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Mariátegui e a cultura à prova de choque

Gilberto Vasconcellos - Abril 2006
 

José Carlos Mariátegui. Por um socialismo indo-americano. Organização de Michael Löwy. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005. 270p.

Um clássico este livro - Por um socialismo indo-americano -, magistralmente traduzido por Luiz Sérgio Henriques. Todo brasileiro com vergonha na cara deveria lê-lo, depois ajoelhar-se ao milho, para se redimir, sobretudo entre os intelectuais esnobes, da estupidez que tem sido dar as costas para a América Latina.

José Carlos Mariátegui (1894-1930) foi um intelectual marxista peruano que morreu precocemente aos 36 anos, mas nos legou uma obra fecunda, centrada na reflexão sobre que tipo de gente somos, os latino-americanos, em que sociedade vivemos, sem deixar de abordar os temas de interesse geral, como o trotskismo, o feminismo, o surrealismo, o futurismo, o marxismo, etc.

Apresentando-o, Michael Löwy está coberto de razão em colocá-lo no mesmo patamar de um Lukács, de um Gramsci, de um Walter Benjamin, com o detalhe de que o peruano escrevia de maneira mais clara e melhor, com espantosa elegância, ainda que sendo extremamente crítico e revolucionário. Seu estilo revela uma oralidade que talvez venha do substrato aborígine tão forte na cultura peruana.

O convívio com o silêncio, quando havia silêncio na cordilheira dos Andes; trata-se de um estilo voltado para a compreensão de coisas profundas sobre o atraso, a miséria, o subdesenvolvimento e a necessidade da revolução proletária para resolver os problemas da indiada, a maioria da população, problemas pelos quais os crioulos mestiçados e a burguesia-cipaio, que se autodefine européia, associados aos interesses colonialistas (Espanha, Inglaterra, EUA), sentem desprezo. É o desprezo pelo "povo do sol".

Não há, na verdade, condições de voltar ao passado antes da conquista feita pelos espanhóis, que introduziram, pela violência e a superexploração do trabalho, o Peru no tabuleiro do capitalismo mundial; todavia é impossível não levar em consideração a presença absorvente do pré-colonial, pois tudo o que é socialmente espúrio se faz sem o índio e contra o índio.

"A mais avançada organização comunista primitiva que a história registra é a inca", escreveu Mariátegui, interessado em dar o salto desse comunismo primitivo para o comunismo teorizado por Marx e Engels, embora sem enveredar para a cópia e o decalque dos textos marxistas. Marxismo, sim; mimetismo, não. Daí sua preocupação em conceber um socialismo que fosse "indo-americano", porquanto Marx e Engels nunca comeram farinha de mandioca nem deitaram em rede de dormir.

O povo no Peru não começa com a conquista dos colonizadores assim como o colonialismo se faz com o recalque do elemento autóctone. Não há, para Mariátegui, um abismo entre a "tradição" aborígine e a revolução socialista. Equívoco eurocêntrico seria passar por cima do legado da solidariedade e do primitivismo indígenas como inspiradores ou guia de uma prática política antiimperialismo.

A civilização incaica sofreu o impacto da expansão européia e, depois, norte-americana, que saqueou toda a sua riqueza, marginalizando as populações indígenas por meio da superexploração do trabalho. O que se observa na reflexão de Mariátegui é o empenho de fundir, numa síntese significativa, a cultura original com a contribuição européia, mas sob o signo do marxismo revolucionário e do nacionalismo modernizador.

Cremos que, entre as populações "atrasadas", nenhuma reúne, como a população indígena inca, condições tão favoráveis para que o comunismo agrário primitivo, subsistente em estruturas concretas e no profundo espírito coletivista, transforme-se, sob a hegemonia da classe proletária, numa das bases mais sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista.

Mariátegui escrevia no final da década de 20, quando Oswald de Andrade elaborava sua antropofagia antiimperialista, que possui muitas afinidades com o marxista peruano; porém hoje a massa marginalizada dos indígenas no Peru pouco tem em comum com a indianidade pré-colombiana, que não conhecia a propriedade privada nem o dinheiro. É possível conceber uma revolução socialista para resolver a penúria em que vive o indigenato, mas nesse projeto político haverá de se incluir a libertação étnica empreendida pela maioria da população indígena.

Mariátegui prenunciou o que há de melhor hoje na antropologia dialética da América Latina. É que o processo capitalista europeizador e depois norte-americanizado não conseguiu anular a identidade étnica dos quíchuas, dos aimaras, dos maias, etc. As massas indígenas fazem parte do campesinato explorado pelo latifúndio multinacional, mas é preciso não negligenciar que, anterior à estratificação classista, existe a condição étnica, ou melhor, a opressão étnica.

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Gilberto Vasconcellos é professor de Ciências Sociais da UFJF.



Fonte: Folha de S. Paulo, 2 abr. 2006.

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