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Política e desigualdade social

Jessé Souza - Março 2006
 

Por uma política que compreenda e - apenas porque a compreende - combata a desigualdade.

Estamos, hoje, num momento histórico peculiar no Brasil. Pela primeira vez, na nossa história pós-Independência, inexistem "projetos para a nação" (o último projeto refletido e consciente foi o ambíguo projeto liberal do PSDB de combate ao "patrimonialismo" e suas seqüelas) que ultrapassem a prosaica disposição de "levar com a barriga" a política econômica de curto prazo. Na medida em que os projetos de sociedade são atribuições de intelectuais em sentido estrito, pelo menos nos últimos duzentos anos de sociedade moderna (ainda que as duas figuras do político e do intelectual possam coincidir algumas raras vezes), a atual carência de "projetos políticos de longo prazo" no nosso meio político reflete uma deficiência do universo acadêmico e intelectual brasileiro. Temos entre nós a ampla predominância das análises de conjuntura, especialmente de análises acerca da ação de partidos políticos, os quais são, por definição, produtos de consensos passados cristalizados institucionalmente, com a inércia e rigidez burocrática que sua auto-reprodução no tempo inevitavelmente envolve. Esta tradição de análise, que certamente também tem sua validade, desde que não "colonize" outros tipos mais abrangentes de interpretação, nos fecha num horizonte cognitivo que olha apenas para o passado e para o presente de curtíssimo prazo. Una-se a isso um preconceito "antiteórico" dos próprios intelectuais, que confundem preocupações teóricas com quimeras sem vinculação com a realidade prática, para que possamos entender a razão profunda de tal quadro desolador.

Estou mais do que convencido de que, se quisermos ter "clareza prática" com respeito às questões e desafios pragmáticos e cotidianos que nos afligem, temos, em primeiro lugar, que ter "clareza teórica" acerca desses mesmos assuntos que não compreendemos na sua lógica interna e profunda. Em meu livro A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica (UFMG, 2003), cuja segunda edição sairá em breve, assumi o desafio de "teorizar", ou seja, de tentar perceber a lógica profunda e oculta, que permite compreender a especificidade do Brasil contemporâneo. Como a "realidade prática" é hierarquizada, ou seja, existem fenômenos importantes e secundários, escolhi, como nossa "contradição principal", a questão da nossa abissal desigualdade social. Acredito que todas as nossas mazelas decorram dela, inclusive o nosso relativo atraso econômico, e não o contrário, como normalmente se pensa. Esse tipo de empreendimento crítico tem sempre duas faces: uma que desconstrói e uma outra que constrói. A desconstrução é fundamental, dado que há que se mostrar a limitação de paradigmas anteriores na tarefa de explicitar a forma como a nossa desigualdade é percebida e legitimada. A desconstrução crítica que procurei formular se referia tanto aos paradigmas clássicos quanto aos seus sucedâneos contemporâneos. O paradigma clássico de explicação por excelência é o do "personalismo/patrimonialismo", cuja origem comum é a idéia de que a especificidade da sociedade brasileira e, portanto, da forma que a desigualdade e a estratificação social assumem entre nós decorreria da predominância estrutural de um "capital social de relações pessoais". Seria esse capital de relações pessoais, precisamente, que transformaria seus possuidores em privilegiados e seus despossuídos em párias. É a existência desse capital que separa, por exemplo, o "indivíduo" da "pessoa" em Roberto DaMatta, ou o homem cordial bem-sucedido do malsucedido em Sérgio Buarque.

Não posso explicitar aqui todas as variantes dessa idéia comum, ainda hoje amplamente dominante entre nós, seja entre intelectuais e na mídia, seja na dimensão do senso comum [1]. Mas ela vive da percepção de um Brasil pré-moderno, afetivo e emotivo, para a explicação de nossas mazelas. Esse tipo de explicação perde crescentemente seu poder explicativo por boas razões. Essas interpretações "culturalistas", ainda hoje dominantes, percebem a produção social das personalidades individuais como um atributo de uma "cultura", no nosso caso, ibérica e portuguesa, dissociada de qualquer aspecto estrutural e institucional que lhes pudesse conferir historicidade e concretude. Mercado e Estado são percebidos como grandezas "externas" e destituídos de qualquer eficácia, e sua "importação" para nosso país não é percebida como revolucionando a sociedade de alto a baixo, como essas instituições fizeram em todo lugar. Um conceito de "cultura" auto-referido e homogêneo, próximo daquele do paradigma do culture and personality, que dominou a antropologia e sociologia norte-americanas na primeira metade do século XX, é visto como a base de uma teoria da sociedade sem determinações estruturais. Nessas análises, industrialização, urbanização e construção estatal são acontecimentos externos à vida social, como uma chuva que nos molha, mas não nos penetra a alma, redundando numa sociologia subjetivista, que apenas reproduz a imagem confusa do senso comum numa dimensão superior e por isso mesmo se nutre do convencimento imediato de toda forma de explicação que vive do re-conhecimento do já sabido.

A crescente perda de eficácia da explicação personalista (em suas inúmeras variações de sociologia do favor, do patrimonialismo, etc.) não se dá pela ação de um debate reflexivo e crítico (porque nos falta a tradição do debate aberto e crítico). Precisamente pelo fato de que não houve "aprendizado teórico" (que só o debate crítico pode possibilitar), a "superação" do personalismo se deu por meio de  estratégias de explicação alternativas, dominantes contemporaneamente entre nós, que levam o antiteoricismo dominante ao paroxismo, ao se pretenderem fundadas na realidade imediata dada, na realidade "visível", que se imporia enquanto tal, independente de qualquer necessidade de fundamentação. A primeira dessas "explicações alternativas" é o economicismo, que insiste em perceber a desigualdade como uma variável econômica, como se a única diferença entre incluídos e excluídos fosse determinada pela renda ou por variáveis de substrato econômico, como saneamento ou infra-estrutura. Esse tipo de explicação, que ocupa cada vez mais espaço no debate público, secundariza, indevidamente, aspectos fundamentais e não-econômicos da desigualdade social, como a ausência de auto-estima, a ausência de reconhecimento social, a ausência de aprendizado familiar de papéis sociais básicos e a realidade da reprodução social de uma "ralé" (termo usado provocativamente aqui, num país que eufemiza tudo para manter intocada sua auto-indulgência), cujo substrato moral, político e social, e por conseqüência também de tipo de personalidade, é fundamentalmente diferente do da classe média.

A outra "explicação", contemporaneamente dominante, atribui à cor/raça o fator decisivo para a desigualdade, simplificando e confundindo causas múltiplas e complexas em uma única. Não tenho tempo aqui de mostrar as profundas contradições desse "empiricismo politicamente correto" que substitui a análise da realidade por uma pretensa "moralidade" [2]. Eu não tenho nada, que seja dito desde logo, contra o sistema de cotas (ao contrário o acho indispensável como um remédio tópico e secundário), mas tenho muito contra entronizar essa saída liberal típica do caso histórico norte-americano como estratégia principal da luta contra a desigualdade brasileira. Afinal, se a nossa desigualdade fosse de cor, ou principalmente de cor/raça, e seu remédio as cotas, então o político mais populista e atrasado do Brasil, Anthony Garotinho, seria o campeão da luta contra a desigualdade entre nós, já que o Estado do Rio de Janeiro é o campeão nacional deste tipo de política.

A proposta "construtiva" que tentei formular no livro referido acima é diferente de todas essas explicações, clássicas e contemporâneas, criticadas. Ela parte do pressuposto de que, para compreendermos o substrato social e cultural de uma sociedade singular, precisamos compreender primeiro como se estrutura, nos seus componentes material e simbólico, aquilo que Max Weber chamava de "racionalismo ocidental". Ou seja, nós precisamos, antes de tudo, entender como, numa sociedade moderna (também nas sociedades perifericamente modernas, como a brasileira), cujo valor central de legitimação é a igualdade, é possível a naturalização/legitimação de uma desigualdade, que, no caso específico do Brasil, é a maior desigualdade social entre todas as sociedades complexas do globo. Como a igualdade formal entre os indivíduos passa a ser o critério fundamental da solidariedade social dessas sociedades, a partir da perda de eficácia das regras abertamente hierárquicas dos contextos pré-modernos, as novas regras de exclusão e inclusão têm sua eficácia dependente de sua opacidade e naturalização.

A opacidade, que permite que mercado e Estado sejam percebidos como funcionando de acordo com critérios aparentemente neutros e justos, só é possível a partir do desconhecimento sistemático, socialmente produzido, da hierarquia moral contingente peculiar ao racionalismo ocidental e suas práticas institucionais e sociais. Assim, se quisermos ir além das aparências, devemos suspeitar do discurso legitimador que essas instituições fazem sobre si mesmas, ou seja, como se as mesmas fossem estruturas objetivas e neutras que expressam princípios meritocráticos e igualitários. Afinal será a noção de disciplina, de cálculo racional e de controle do corpo e de suas emoções e necessidades, que passará a diferenciar imperceptivelmente classes sociais, gêneros, etnias, etc. Não só a luta entre classes e frações de classe vai ser decidida por essa oposição entre a alma ou razão – como locus das virtudes das classes dominantes – e o corpo – como locus das virtudes dominadas e ambíguas das classes inferiores –, exemplarmente perceptíveis na oposição entre o trabalho intelectual e manual, que num país como o Brasil legitima que se ganhe até 50 vezes mais, como todos sabemos (sem que nunca sequer nos perguntemos por quê, o que comprova seu caráter "naturalizado"), mas também todas as outras hierarquias que pressupõem superioridade e inferioridade ou a noção de melhor ou pior, como a oposição homem/mulher e branco/negro, na medida em que tanto a mulher como o negro são percebidos como repositórios das virtudes ambíguas da corporalidade, da afetividade e da sensualidade, por posição às virtudes não ambíguas do intelecto calculador e da moralidade do autocontrole.

É o mecanismo de opacidade e de naturalização da inferioridade que faz parecer à própria vítima do preconceito, seja ele de classe, gênero ou cor, que o seu fracasso é pessoal, merecido e justificável. É, portanto, a "ideologia do desempenho", implícita na economia emocional baseada na disciplina do corpo pela racionalidade do cálculo instrumental e no trabalho útil e produtivo segundo as demandas crescentes de mercado e Estado, que será a base secreta de todo o mecanismo que classifica indivíduos e classes em superiores e inferiores, em cidadãos e subcidadãos, e, no limite, em gente e não-gente. Em outras palavras, e weberianamente, a racionalização religiosa específica ao Ocidente, que constrói, como novidade histórica radical, essa noção contingente e única de agência humana (já a partir da absorção da noção de virtude platônica como o caminho da salvação cristã por Santo Agostinho), passa a ter agora como suporte secular a lógica impessoal de mercado e Estado. Essa lógica reproduz, através de estímulos empíricos como dinheiro e coerção legal, o mesmo tipo de indivíduo que antes a fé produzia. É esta concepção de ser humano e de uma economia emocional peculiar que irá se transformar na concepção dominante do valor diferencial entre os seres humanos e grupos sociais inteiros, bem como separar e unir por vínculos de solidariedade e preconceito pessoas e grupos sociais em superiores e inferiores, segundo critérios (disciplina e autocontrole) que passam a dever sua objetividade incontestável ao fato de estarem inscritos na lógica opaca e intransparente de funcionamento de Estado e mercado. Às gerações que nascem sob a égide das práticas disciplinarizadoras já consolidadas institucionalmente, esse modelo contingente de hierarquizar os seres humanos assume a forma naturalizada de uma realidade auto-evidente que dispensa justificação. Responder aos imperativos empíricos de Estado e mercado passa a ser tão óbvio e natural quanto respirar ou andar.

Isto significa também que a cidadania e o reconhecimento social têm a ver, em grande medida, com a efetiva homogeneização da economia emocional que caracteriza o indivíduo produtivo no capitalismo e que este é um processo coletivo de aprendizado cultural e político. O acesso "legítimo" a todos os bens e recursos escassos irá depender da efetiva existência, nos indivíduos e classes envolvidos na luta social, dos atributos do trabalho útil e produtivo enumerados acima, que implicam, todos eles, um controle dos instintos naturais do corpo que nos levam à perda de autocontrole e à indisciplina. O Ocidente instaura uma oposição entre mente e corpo que será o divisor de águas entre o que é considerado digno e indigno, nobre e vulgar, etc. O "acesso" a esta forma de ser e agir no mundo é o que vai permitir a incorporação de "conhecimento" (o verdadeiro fundamento estrutural da hierarquia moderna, junto com o capital econômico). O mercado e o Estado, desse modo, só se utilizam de indivíduos que possuam "conhecimento in-corporado". Os indivíduos e classes que não o possuem são literalmente "dispensáveis", uma espécie de "lixo social" que só possui o próprio corpo. É claro que (para me antecipar a uma crítica previsível) essas pessoas podem ser "usadas" e encontrar "trabalho" apenas com seu próprio corpo. A prostituição, o trabalho doméstico, o trabalho muscular de todo tipo, etc., são exemplos disso. Mas falta a essas pessoas e classes inteiras qualquer condição de se "incluir" no mercado competitivo de trabalho segundo as crescentes demandas por "conhecimento incorporado". E é apenas esse tipo de trabalho que produz reconhecimento social e prestígio [3].

Entre nós existe uma "classe social", nunca antes percebida enquanto tal, de indivíduos que, seja no meio rural do Piauí ou de Minas Gerais, seja no meio urbano de São Paulo ou Recife, são "produzidos" e "reproduzidos" como "meros corpos", sem qualquer possibilidade de atuação nas instituições especificamente modernas do mercado, do Estado e da esfera pública. Essas pessoas são, objetivamente, "subgente" e "subcidadãs". Nós, da classe média, as vemos como tais e elas também se percebem do mesmo modo, comprovando que essas classificações são objetivas e se impõem a todos. É claro que a "reação" de cada indivíduo a essa "hierarquia moral objetiva" (Charles Taylor) pode ser diferente, separando o canalha do homem de bem. Podemos, por exemplo, sentir pena e lamentar a sorte do mendigo caído na rua ou xingá-lo, chutá-lo e chamá-lo de vagabundo. Mas essas são meras variações subjetivas de um "julgamento" acerca do valor relativo deste pobre ser humano, já realizado "objetivamente" por instâncias impessoais e que se impõe como um "desvalor" tanto ao homem de bem que sente pena quanto ao canalha que sente raiva.

É esse "critério classificador", opaco e profundo, que faz com que dificilmente vá para a cadeia alguém da classe média que atropele por negligência um pobre-diabo que é apenas corpo. Entre nós a altíssima probabilidade é a de que o agente de classe média seja inocentado ao fim e ao cabo, ou que tenha uma pena digna de contravenção, como a de alguém que matou um cachorro ou uma galinha. Minha tese é de que isto acontece porque, na dimensão pré-reflexiva que atualiza o valor diferencial dos seres humanos, atualizada cotidianamente tanto por mercado e Estado quanto por todos nós na vida cotidiana, estes pobres brasileiros não valem "efetivamente" mais do que um cachorro ou uma galinha. O resultado prático do processo judicial, na realidade, espelha, portanto, o consenso pré-reflexivo acerca do valor diferencial dos seres humanos, existente numa sociedade, como a nossa, que não homogeneizou o tipo humano digno de "respeito" e "reconhecimento" (a economia emocional da disciplina e do autocontrole) de forma interclassista em nenhuma medida significativa.

Aqui não estamos pensando em termos intencionais ou conscientes. É claro que muito poucos brasileiros de classe média admitiriam que consideram seus compatriotas miseráveis subgente de importância comparável à de uma galinha. Ao contrário, várias destas pessoas votam em partidos de esquerda e contribuem com campanhas contra a fome, etc. No entanto, na dimensão pré-reflexiva dos consensos compartilhados através das práticas sociais efetivas, que dispensam a intermediação lingüística, o resultado prático aponta para um corte que constrói cidadãos, de um lado, e subcidadãos sem direitos, de outro. Minha tese é a de que são esses consensos pré-reflexivos que decidem se a lei da igualdade pega ou não, ou seja, se ela é eficaz ou não. Este exemplo do atropelamento não precisa ser multiplicado. Quem já teve que usar a rede pública de saúde ou já visitou um presídio brasileiro percebe que o Estado e seus servidores identificam muito bem quem merece respeito ou desprezo. Diariamente morrem pessoas sem atendimento no SUS que sequer saem nos jornais. Se algum pobre morre de bala perdida no Rio de Janeiro, seus corpos são contados em números: "7 morreram hoje na Rocinha". Se a vítima é de classe média, ela ganha um rosto, uma biografia, e todos nós lamentamos que alguém "gente como a gente" morreu e pedimos "basta!".

É, portanto, a realidade destes consensos compartilhados acerca do valor objetivo e diferencial de indivíduos e classes inteiras que explica a existência de todo um aparato legal e jurídico meramente simbólico, como no caso brasileiro, que não possui eficácia real. Existe, por assim dizer, voltando ao exemplo do atropelamento, um fio invisível que une desde o policial que abre o inquérito até o juiz que decreta a sentença, passando por testemunhas, advogados e imprensa, que reproduz não a eficácia da regra legal que dispõe acerca da igualdade de todos perante a lei, mas sim a eficácia da regra social pré-reflexivamente produzida e pré-reflexivamente compreendida por todos, que diz que o crime de matar alguém que vale tanto quanto uma galinha não merece prisão. A explicação dominante entre nós acerca de fenômenos como este é ainda marcada por enfoques que partem de pontos de partida subjetivistas e intencionalistas, como se a lógica de sociedades complexas e dinâmicas como a nossa pudesse ser captada a partir do somatório das intencionalidades individuais. É por isso que ainda se pensa que o que está dentro da cabeça de uma suposta elite determina a lógica e a dinâmica social objetiva, ou que são relações intersubjetivas de favor e proteção que constituiriam o pano de fundo da dependência e subcidadania, ou, ainda, que seria o capital de relações pessoais que determinaria privilégio ou marginalidade. Em todas essas versões de sociologia subjetivista, o paradigma é a nossa imersão ingênua na vida cotidiana, que faz com que pensemos que nós, sujeitos, somos o centro do mundo, que somos nós que produzimos valores e que a dinâmica social pode ser adequadamente compreendida pela interdependência das vontades e sentidos individuais.

O economicismo e o racialismo, as formas antiteóricas contemporâneas que substituem a explicação clássica do personalismo entre nós, reproduzem o desconhecimento do senso comum com outros meios: pela ilusão do saber imediato. Bastaria "olhar" o mundo para compreendê-lo. Ninguém pensa que um câncer possa ser curado com o médico apenas "olhando" o paciente, sem exames detalhados. Mas na vida social esse tipo de ingenuidade parece ter livre curso. Como se o conhecimento da realidade social, assim como da anatomia humana, não exigisse conhecimento específico de especialistas. Assim, a "escola" pode ser a panacéia de 10 dentre 10 economistas que escrevem sobre desigualdade, como se a "ralé" já não chegasse como perdedora na própria escola (quando tem escola), antes de começar. Como se adquirir conhecimentos não tivesse pressupostos psicossociais, como a capacidade de concentração, disciplina, exemplo de leitura em casa, estímulos à competitividade, etc. Como se um pobre que não tem nada disso, muitas vezes nem pai para aprender a noção de autoridade legítima (a base de toda relação construtiva com as autoridades públicas mais tarde), tivesse as mesmas condições de competição da classe média. Como se uma escola, assim estruturada, não apenas revalidasse, num patamar superior, uma desigualdade estrutural que se reproduz por herança familiar. Diante da generalização liberal do economicismo, há que se compreender que a realidade social é estruturada em "classes sociais", cujas chances são preestipuladas. Pierre Bourdieu empreendeu um primoroso trabalho de reconstrução da noção de classe no sentido pós-marxista de um conceito "sociocultural" de classe, o qual discuti em detalhe no livro citado acima e utilizei criticamente para minha análise da realidade brasileira.

O "racialismo", por sua vez, que percebe o preconceito de cor como a "causa principal da desigualdade brasileira", repete, de modo invertido (quando sabemos que a inversão especular é a repetição do mesmo reativamente), o obscurecimento que sempre foi o núcleo da importância da raça no Brasil: servir como ícone de integração (a mestiçagem como prova empírica disso), obscurecendo todos os outros conflitos, especialmente os de classe. A anterioridade do preconceito de classe e sua maior importância relativa é o que explica que um negro de "classe" possa, efetivamente, "embranquecer", mostrando a realidade de um critério classificador "por trás da cor". Isso não nega o caráter perverso de nosso preconceito racial, mas apenas o limita e o contextualiza. O paralelismo entre subjetivismo sociológico, economicismo e racialismo, equivalendo à nossa imersão nas ilusões objetivas da vida cotidiana, me parece a razão última da continuada hegemonia destes tipos de explicação que reduzem nossas mazelas sociais à sua aparência fenomênica. A sua inadequação como explicação da realidade, no entanto, também me parece a causa principal da ausência crônica de projetos políticos, no Brasil e nos países periféricos, que não se reduzam a iniciativas assistencialistas de política simbólica de curto prazo ou que esperam do crescimento econômico aquilo que ele nunca deu nem jamais pode dar.

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Jessé Souza é professor titular de Sociologia da UFJF.

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[1] Ver Souza, Jessé. A modernização seletiva: para uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: UnB, 2000.

[2] Ver Souza, Jessé. "Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira". Lua Nova, ago. 2005, n. 65, p. 43-69.

[3] Isso pode ser comprovado pelo status "derivado" da dona casa em relação ao status de seu marido. Seu tipo de trabalho não oferece, na nossa sociedade baseada na "ideologia do desempenho", nenhuma fonte autônoma de "reconhecimento social". Ver Souza, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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