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Sobre o retorno do velho barbudo

José Eli da Veiga - Novembro 2005
 

São tantas as notícias importantes divulgadas pelos jornais diários que nada poderia ser mais quimérico do que supor que seus leitores as assimilem ou simplesmente as armazenem. Ao mesmo tempo, não há nada de grave nessa constatação, pois também são inúmeras as que perdem qualquer importância em poucos dias, ou semanas. Daí a necessidade de que se esteja atento para o resgate das poucas pérolas que, de vez em quando, surgem em algumas matérias.

É o caso da bem-vinda entrevista do historiador Fernando Novais, publicada domingo, dia 20/11, no caderno "Mais!" do jornal Folha de S. Paulo. Sobretudo, por ter destacado uma profecia que vem sendo sistematicamente subestimada por grande parte da intelligentsia brasileira: a volta de Marx. "Quanto mais o capitalismo estiver implantado em todo o mundo, maior deve ser a volta de Marx. As pessoas estão enterrando Marx de forma apressada, mas seu retorno terá repercussões na história", disse Novais.

Evidentemente, nada pode ser mais discutível do que esse emprego do verbo "implantar" quando se evoca a globalização da sociedade burguesa. Mas é muito comum que deslizes semânticos desse tipo ocorram em entrevistas, mesmo quando são concedidas por experientes comunicadores. O que realmente interessa, portanto, é seu conteúdo: qual poderá ser o sentido desse retorno de Marx após tão significativo período de imersão? Um período não apenas de débâcle do socialismo (que para alguns seria apenas do "real", e não do imaginário), mas também de fortalecimento objetivo e subjetivo do liberalismo.

Pelo menos duas teses podem ser avançadas sobre essa volta. A primeira é que tal movimento dependerá de clara separação entre o Marx cientista e o Marx utópico. A segunda é que esse retorno não significará um renascimento de qualquer das vertentes marxistas que proliferaram durante o século passado. Duas teses brilhantemente expostas em livros que, para variar, permanecem inéditos em língua portuguesa. A primeira, por Guido Carandini em Un altro Marx. Lo scienziato liberato dall'utopia (Roma: Laterza, 2005). E a segunda por Étienne Balibar em La philosophie de Marx (Paris: La Découverte, 1993 e 2001).

A abertura do livro de Carandini é um espirituoso diálogo fictício com Marx ressuscitado, no qual este se defende da acusação de que no fundo teria sido apenas o mais influente agitador revolucionário dos tempos modernos. Empenha-se em persuadir seu interlocutor de que o tribunal da história optou por julgá-lo somente pelo que escreveu e fez com o boné de utopista revolucionário, e não pelo que estudou e publicou com o boné de cientista social. Não se esquiva, portanto, em reconhecer que pode ter sido vitimado por aquilo que a psicologia depois passou a chamar de dupla personalidade. Por um lado, anunciava uma eminente crise final do sistema capitalista, a revolução proletária e o advento do comunismo. Por outro, sustentava que seria necessário o desenvolvimento universal do capital para que coisas do gênero se tornassem possíveis. Afirmava que o sistema capitalista deveria se estender por todo o mundo, e assim promover imenso desenvolvimento, condição indispensável ao nascimento de uma forma superior de sociedade. Por isso, não nega que foram posições incoerentes, já que a primeira queria o comunismo com toda a urgência, enquanto a segunda o projetava para um futuro bem distante.

Com certeza será muito difícil proceder a essa separação entre as duas "personalidades" de Marx. Há mesmo quem afirme que tal projeto está fadado ao fracasso, pois a mistura de ciência com utopia faria parte do próprio genoma de todos os seus escritos. Todavia, tal ceticismo parece estar sendo desmentido por alguns dos que, contra a corrente, perseveraram no estudo de sua obra. E um ótimo exemplo foi dado por Balibar em bela síntese crítica da herança legada por Marx. Seu principal objetivo é explicar por que e como Marx continuará a ser lido no século XXI. Não como um monumento do passado, mas como autor atual, tanto pelas questões que coloca, como pelos conceitos que propõe. E essa leitura mostrará, segundo o autor, que a importância de Marx para o pensamento contemporâneo é maior do que nunca, mesmo que jamais possa existir uma filosofia marxista, como quiseram seus principais seguidores.

É verdade que os sinais de uma volta de Marx ainda têm sido raríssimos na comunidade que se dedica à ciência econômica, além de também escassos no âmbito das demais ciências sociais aplicadas. Nessas áreas, parece que ainda será longa a ressaca decorrente daquela pesada embriaguez dos anos 1970. Surpreendentemente, o inverso pode ser dito sobre o que ocorre neste momento com a evolução das pesquisas em ciências naturais. Principalmente entre os que se dedicam ao conjunto de fenômenos que podem ser caracterizados como SDNL: sistemas dinâmicos não-lineares. Temática que infelizmente foi vulgarizada mediante a duvidosa designação de "teoria do caos".

Das áridas e herméticas abordagens cosmológicas do físico Ilya Prigogine às divertidas lições do biólogo Stephen Jay Gould, passando pelos experimentos interdisciplinares do californiano Instituto Santa Fé, liderado por Murray Gell-Man, algo muito impressionante salta aos olhos. A confirmação que suas mais avançadas conjecturas sobre "complexidade" e "emergência" trazem para as reflexões de Marx sobre dialética materialista, posteriormente tão vilipendiada.

Certamente ainda vai ser muito difícil separar o joio do trigo com a necessária clareza. Isto é, bem distinguir idéias marxistas nascidas dos equívocos utópicos do próprio Marx, do conteúdo dessa revolução científica por ele realizada, que só pode ser comparada àquela simultaneamente feita por Darwin. Mas já está evidente o erro cometido ao final do curto século XX por todos os que, apressadamente e em grande número, passaram a desqualificar e descartar as contribuições daquele gênio que há exatos 150 anos começava a rabiscar sua "introdução a uma contribuição à crítica da economia política".

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José Eli da Veiga é professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP e autor de Desenvolvimento sustentável - o desafio do século XXI (Rio de Janeiro: Garamond, 2005).



Fonte: Valor Econômico, 29 nov. 2005.

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