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Gramsci e o ensino noturno

Paolo Nosella - Junho 2005
 

1. Um texto de Gramsci

"O primeiro curso da escola de cultura e propaganda socialista iniciou-se na semana passada, com a primeira aula de teoria e o primeiro exercício prático, e de um modo que não deixou de nos dar plena satisfação. Por este início, sentimo-nos autorizados a nutrir as melhores esperanças de êxito. Por que negar que alguns de nós duvidavam? Duvidavam que, encontrando-nos apenas uma ou duas vezes por semana, todos cansados do trabalho, nos fosse possível encontrar em cada um aquela vivacidade sem a qual as mentes não podem comunicar, os ânimos não podem aderir e a escola não pode se realizar como uma série de atos educativos vividos e sentidos em comum. Talvez estivéssemos céticos pela experiência das escolas burguesas, a tediosa experiência dos alunos e a dura experiência dos professores: o ambiente frio, opaco a qualquer luz, resistente a todo e qualquer esforço de unificação ideal, os jovens reunidos naquelas salas não pelo desejo de se tornarem melhores e de compreender, mas pelo objetivo, talvez não expresso mas claro e comum a todos, de se destacarem, de conquistar um ´título`, de expor a própria vaidade e a própria preguiça, de hoje se enganarem a si mesmos e amanhã aos outros.

E vimos, em torno de nós, numerosos, espremendo-se uns aos outros em bancos desconfortáveis e no espaço restrito, esses alunos insólitos – na maior parte, não mais jovens, fora, portanto, da idade em que aprender é algo simples e natural, e ainda por cima todos cansados depois de um dia de trabalho na fábrica ou no escritório – seguir com a máxima atenção a seqüência da aula, esforçarem-se para registrá-la no papel, expressar concretamente que, entre quem fala e quem escuta, se estabelecera uma viva corrente de inteligência e simpatia. Isto não seria possível se, nesses operários, o desejo de aprender não brotasse de uma concepção de mundo que a vida mesma lhes ensinou e eles sentem a necessidade de tornar clara, para possuí-la completamente, para poder realizá-la plenamente. É uma unidade que preexiste e que o ensino pretende consolidar, é uma unidade viva que, nas escolas burguesas, em vão se procura criar.

A nossa escola é viva porque vocês, operários, trazem para ela sua melhor parte, aquela que o cansaço da fábrica não pode enfraquecer: a vontade de se tornarem melhores. Neste momento tumultuado e tempestuoso, vemos toda a superioridade da sua classe expressa no desejo que anima uma parte cada vez maior de vocês, o desejo de adquirir conhecimento, de se tornarem capazes, donos do seu pensamento e da sua ação, artífices diretos da história da sua classe.

A nossa escola continuará e trará os frutos que lhe for possível trazer: ela está aberta a todos os acontecimentos. Amanhã, um acaso qualquer poderá afastar e dispersar a todos nós que hoje nos reunimos em torno dela, dando e recebendo um pouco do calor, da fé de que necessitamos para viver e lutar; depois faremos as contas, mas por ora assinalemos este nosso saldo positivo, assinalemos esta impressão de confiança que nos vem das primeiras aulas, do primeiro contato. Com o espírito destas primeiras lições queremos ir em frente."

Gramsci, Antonio. LÂ’Ordine Nuovo 1919-1920. Org. por Valentino Gerratana e Antonio A. Santucci. Turim: Einaudi, 1987, p. 361-2.

2. O ensino noturno para Gramsci. Comentário de Paolo Nosella

O texto em que Gramsci comenta a primeira semana de aulas do curso noturno para trabalhadores de Turim é uma verdadeira preciosidade, um "soneto" em prosa jornalística. Foi publicado no jornal L´Ordine Nuovo (ano I, n. 3, 20 dez. 1919).

O entusiasmo do autor pela inauguração do curso é evidente. Em quatro curtos parágrafos, condensa sua precisa filosofia educacional referente a cursos noturnos para trabalhadores, operários de fábricas e funcionários de escritórios. Cada parágrafo expressa uma ou mais idéias importantes. Deixa claro, já na primeira linha, que cultura profunda e difusão das idéias são valores que se integram; que organizar um curso noturno não é um empreendimento fácil, pois não é uma mera transferência para as horas noturnas dos cursos diurnos; que – e sobretudo – na escola socialista para trabalhadores, o espírito, o sentido, os métodos, os instrumentos, os conteúdos, os mestres e as motivações são absolutamente diferentes dos que se encontram nas escolas burguesas: naquelas há vida, desejo de aprender, há entusiasmo; nestas há tédio, mero desejo de diploma e de se garantir na vida pela esperteza.

Gramsci deixa claro, também, que no curso noturno por ele organizado existe uma idêntica concepção de mundo entre os organizadores e os alunos. A função das aulas é tornar mais clara, objetiva e assumida essa concepção de mundo. Sabe que tanto os operários quanto os funcionários estão cansados pela longa jornada de trabalho; por isso, as aulas só poderiam ser ministradas "uma ou duas vezes por semana", por, no máximo, duas ou três horas. Com efeito, o estudo também é trabalho fadigoso, é um esforço muscular-nervoso não indiferente.

Os trabalhadores-alunos sabem ou intuem que aí, nos bancos daquela escola, representam uma classe social fundamental, superior, portadora de um grande projeto histórico, emancipador da própria humanidade. Estão aí, justamente, para objetivar e efetivar essa representação.

Tal escola é, sem dúvida, revolucionária, radicalmente subversiva, portanto, sujeita a possíveis repressões por parte de um Estado que representa a outra classe social antagônica. Por isso, de repente, esse Estado poderá fechá-la e dispersar alunos e mestres.

Todavia, por enquanto, a escola está aberta e funcionando livremente. Nós iremos para frente – conclui o texto – com a mesma confiança e entusiasmo registrados nas primeiras aulas.

Obviamente, esse texto reflete o clima político característico do chamado biênio vermelho, isto é, dos anos 1919-1920, e não só na Itália: foram anos de autêntica primavera para os movimentos socialistas, "trabalhava-se nas praças, nas ruas, nos jornais, nos campos, nas fábricas, nas sedes dos partidos com a perspectiva concreta, a médio e curto prazo, da Revolução Socialista. O exemplo de Lenin na Rússia brilhava fortíssimo, reforçando em todos os militantes a idéia de que a Revolução Socialista era possível e próxima" [1]. No calor desse entusiasmo, Gramsci e seu grupo de Ordine Nuovo criaram em Turim a revista homônima e esse curso noturno para formar os intelectuais do futuro próximo Estado socialista, que fossem ao mesmo tempo técnicos e políticos da produção industrial moderna. Havia escrito alguns meses antes da inauguração do curso: "A propaganda educativa desenvolvida até agora pelos socialistas foi em grande parte negativa e crítica: não podia ser de outra forma. Hoje, após as positivas experiências dos companheiros russos, pode e deve ser diferente  [...]. O problema da escola é ao mesmo tempo problema técnico e político" [2].

O curso noturno organizado pela tendência socialista Ordine Nuovo será, infelizmente, uma experiência didática muito breve, pois estamos às vésperas do ano de 1920 e os sinais da repressão política estão aumentando e recrudescendo a cada dia. Não por acaso, o texto registra a seguinte expressão: "Neste momento tumultuado e tempestuoso". O autor sabia que algo triste poderia acontecer e dispersaria aqueles alunos das mãos cansadas e calejadas, do olhar vivo e atento e do coração anelante à liberdade. Não temia em vão: a repressão fascista não tardou a explodir.

Por que lembrarmos, hoje, o pequeno curso noturno para trabalhadores, organizado por Gramsci, há noventa e cinco anos, em Turim, na Itália, distante daqui cerca de onze mil quilômetros?

Há uma razão importante para refletirmos sobre aquela longínqua experiência pedagógica. O Brasil é o país que mais ministra cursos noturnos. Do meu ponto de vista, em demasia. E todos são justificados – dizem – por representarem a possibilidade de educação e elevação social dos que trabalham durante as horas diurnas. Ou seja, todo o ensino noturno é sublimado por uma vaga justificativa ideológica, que a priori o considera sempre socialmente positivo, isto é, em favor dos trabalhadores.

Essa vaga justificativa precisa de muita depuração. Há muito populismo nesse abuso de oferta de ensino noturno, que, freqüentemente, não passa de mercantilização da educação popular. A comparação do nosso ensino noturno com a experiência do curso para trabalhadores, realizada por Gramsci, nos ajuda na decantação das "razões", superficiais e generalizadoras, às quais recorrem Estado e instituições particulares para justificar nosso imenso sistema de ensino noturno.

Como vimos, para Gramsci, a essência metodológica de um curso para trabalhadores, numa perspectiva libertadora, é a solidariedade de visão de mundo entre os alunos e a gestão escolar. Para ele, "a escola do trabalho não é a escola do emprego nem a escola técnica poderia ser uma escola de funcionários" [3]. O estudo, para Gramsci, é trabalho intelectual, sério, é esforço disciplinado, muscular-nervoso, que vem se acrescentar ao esforço da jornada de trabalho diurno. Portanto, com muita cautela as aulas podem ser ministradas uma ou duas vezes por semana, por, no máximo, duas ou três horas.

Enfim, pouco ou nada tem a ver o nosso ensino noturno com a proposta pedagógica noturna de Gramsci: o socialismo via na escola do trabalho uma escola libertadora, rejeitava qualquer rebaixamento cultural para proteger ou assistir os pobres e cansados trabalhadores: estes precisam apenas da igualdade de condições para estudar e não de retórica. Por isso, não é fácil justapor uma jornada de trabalho diurno e umas horas noturnas de estudo. Diz em outro texto: "A escola, quando funciona com seriedade, não deixa tempo para a fábrica e, vice-versa, quem trabalha seriamente apenas através de um enorme esforço de vontade pode se instruir. Encaixá-las uma na outra, assim como estão fazendo, é mais uma das aberrações pedagógicas que sempre impediram à escola italiana ser algo sério [...]. Façam com que a escola seja verdadeiramente escola, e a fábrica não seja uma masmorra, e terão então uma geração de homens verdadeiramente úteis; úteis porque saberão fazer um trabalho eficiente nas artes liberais e porque darão à fábrica o que a ela falta: a dignidade, o reconhecimento de sua função indispensável, a isonomia do operário com qualquer outro profissional" [4].

Para mim, a leitura dos textos de Gramsci sobre a escola representou a vacina contra o populismo educacional. Sem negar que uma dosagem correta de cursos noturnos, dentro de uma metodologia adequada às necessidades e circunstâncias da clientela que trabalha de dia, seja uma iniciativa louvável, me convenço de que, infelizmente, em geral, há uma falácia populista embutida em certa apologia indiscriminada da escolarização noturna. Por isso, hoje, melhor do que no passado, entendo a afirmação que, no final da década de setenta, o professor Luiz Eduardo W. Wanderley fazia referindo-se às experiências de educação popular dos anos sessenta: "Aquelas formas assistemáticas e extra-escolares foram mais dinâmicas, sugestivas e possibilitadoras de desdobramentos e de efeitos multiplicadores" [5].

Notas

[1] Nosella, P. A  escola de Gramsci. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 63.

[2] Gramsci, A. L´Ordine Nuovo. 1919-1920. Org. por Valentino Gerratana e Antonio A. Santucci. Turim: Einaudi, 1987, p. 98-100.

[3] Gramsci, A. Cronache Torinesi 1913-1917. Org. por Sergio Caprioglio. Turim: Einaudi, 1987, p. 440-2.

[4] Id., ib., p. 536-7.

[5] Wanderley, L. E. W. "Apontamentos sobre educação popular". In: Id. A cultura do povo. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979, p. 67.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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