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Não há clima para reforma política

Milton Lahuerta - Janeiro 2006
 

As denúncias de corrupção e compra de votos, que geraram a presente crise política no país, o despreparo do Partido dos Trabalhadores (PT) para exercer o poder e a atual falta de ambiente para uma reforma política são as principais questões abordadas nesta entrevista com Milton Lahuerta, professor do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara.

Doutor em Ciência Política pela USP, Lahuerta é coordenador do Laboratório de Política e Governo da Unesp, que busca discutir temas como gestão, reforma do Estado e reforma política. Os principais temas de pesquisa do Laboratório são políticas públicas e poder local, política comparada, pensamento político brasileiro, políticas públicas e desenvolvimento regional e cursos de especialização em Gestão Pública e Gerência de Cidades. O Laboratório disponibiliza arquivos de áudio (MP3) com comentários, entrevistas e palestras sobre a conjuntura política atual no Brasil e no mundo. Informações: www.fclar.unesp.br/grupos/labpolgov

Em que medida a atual crise política pode comprometer o desenvolvimento da democracia no Brasil?

O quadro desencadeado pelas denúncias de corrupção e compra de votos em si não seria tão expressivo e poderia até contribuir para o fortalecimento da democracia se não fosse o PT, como partido e como governo, que estivesse na berlinda. A situação é grave e preocupante, porque – contrariando a visão de alguns cientistas políticos que consideravam que as instituições políticas do País iam muito bem até a crise eclodir – o episódio fez vir à tona o profundo desencantamento da sociedade com a política e a democracia. Resultado do descompasso gritante que está se consolidando entre a dinâmica político-institucional e a movimentação da sociedade em busca de seus interesses e direitos, tal desencantamento só tem se aprofundado desde o início da democratização do País. A gravidade agora é maior porque o PT apresentou-se durante duas décadas à sociedade brasileira como o único caminho para que esse descompasso pudesse ser superado.

Esse teria sido um erro?

Sem dúvida. Por isso, a crise atual ganha tanta dramaticidade e aparece como o resultado de uma tragédia anunciada. Basta observar a história política do PT, para perceber que essa história foi construída, desde os momentos de sua criação, com uma lógica excessivamente simplista no tratamento das questões políticas e institucionais. O Partido construiu sua identidade afirmando uma lógica moralista, na perspectiva de que, enquanto partido, ele seria diferente de tudo o que está aí. Tal lógica foi reafirmada ad nauseam em todas as suas campanhas políticas e eleitorais. Em vez de se preparar – e de preparar a sociedade – para o enfrentamento das contradições próprias à vida política no contexto contemporâneo, a cultura política que se estruturou no PT insistiu na perspectiva de que seria possível fazer política sem "politicagem" e que a "imoralidade" era um atributo dos outros, todos eles considerados "farinha do mesmo saco". Dessa dificuldade básica, adveio a impossibilidade de se pensar dois temas decisivos para se fazer política na sociedade de massas democrática: o tema das alianças e o tema da governabilidade.

O PT se preparou para governar o País?

O partido não se colocou o tema da governabilidade, preferindo reiterar em sua cultura política o elemento moralista e o simbolismo revolucionarista. O tema da governabilidade se liga com o da aliança, porque seu enfrentamento exigiria explicitar que para se resolver os problemas do País seria necessário não apenas fazer alianças, mas também se preparar para um momento em que o partido fosse governo e não apenas oposição. Tal passo demandaria preparo técnico e político não apenas dos dirigentes e quadros intermediários, mas também da cultura política petista, ou seja, dos militantes e eleitores do Partido. A direção partidária não trabalhou esses temas no âmbito de sua cultura política e agiu como se esse não fosse um problema dela. Agiu como se esse fosse um problema que já estivesse resolvido pela suposta superioridade moral de seus membros e pelo preparo quase inato de seus dirigentes para os desafios que vinham pela frente. Vejo essa espécie de auto-ilusão como um problema de fundo que pode nos ajudar a entender a dramaticidade da crise. A conseqüência mais grave desse problema sociológico é que, ao não enfrentar temas tão fundamentais, o PT criou um fosso, imperceptível durante muito tempo, entre a cultura cada vez mais realista e pragmática de sua cúpula e o moralismo de uma base politicamente deseducada.

Estaria o PT reproduzindo os velhos vícios da política brasileira?

Não estou dizendo que não há novidade alguma no PT. Na prática petista há novidades, há elementos de positividade; o partido trouxe para a vida pública quadros vindos dos setores subalternos da sociedade brasileira, rompendo assim com a lógica elitista. O problema é que o PT não preparou esses quadros para os desafios de uma sociedade de massas num contexto de globalização que, por si só, coloca graves problemas para a atividade política. De certo modo, é como se por excesso de presunção o PT menosprezasse não só lições teóricas formuladas desde o início do século 20, mas também as lições advindas da vivência prática do próprio processo de redemocratização brasileira. Um erro vital foi não preparar o partido para se manter como um partido de luta, que traz a questão social para o âmbito do debate institucional, mas também como um partido capaz de dar respostas concretas aos desafios propriamente relacionados com a gestão e com o governo.

A reforma política seria, então, o caminho a ser perseguido agora?

Não há ambiente para se fazer uma reforma política. O que talvez precise ser feito é uma ampla reflexão envolvendo os procedimentos e o funcionamento das instituições. Essa reflexão deve procurar, acima de tudo, esclarecer não só para o eleitor, mas também para setores da mídia, da universidade e para a própria classe política quais seriam os tópicos que deveriam compor um projeto de reforma política mais adiante. Afinal, esta é uma crise tópica que não significa a falência do sistema político brasileiro. É claro que, se não for bem encaminhada, ela pode se tornar uma crise institucional de graves proporções, mas querer transformar uma crise tópica numa crise institucional apenas para obter uma eventual vitória política seria um atropelo e um crime de lesa-pátria. A responsabilidade pela crise é sem dúvida do PT, mas a sua solução virtuosa depende de todos os setores organizados da sociedade brasileira.



Fonte: Jornal da Unesp, ano XIX, n. 207, dez. 2005.

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