRE. O PT, então, fazia dois encontros. Um real, baseado na sua própria dinâmica interna. Outro formal, mas sem validade na disputa interna, que era para cumprir a legislação. Todos aceitavam que o que valia era o estatuto interno "ilegal", mas legítimo.

Os núcleos eram de categorias de trabalhadores, moradia, local de estudo, afinidade religiosa, ideológica, sexual. Havia núcleos de cultura, lazer, esporte e, até, pasmem, de pessoas que queriam ler O Capital, de Karl Marx! O primeiro Congresso do PT, em 1990, embora tenha representado uma guinada à direita no plano ideológico, garantiu maior liberdade de organização pela base. Já o último congresso do partido aboliu essa pluralidade de base. Se, por um lado, instituiu eleições diretas e oficializou as prévias, por outro reconheceu que só os diretórios zonais ou municipais têm poder de eleger delegados. Assim, o PT mimetizou o Estado burguês. Exatamente aquele Estado que desejava transformar. O próprio Lula foi contra essa cassação do poder dos núcleos.

A dinâmica interna do PT, aparentemente bastante complexa, tem uma dupla importância. A primeira, para o próprio país, na medida em que o partido controla o governo. A segunda, para o seu próprio futuro (do PT). Ao desejar reproduzir internamente a natureza do Estado, o PT teve que incluir outras características não ideais, mas históricas, do nosso país. O clientelismo, a corrupção, a politicalha de interesses ainda são limitados no partido e bem distantes das altas taxas de corrupção dos demais partidos. Mas já se fazem valer. Além disso, ao mimetizar o Estado com tinturas de esquerda, o PT escolheu a vertente populista e de redistribuição de renda, mas numa forma muito pior do que a legada por Getúlio Vargas. O partido desejou representar o povo. A sociedade inteira. Assim, em lugar de querer representar uma classe ou aliança de classes, o PT se coloca acima delas para atender àqueles que mais precisam. O lumpemproletariado, os desempregados, os famintos e os "sem nada".

Renda família e bolsa-escola se tornam mais importantes do que emprego e salário. Os próprios trabalhadores assalariados formais são vistos como privilegiados. Os "explorados" seriam os "excluídos". Do ponto de vista marxista, isto é uma barbaridade, pois se sabe que os trabalhadores produtivos de mais altos salários (por exemplo, os da Suécia) são mais explorados do que um trabalhador rural da Guiné.

Mas ninguém liga para teoria na hora de estabelecer políticas públicas, embora devesse ligar para os efeitos dessas políticas. Foi uma minoria de "privilegiados" operários do ABC que obrigou a ditadura militar a ceder a democracia formal. Foi essa mesma minoria que ameaçou, seguidas vezes, paralisar a produção capitalista em seu elo vital. Dela saíram figuras históricas como Lula e Vicentinho. Perder seu apoio e de outras categorias de trabalhadores é tão grave quanto jogá-los no isolamento. Ninguém é contra dar comida a quem tem fome. Mas nenhum socialista imaginaria erguer uma nova sociedade e um novo modo de produção baseando-se na caridade (essa palavra cristã tão bela e desfigurada por políticos profissionais).

Foi assim que o governo de Marta Suplicy em São Paulo acabou com os subsídios que barateavam a tarifa de ônibus e declarou redirecionar os recursos para "programas sociais". Não aceito a mentira de que o dinheiro ia para os donos de empresa. Afinal, isto seria um problema de polícia e não de gestão pública. Ora, os dois maiores programas sociais de um governo municipal socialista ou socialdemocrata deveriam ser transporte público e educação. Um tal governo deveria medir seu sucesso ou fracasso pelo aumento ou não da percentagem do orçamento público destinada a estas áreas.

Fundado nesta mesma lógica, o governo Lula tem priorizado manter as políticas do governo anterior. A sobra de caixa não é usada para melhorar a participação dos salários na renda nacional, mas para programas sociais. O mais imponente deles (em marketing) chama-se "fome zero". Lula tem razões táticas para isso. Sua reforma primeira não é a tributária, mas a da previdência. Tais táticas são compreensíveis. Um governo que pudesse causar temor nos investidores precisava ser mais realista que o rei e manter os juros altos para debelar a inflação que se anunciava. Num futuro próximo, pode mudar de rumo. Creio que a maioria dos militantes do PT e dos membros do governo, que é honesta e tem boas intenções, acredita nisto. Mas há outra razão para este rumo. É uma razão estrutural. Ao considerar os trabalhadores "privilegiados"; ao concertar alianças com o capital financeiro e industrial; ao desejar representar os miseráveis, o governo não precisa mais dos trabalhadores. E, se isso for verdade, ele não vai mudar de rumo. Nem agora nem no futuro.

A sorte de Lula, como presidente, depende de que o movimento social mude a correlação de forças no interior do PT e do governo. Talvez ele mesmo espere por isto. Pois o PT continua sendo o único espaço político onde a esquerda pode fazer a disputa de hegemonia.

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Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP e membro do PT / SP.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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