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Estado nacional: dissolução ou reinvenção?

Milton Lahuerta - 1998
 

Historicamente, criar o Estado nacional, em especial nas situações marcadas pela temática do "atraso", foi sinônimo de ingresso na modernidade ou no mínimo sustentou projetos visando acelerar o tempo para superar a distância que separava os países atrasados dos desenvolvidos. Não deixa de ser verdadeiro também que, para boa parte dos povos, "construir" o Estado foi o meio por excelência de se alcançar a democracia. Entre nós, inclusive, é notório o papel do Estado no impulso à industrialização, na introdução da racionalidade administrativa, na unificação da educação e da cultura, e no reconhecimento de direitos.

Da mesma maneira, pelo menos desde o romantismo alemão, a cultura é considerada como "a totalidade de um modo de vida", como o "espírito de um povo". Contra as idéias iluministas, de uma humanidade em geral e de valores universais, afirmou-se a legitimidade e a importância das identidades particulares. Mas cada povo se constituiria de fato como uma singularidade irredutível na medida em que assegurasse seu status enquanto entidade nacional, o que só se efetivaria plenamente através de sua unificação num Estado soberano.

É por isso que a tradição eurocontinental consagrou um conceito de Estado-nação que, além da dimensão de coerção e de desigualdade, legitimou-se pela reiteração do âmbito comunitário que lhe seria inerente, fixando-se como sinônimo de igualdade, de identidade ou de direito à participação igual. À idéia de "construção do Estado" vincularam-se também várias ideologias emancipatórias e desenvolvimentistas. O próprio keynesianismo contribuiu bastante para essa espécie de consagração do sistema de Estados nacionais como horizonte de vida civilizada.

Entretanto, a montagem dos blocos econômicos e ideológicos, acima das fronteiras nacionais, estabeleceu um novo tipo de competição e causou forte impacto na dinâmica do sistema de Estados. Com a ampliação da demanda por recursos, revelaram-se os limites ecológicos e o fim das fronteiras do globo. Instauraram-se também novos antagonismos, contrapondo as forças que procuram usar recursos finitos para aprofundar o desenvolvimento desigual e as forças que pretendem usá-los para ampliar a igualização democrática.

Como consequência, nos últimos anos, em nível mundial, generalizou-se uma percepção para a qual o Estado-nação não é encarado nem como instrumento para se atingir fins, nem como bem coletivo, nem sequer como mal necessário; é visto como o responsável pelos problemas contemporâneos, mais precisamente como o principal problema contemporâneo. Não à toa, estabeleceu-se um consenso difuso que questiona radicalmente a soberania territorial absoluta, propondo que o Estado nacional sofra um radical processo de desconstrução. O que está em questão, portanto, não é um Estado nacional específico, mas o sistema de Estados nacionais. E, em tais condições, as nações tendem a deixar de ser espaços culturais de coesão social, perdendo, por isso, centralidade, enquanto conceito.

Ou seja, de um lado, manifesta-se a "dimensão externa" da crise de soberania do Estado territorial, através do fenômeno da globalização e da constituição de poderosas entidades supranacionais; de outro, a "dimensão interna" dessa crise, que se expressa pela multiplicação de processos de localização, de regionalização, de particularização, em todos os níveis e quadrantes do globo. A emergência da diferença cultural e da heterogeneidade social, sem dúvida, contêm um sentido democrático, mas carrega também um sério risco: o de se estabelecer uma sociedade de guetos incomunicáveis entre si.

Esse cenário nos coloca diante de indagações absolutamente inquietantes: com a perda da capacidade vinculatória do Estado nacional e com a prevalência da diferença sobre a identidade, em que lugar pensar o problema do monopólio legítimo da força? Sem o Estado nacional como horizonte legítimo de identificação e de expressão de um poder soberano e de uma cultura particular, que instância universalizadora poderá ser mobilizada para impedir que os particularismos reinstaurem a imagem sombria do "estado de natureza" hobbesiano? Antes de saudar o fim do Estado-nação, é bom pensar nisso.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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