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A palavra é "legalidade"

Luiz Eduardo Soares - Março 2006
 

Acredito que haja um denominador comum sob o vasto repertório de problemas, dramas e tragédias que afetam o estado do Rio de Janeiro. Claro que essa reflexão exige que se faça, primeiro, um inventário dos dilemas que nos afligem. Cada leitor terá sua lista de prioridades. A minha é bastante ampla: o desrespeito pelo espaço público, a corrosão dos laços de confiança e das regras de civilidade, a degradação das entidades socioeducativas e do sistema penal, a ocupação desordenada do solo urbano, a devastação do meio ambiente, a corrupção nas instituições públicas, a brutalidade policial, o crescimento tentacular das máfias - no transporte e na saúde -, o tráfico de armas e drogas, a criminalidade e a bala perdida - com seus efeitos sobre a economia, o emprego e a renda -, a violência doméstica contra crianças e mulheres, a agressão perpetrada contra as minorias, o racismo e a homofobia, o genocídio de jovens negros e pobres, o abandono da juventude vulnerável, a tirania a que estão submetidas as comunidades, o descaso com a educação, a selvageria no trânsito, a pobreza da representação política e o esvaziamento de sua legitimidade.

São questões que pertencem a distintas esferas da vida social. Mas um laço as une: cada uma delas corresponde a uma modalidade específica de transgressão à ordem constitucional; todas expressam traições à legalidade. O denominador comum das desventuras é a ilegalidade. A palavra-chave para a sociedade fluminense, pedra-de-toque das mudanças mais urgentes, é uma só: legalidade.

Aqui, é preciso cuidado para evitar mal-entendidos. A legalidade a que me refiro nada tem a ver com a simplificação grosseira daquilo que se convencionou designar pela equação Lei-e-Ordem, cuja tradução realista tem sido violência e discriminação institucionalizadas contra os de baixo, e tolerância indulgente com os de cima. Pelo contrário, legalidade, no Estado Democrático de Direito, regido por uma Constituição republicana, como a brasileira, significa a afirmação normativa e prática de direitos, garantias e liberdades, individuais e coletivas, cujos limites são dados apenas por sua universalidade, isto é, pela eqüidade de sua vigência.

Legalidade nos marcos da democracia resulta de um amplo entendimento político e consagra um pacto social, por natureza flexível e tenso, sob permanente e saudável conflito. Nada menos estático do que a legalidade, no quadro da institucionalidade democrática, ainda que as instituições sejam estáveis. Justamente porque é próprio à democracia fornecer meios legais para a introdução progressiva de mudanças. A democracia, conjugada aos valores da eqüidade e da justiça, tende a estender-se e aprofundar-se com o amadurecimento de seu exercício, ampliando as bases de participação da sociedade e incorporando, aos espaços de produção normativa e realização do poder político, segmentos sociais cada vez mais numerosos e diversificados.

Poder-se-ia pensar que a legalidade estaria condenada a ser uma bandeira que só interessa às elites e às camadas médias. A legalidade interessa a todos os que se importam com o convívio pluralista e republicano, sem dúvida, mas, sobretudo, interessa aos mais pobres. A legalidade é questão de vida e morte para os que são hostilizados diariamente pela brutalidade policial e para os que sofrem o despotismo imposto pelo crime. Para as centenas de milhares de moradores de favelas, a implantação efetiva da legalidade seria a conquista dos benefícios mais elementares, previstos na Constituição Federal, que custaram tanta luta à sociedade brasileira e, hoje, permanecem fora do alcance de tantas comunidades.

Um governo que se norteasse pelo respeito à legalidade teria de realizar uma revolução nos aparelhos coercitivos do Estado e nas instituições públicas, antes de voltar-se para a sociedade, na perspectiva de servi-la, promovendo a cidadania e garantindo a própria legalidade.

Parte do eleitorado dá sinais de que está se deslocando para o voto nulo. O ceticismo é compreensível. A ilegalidade gera expectativas negativas. A política democrática sairá vitoriosa se puder reverter expectativas e introduzir a dinâmica virtuosa que nasce da confiança.

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Luiz Eduardo Soares é cientista político e professor da Universidade Cândido Mendes (Rio).



Fonte: Jornal do Brasil, 12 mar. 2006.

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