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Um poeta no mundo do espanto

Ferreira Gullar - Outubro 2005
 

Perguntou-se aqui a Ferreira Gullar quando descobriu que era poeta e ele respondeu: nasci poeta. E quando foi que se tornou crítico de arte? Gullar respondeu: nasci crítico de arte. Decerto este ferreiro das palavras também nasceu já irrequieto e questionador, duas características que lhe marcaram na vida e nortearam suas obras. Ao vivo, diante de nós, em sua sala coberta de quadros e livros, continua irrequieto, movendo-se o tempo todo. Suas mãos ossudas se agitam no ar, batem na mesa, formam gestos, e seus pensamentos contestam certezas. A intensa energia que consome à sua volta contribui para a sua lendária magreza. A equipe do Caderno B – Luís Pimentel, Ricky, Zezé Sack e Antonia Leite Barbosa – e os escritores convidados Ivan Alves e Dermeval Netto participam desta entrevista a propósito dos 75 anos de Gullar. É uma manhã de outubro. O mesmo outubro em que, há 30 anos, um poeta na solidão do exílio e longe dos cheiros de sua terra escreve, como se fosse a última coisa que escreveria: "O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra / a cidade está no homem / que está em outra cidade...". Molha o bico da pena no lamaçal das lembranças e daí brota um Poema sujo, considerado o melhor da poesia brasileira nas últimas décadas. E escreve: "A cidade está no homem / quase como a árvore voa / no pássaro que a deixa...".

Ricky Goodwin

Ivan Alves - O que o motivou a escrever o poema longo e caudaloso que você chamou de Poema sujo? Achou que iria desaparecer no caos que era a Argentina em 75?

Ferreira Gullar - Escrevi o poema como se fosse a última coisa que eu escreveria. Escrevi por uma necessidade de resgatar minha vida em São Luís, o mundo da infância e da família, dos acontecimentos do bairro, da cidade numa ilha. Eu já havia tentado escrever duas vezes uma novela com essa história.

Ricky Goodwin - Desta vez, creio que a distância o aproximou e a história fluiu.

Gullar - Concordo que se eu não estivesse nessas circunstâncias o poema não teria sido escrito. Um amigo argentino, também poeta, falou que o poema era minha tentativa de recuperar o meu país. Eu tinha perdido a terra, o chão. Mas nada é fatal. Nenhuma obra de arte tem a fatalidade de existir. A divina comédia poderia nem ter sido escrita. Há fatores circunstanciais, de caráter pessoal, conjuntural, históricos, que contribuem para que as coisas surjam. Aquele momento na Argentina era muito complicado. A tensão era muito grande entre as esquerdas e o governo da Isabelita - os Montoneros faziam as primeiras iniciativas de luta armada -, tanto que logo depois veio o golpe. A Argentina era a única democracia que sobrara. Havia ditaduras no Chile, no Paraguai, na Bolívia, no Brasil, então havia refugiados de todos os países ali com uma imensa repressão em cima. Havia um intercâmbio de informação entre as polícias desses países. Sumia gente. Meu passaporte venceu e, quando fui tirar um novo na embaixada brasileira, me disseram que estava apreendido. Quando eu disse que faria um escândalo, me devolveram o passaporte, só que em todas as páginas havia um carimbo gigantesco escrito ''Cancelado''.

Luís Pimentel - Você se encontrou com Vinicius e passou o poema para que ele trouxesse ao Brasil?

Gullar - Não. Vinicius costumava fazer shows na Argentina e toda vez que ia a Buenos Aires a gente se encontrava. Dessa vez, fomos jantar na casa do Boal, que comentou: ''Gullar escreveu um poema longo, mas não quer mostrar a ninguém''. Eu não tinha nem cópia, só o original de 70 páginas. Não pensava em publicar. Vinicius me convenceu a fazer uma leitura para umas 20 pessoas. De volta ao Brasil, reuniu os amigos para mostrar uma fita que gravou dessa leitura, e entre essas pessoas estava Ênio Silveira, que procurou Thereza Aragão, minha mulher, interessado em editar o poema. Ela foi a Buenos Aires e trouxe uma cópia. O livro foi editado em junho de 76. A noite de autógrafos foi feita sem a minha presença. Antes, em fita mesmo, várias pessoas fizeram cópias, reuniram pessoas para ouvir e assim foi sendo divulgado. Eu era amigo de todos eles e estava exilado, muitos não sabiam se eu tinha sumido ou não, e ouviam esse poema na minha própria voz... Publicado, criou uma repercussão maior ainda.

Pimentel - Quando você veio para o Rio, em 1951, já era um escritor conhecido em São Luis, né?

Gullar - Tinha ganhado o Concurso Nacional de Poesia promovido pelo Jornal de Letras, dos irmãos Condé, e tinha publicado o livro Um pouco acima do chão. Quando vim para o Rio, Condé me arrumou um emprego na revista do Instituto de Aposentadoria dos Comerciários, que ele dirigia. Em 53 terminei de escrever A luta corporal e entrei em crise por ter implodido a linguagem. Escrevi então um conto louco, publicado na revista Japa, chamado Osíris come flores. Heráclito Salles gostou e me chamou para fazer revisão de originais em O Cruzeiro, o que me permitiu ter acesso a uma gráfica para publicar A luta corporal, que banquei inteiramente. Era um livro anárquico, que desestruturava a forma poética, a sua paginação era muito complicada. Como eu era rigorosamente exigente quanto à obediência à minha distribuição de palavras, mandei de volta todas as revisões do livro. O chefe da oficina ficou maluco!

Ricky - Sua luta corporal foi com o tipógrafo!

Gullar - Em função disso terminei demitido. Millôr, sabendo disso, arrumou com Otto Lara Resende, diretor da revista, uma vaga de revisor para mim na Manchete.

Dermeval Netto - Como estava na sua cabeça essa história de ser jornalista ou poeta? Qual era seu grande projeto de vida?

Gullar - Nunca tive projeto de vida. Não pensava nisso. Também nunca vi conflito entre ser jornalista e poeta. Eu não queria ser um poeta: eu era um poeta. Gente como Maluf nasce ladrão. Eu nasci poeta. Não houve plano nenhum. O problema é que você nasce poeta mas tem que aprender a fazer.

Ricky - Você versejava quando criança?

Gullar - Não... nunca fui precoce. Evidentemente, eu tinha um certo interesse. Goya era um garoto que saía à rua com seu irmão para vender coisas e no meio do caminho tinha uma laje. Ele já vinha com um pedaço de carvão no bolso e quando chegava na laje parava para desenhar. Seu irmão ficava bestificado. O cara já tinha o dom. Não é nada mágico nem divino. Talvez seja genético. E a pessoa pode ou não realizar esse dom.

Dermeval - Mas no seu caso o dom foi multifacetado: é escultor, crítico de arte, jornalista, pintor, dramaturgo, narrador e poeta. Disso tudo, você prefere ser poeta?

Gullar - Eu não prefiro: eu sou poeta. As outras coisas, embora eu as faça com responsabilidade, não têm na minha vida o peso que tem a poesia.

Dermeval - Na hora de fazer poesia você tem que se afastar disso tudo?

Gullar - Não tenho que me preocupar com isso, a poesia se manifesta independente de qualquer outra coisa. ''A poesia quando chega/ não respeita pai nem mãe''.

Antonia Leite Barbosa - Se a poesia desse o sustento necessário você faria só isso?

Gullar - Não. Escrevo pouco. A poesia nasce do espanto. O mundo é absolutamente incompreensível, então inventamos uma série de compreensões e vivemos dentro dessa cadeia de explicações. Uma cadeia lógica, que tem a ver com a realidade, que não é gratuita ou absurda, mas que não esgota a realidade. Quando esse tecido conceitual se rompe, você vê que nem tudo está explicado.

Pimentel - Está explicado mas não compreendido, e a poesia é uma maneira de compreender.

Gullar - Nem está explicado, a realidade é maior que qualquer explicação, mesmo porque a realidade muda. Estou na casa de Claudia (Claudia Ahimsa, poetisa, sua companheira) e saio de lá à noite. No jardim do prédio tem um jasmineiro desandando perfume. Entro no barato do jasmim. Eu não estava esperando por aquilo. Por que aquele cheiro de jasmim naquele dia, naquela hora, causou em mim, que estou cansado de sentir cheiro de jasmim, um espanto? Não sei. Naquele momento, foi uma coisa inesperada e reveladora. Caí na besteira de pegar um chumaço das flores e aspirei com força. Aí percebi que aquele perfume agradável era uma coisa selvagem. Não era o aroma doce com que eu estava acostumado. Tudo isso me levou para um mundo que não tem explicação e que tampouco quero explicar. Não quero saber os componentes químicos que fazem com que o perfume exista e que eu perceba sua existência. Vivo uma coisa extraordinária que quero contar para as pessoas. A poesia é uma história do mundo que não está registrada, são pequenos momentos da história humana. Então eu conto aquilo. O pior é que é impossível contar. Como traduzir perfume em palavras? O poema não é a tradução do perfume, mas a criação de um artefato que pretende transmitir para outro a experiência que senti ali. Trata-se de uma grande confusão. A verdade da poesia é o que comove, não o que se comprova.

Dermeval - Você tem uma exigência de rigor formal com a palavra. Como conjuga isso com a emoção de fazer o poema comover?

Gullar - Não tenho uma técnica a priori. Sou como um jogador de futebol, minha técnica está incorporada ao meu corpo. A bola vem, ou por alto, ou por baixo, ou da direita, ou da esquerda, o jogador sabe se tem que pegar no peito ou na coxa.

Ivan - É interessante essa comparação, porque o seu pai foi jogador de futebol.

Gullar - Tenho uma experiência interior da linguagem e do fazer que me permite inventar na hora. Não posso pensar: ''Vou fazer um poema''. Se programo, vai sair ruim. Dependo do fator de desequilíbrio, da ruptura da realidade conceitual para escrever. Às vezes é uma coisa insignificante. Sou muito suscetível aos cheiros. O mundo é muito misterioso.

Ivan - Gullar, como você se tornou um militante político? Você se ligou inclusive às Ligas Camponesas.

Gullar - Como sempre, aconteceu sem nenhum plano. Depois de A luta corporal participei do movimento da poesia concreta, uma experiência extremada de vanguarda, mas a uma certa altura dei por esgotada minha experiência nesse terreno. Não é que negasse, nem hoje eu nego, foi legítima, mas atendia a determinadas circunstâncias da vida brasileira e seu grau de radicalidade terminou num impasse. Eu estava me transformando num poeta incompreensível, enigmático. Meu último poema ali foi um poema enterrado no fundo do chão, com uma palavra só, e isso me deixou assustado: ''O que estou dizendo?''.

Ricky - Como a pessoa tão preocupada com a sensação dos cheiros entrou nesse rigor formal?

Gullar - Eu tinha desintegrado a linguagem, o discurso, e meus poemas então tinham que lidar com a organização espacial das palavras. Mas, eliminando o discurso, elimina-se a palavra. A linguagem é discurso.

Pimentel - Você ficou então só na busca estética.

Gullar - Na busca de palavras isoladas, abstratas.

Dermeval - E o que era um meio para você virou um fim. Mas, num momento de raiva, você acusou os concretistas de ''stalinistas da literatura''.

Gullar - É verdade. Rompi com os concretistas porque estávamos num limite de radicalidade com relação à linguagem e ainda levaram isso a um ponto pior, criando normas, ditando como a poesia teria que ser feita.

Ivan - Poesia com manual de instrução.

Gullar - Eu já discordava disso e foram ainda além: a poesia teria que ser criada segundo fórmulas matemáticas. Rompi com eles e continuei aprofundando a experiência no terreno neoconcreto, muito mais radical do que eles, mas não no sentido de racionalizar as coisas, e sim no da aventura. O movimento neoconcreto deu Lygia Clark e Hélio Oiticica.

Dermeval - A militância política re-aproximou sua poesia do discurso?

Gullar - Quando fui convidado pelo Vianinha para participar do CPC da UNE, estava rompido com a poesia neoconcreta e não tinha mais um caminho. O Brasil fervia com a luta antiimperialista e as reivindicações pela reforma agrária e me envolvi com essa luta. Vi então que eu conhecia pouco o Brasil, que eu fazia uma poesia deslocada, e passei a ler sobre o país, me interessando sobre as questões políticas de maneira conseqüente. Participando do CPC, refleti sobre cultura popular. Como conseqüência disso, recuperei o discurso, voltando para a forma mais rudimentar, fazendo poesia com linguagem de cordel. É uma poesia narrativa, que não pretende colocar questões mais complexas de linguagem.

Dermeval - Foi nesse momento, com Dias Gomes e Vianinha, que você entrou para o teatro?

Gullar - Uma das atividades do CPC era fazer teatro político de rua, como Auto do cassetete, Auto da reforma agrária, Auto do Tio Sam. Quando veio o golpe criamos o Grupo Opinião, onde me aproximei do teatro de maneira mais conseqüente, escrevendo com Vianinha Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Com Armando Costa e Antonio Carlos Fontoura escrevi A saída! Onde fica a saída?. Com Dias Gomes escrevi Dr. Getúlio, sua vida e sua glória. Quando voltei do exílio escrevi Um rubi no umbigo.

Ivan - Sua entrada para o Partido Comunista influenciou seu trabalho literário?

Gullar - Evidentemente. O fator decisivo não foi nem o CPC, foi ter lido em Brasília um livro de um filósofo católico chamado Jean Yves: La pensée de Karl Marx. Na primeira parte expõe a filosofia de Karl Marx para na segunda parte afirmar que nenhum católico pode ser marxista. Como eu não era católico, fiquei só com a primeira parte e virei marxista. Mas eu não queria entrar para o partido, dada a minha natureza indagadora e polêmica. Entrei, no dia do golpe, por uma razão lógica: tocaram fogo na UNE e toda a atividade legal exercida pela esquerda acabou. O que eu ia fazer? Não iria aceitar a ditadura. Lutaria sozinho? Restou um partido clandestino. Também havia o lado de solidariedade porque as perseguições começaram imediatamente. Convivia com as pessoas enquanto estavam bem, quando começa o cacete me arranco? Não seria correto.

Pimentel - Você ficou nessa luta quantos anos?

Gullar - Até ficar clandestino. Minha clandestinidade foi de setembro de 70 a agosto de 71, quando vi que era insustentável e saí do Brasil.

Ricky - Você conseguia escrever na clandestinidade?

Gullar - Não. A maior parte deste tempo fiquei num quarto da casa do Léo Vitor, um amigo que nem era de esquerda. Passava os dias trancado dentro de um quarto. Pedi a ele um caderno de desenho e caneta líquida e fiquei meses desenhando o mesmo quarto, ora de um ângulo, ora de outro. Passei a desenhar só o contorno das coisas, cada objeto tendo o contorno com uma cor. Até que Otto Maria Carpeaux, que estava fazendo a Enciclopédia Miradouro, me encomendou uma série de verbetes sobre artes.

Ivan - Você ficou um longo período na União Soviética, né?

Gullar - Saí de ônibus para Porto Alegre, depois para uma cidade do interior onde atravessei a fronteira uruguaia, fui a Montevidéu, de lá para Buenos Aires, onde peguei um avião para Paris. Uns dias depois fui para a União Soviética, onde fiquei de setembro de 71 a maio de 73. De lá fui para o Chile e, quando houve o golpe, fui para a Argentina e de lá para o Peru, mas não tinha trabalho e voltei para Buenos Aires. Ali, ensinei português numa faculdade e colaborei para jornais como O Pasquim. Na União Soviética não trabalhei, fui para fazer um curso. Sou bacharel em subversão. É o único título universitário que eu tenho.

Ricky - Por que você decidiu voltar para o Brasil, em 77? Não agüentava mais? Ou era o momento oportuno?

Gullar - A publicação do Poema sujo criou condições melhores para eu voltar. A minha presença como poeta tornou-se forte no país e começou a haver um zum-zum-zum de que eu tinha que voltar. Eu não agüentava mais o exílio, que foi um sofrimento permanente. Meu filho estava doente, internado, e eu longe dele. A Argentina tinha virado uma ditadura. Então decidi voltar, mas tomei a providência de mandar avisar a OAB, a ABI, o ministro da Justiça e o comandante do I Exército: ''O poeta Ferreira Gullar, subversivo, perseguido, foragido, está retornando ao Brasil''. Quando cheguei no Galeão, não puderam me prender porque tudo quanto é intelectual estava me esperando ali. Fui preso no dia seguinte, mas tiveram que me soltar porque a minha volta tinha sido pública. Me interrogaram sem parar durante 72 horas, sem comer, sem dormir, sem descansar, mas não puderam me torturar nem dar sumiço.

Ricky - Depois de sete anos de exílio, como você sentiu o país, que tinha virado um deserto cultural?

Gullar - Cheguei tão atordoado pelos meus problemas, com filho doente, a família numa situação precária... um negócio muito brabo... eu queria trabalhar e tratar de dar uma tranqüilidade à minha família, depois de tantos anos.

Dermeval - Gullar, como surgiu o crítico de arte? É interessante que você como crítico de arte não perde a questão política. Vanguarda e subdesenvolvimento foi muito lido pela minha geração.

Gullar - Eu nasci crítico de arte também. Antes de querer ser poeta eu queria ser pintor. Cheguei a fazer quadros e me juntei a pintores dos quais me tornei amigo, embora não entendesse de nada. Em São Luís não existiam livros sobre arte. Já tinha essa vocação da paixão pela arte, que para mim é maior que a paixão pela poesia, leio muito mais sobre arte. Não penso sobre poesia, poesia eu faço. Fazer é uma forma de refletir, mas na maior parte do tempo penso sobre a arte.

Dermeval - E seu contato com Mário Pedrosa?

Gullar - Mário Pedrosa foi um mestre para mim, com ele aprendi muito, um homem inteligente e um ser humano generoso. Lucy Teixeira me levou à casa dele assim que cheguei ao Rio, em 51, passei a conversar com ele, ler as coisas de sua biblioteca, e isso me abriu uma perspectiva nova sobre a arte contemporânea. Mas desenvolvi um pensamento próprio com relação à arte. Aprendo as coisas, mas quando vou refletir é como se não soubesse. Começo do zero. Meu pensamento pode não valer nada, mas é meu. Claro, deriva do conhecimento das coisas que li, dos grandes críticos, dos historiadores, mas na hora de analisar a arte contemporânea... não que eu tivesse a preocupação de ser original, tanto que meu livro se chama Muitas vozes. Não sou um poeta que fala com sua única voz mas tenho um traço próprio. A teoria do não-objeto - que hoje é um documento da arte contemporânea, traduzido em várias línguas - nasceu de uma reflexão minha, com uma maneira nova de encarar as questões.

Ricky - Sua natureza irrequieta e contestadora, ao manifestar-se como crítico de arte, despertou várias polêmicas e conseguiu vários inimigos. A mais célebre foi sua pendenga com a arte das instalações.

Antonia - Principalmente com o livro Argumentação contra a morte da arte.

Gullar - Minha visão da arte contemporânea está em conflito com quase todos os críticos brasileiros e internacionais. Então, evidentemente, devo estar errado. Apesar disso, continuo pensando o mesmo. Tenho uma explicação para que a arte tenha chegado a isso e a argumentação para dizer que ela seja um fracasso. Não é que seja uma fraude, mas é a conseqüência de um desastre, de um processo de autofagia que deu no que deu. Ninguém vai me convencer que botar cocô dentro de uma lata e assinar em cima tenha a ver com arte. Pegam uma série de plásticos, metem uns canos de metal, põem numa sala e tal. É nada, não tem conteúdo, são experiências.

Zezé Sack - E Duchamp?

Gullar - Duchamp era uma pessoa rebelde, anarquista e niilista. Tem razão de ser. Quando assina em um urinol e manda para a Exposição dos Independentes, em 1917, está contestando a arte artesanal. Fernand Léger conta a visita que ele, Brancusi e Duchamp fizeram a uma exposição da Marinha em 1905. Lá, diante de uma hélice de navio - uma forma bonita, curiosa, original, mas funcional - Duchamp ficou parado, maravilhado. A origem do ready-made está ali: ''A indústria faz obras anônimas, que se eu assinasse e colocasse num museu seriam obras de arte''.

Antonia - O que faz a arte é o contexto.

Gullar - Numa idade industrial, com as novas técnicas, a arte artesanal entra em crise e passa por um descrédito. Isto está na origem da atitude do Duchamp. Sucede que ele não era um Picasso, que vivia no ateliê 24 horas por dia. Pintar, fazer cerâmica e gravuras era a sua própria vida, Picasso era um criador incessante. Duchamp fez algumas boutades e ficou 20 anos jogando xadrez. Sua arte é pobre. Sem dúvida, é talentoso, mas há um lado falso.

Dermeval - Nos anos 80 você foi parar na TV Globo, uma emissora criticada por ser o grande veículo da ditadura, junto com outros monstros sagrados da esquerda brasileira, como Dias Gomes. Como foi essa experiência?

Gullar - Quando Dias entrou na Globo houve uma grande discussão, mas quando eu entrei a situação era outra. O inimigo já não era a Globo, era a ditadura mesmo. Inclusive o jornal O Globo deu emprego para Franklin de Oliveira e outros, acabando por ser uma grande frente contra a ditadura. Fui chamado pelo Dias para ajudar na teledramaturgia. Começamos pela novela Sinal de alerta. Com Paulo José fiz uma série de adaptações de peças para o programa Aplauso. Escrevi o especial Insensato coração. Trabalhei lá durante 20 anos.

Ivan - Você é poeta, ensaísta, cronista, crítico de arte, pintor, jornalista, homem de televisão. Bom, também tem uma cabeça política impressionante. Depois do golpe de 64, foi procurado por Mário Alves para ingressar na luta armada, e teria dito: ''Ô, Mário, não vou brigar no terreno onde o inimigo é forte''. A ditadura acabou caindo pela política, e não pela luta armada. Como você, com essa cabeça política, vê o momento atual?

Gullar - É, jamais acreditei que Lula fosse fazer um grande governo, não por ele ser do PT, mas pelas coisas que dizia. Ele e seu partido foram contra a Lei de Responsabilidade Fiscal e contra o Fundef, coisas fundamentais para o interesse do país. Cansei de ver na televisão professorinhas do interior ganhando R$ 15. Criou-se o Fundef com a obrigatoriedade de pagar R$ 300 para todas as professoras, com condução para levar as crianças na escola. Como é que pode ser contra isso? Foram contra todos os governos, numa atitude infantil, de um sectarismo primário. Agora, que fosse ser esse escândalo de corrupção, jamais imaginei. Quando criticavam o PT eu dizia: ''É o único que tem caráter de partido, com o idealismo de uma visão ética''. O que aconteceu é de fato espantoso e não há o que justifique. Agora, o PT tinha que ter mesmo esse destino porque era uma coisa equivocada, nasceu de um líder operário carismático sem ideologia, aliado a radicais intelectuais de esquerda da guerrilha. Lula é a junção do radicalismo com o oportunismo. Ele mesmo sempre foi oportunista. Outro dia disse: ''Nunca fui de esquerda''. Como presidente da República, continua a ser o mesmo cara pragmático e esperto. O que ele está querendo? Salvar o seu governo. Falou para os colegas: ''Ninguém é ladrão, mas tratem de renunciar que não vou defender ninguém''.

Antonia - Por que o lugar que a poesia ocupa na vida das pessoas não é mais o mesmo?

Gullar - Nunca foi. Numa sociedade massificada como essa, não se pode querer que a poesia tenha o mesmo peso de épocas anteriores, mas também a verdadeira poesia nunca foi de ter milhões de leitores. O que importa não é a quantidade. A maioria sempre pensou em se divertir; para refletir são poucos. Noventa por cento das pessoas que iam à capela onde está A crucificação, de Piero della Francesca, viam uma cena de crucificação, poucos viam a arte ali. As coisas de que fala a poesia não são evidentes para muita gente. A poesia coloca questões desagradáveis. Mas ela influi no núcleo formador da mentalidade da sociedade. O ser humano nasce na natureza, mas é cultura, é conhecimento, o que o distingue é ser cultural, ser criador de seu mundo.

Ivan - Macaco não constrói o Château de Versailles.

Gullar - E sem o valor chamado justiça não existe a comunidade humana.

Dermeval - A poesia tem que estar de mãos dadas com esse sentimento de humanidade.

Gullar - Sim, assim como a música, a ciência e a religião. Eu reconheço que a religião seja importante na sociedade, é o primeiro criador dos valores do ser humano como ser humano. Costumo dizer: ''O homem inventou Deus para que este o criasse''.

 



Fonte: Jornal do Brasil, 30 out. 2005.

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