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A lógica da explosão em São Paulo

L. E. Soares & Miriam Guindani - Maio 2006
 

São Paulo tem 144 mil presos. Isso equivale a 360 por 100 mil habitantes. O país tem 350 mil, o que corresponde a 212 por 100 mil. Em 1995, havia 150 mil presos no Brasil, o que representava 95 por 100 mil habitantes. Esses números nos dizem que o Brasil tem encarcerado muito e de forma acelerada; e que São Paulo tem sido muito mais voraz na aplicação do encarceramento do que os demais Estados.

Examinemos a outra ponta: aonde vão os que entram no sistema e que condições encontram? As unidades prisionais, em todo o país – e São Paulo não é exceção –, descumprem a Lei de Execuções Penais, promulgada em 1984: (a) os presos são misturados, independentemente da gravidade de seus crimes; (b) as penitenciárias são muito grandes, dificultando a gestão, a vigilância e a separação necessária; (c) a superlotação ultrapassa todos os limites; (d) não há o acompanhamento da situação legal dos apenados, proporcionando-lhes a progressão prevista na sentença – a realidade de São Paulo, nesse sentido, é assustadora: dos presos daquele estado, 38 mil estão cumprindo pena além do tempo ditado pela sentença; (e) as condições de higiene são degradantes e dramaticamente insalubres; (f) trabalho e educação são raramente oferecidos; (g) a progressão de regime freqüentemente é uma fraude, porque não há controle rigoroso do preso, no semi-aberto e no aberto, o que enseja fugas e/ou práticas de crimes, perpetuando o retorno do egresso ao sistema, pela reincidência; (h) o egresso não é apoiado para reinserir-se na comunidade; (i) os agentes penitenciários raramente contam com escolas de formação e uma carreira – o que reduziria a corrupção e aperfeiçoaria seu trabalho.

Se não garante direitos consagrados na LEP, o sistema penitenciário brasileiro, de um modo geral, não é mais eficiente e legalista no controle da massa carcerária e na repressão a ações criminosas, cometidas tanto no interior, quanto no exterior das unidades prisionais, por meio de ordens transmitidas pelas vias mais diversas.

Combinando-se as duas faces da incompetência institucionalizada e da ilegalidade, temos o pior dos dois mundos: nem direitos assegurados nem deveres impostos. A primeira falha gera indignação e revolta na massa carcerária. A segunda propicia a transformação do ressentimento em atos concretos de rebeldia e retaliação. Com um braço se atiça a brasa, com o outro se distribuem galões de gasolina.

Já é tempo de retomarmos os dados apresentados no primeiro parágrafo. Se o país está encarcerando mais e não cumpre a LEP, está jogando lenha na fogueira. São Paulo tem seguido o padrão nacional, mas numa proporção avassaladora. Portanto, a insurreição de São Paulo está presente, embrionariamente, em todo o país. Não se pode prender aos milhares e despejar essa multidão no inferno, dotando a massa de ferramentas de organização e ação criminosa. O caso de São Paulo se destaca e, em certo sentido, antecipa cenários possíveis em outras regiões, por uma razão de escala e intensidade das pressões exercidas pelas variáveis em ação.

Que lição se extrai desse diagnóstico? É necessário compreender que o ingresso, a permanência e a saída dos presos do sistema penal exigem uma política integrada e que a elasticidade não pode se dar no ingresso, se não houver vagas suficientes e em condições compatíveis com as determinações legais. Isso nos conduz a duas propostas: (1) não são necessárias penas mais longas ou duras, mas a certeza da punição, por um lado, e o cumprimento da LEP, por outro; (2) é preciso que o Judiciário aplique mais as penas alternativas à privação da liberdade, deixando o cárcere para os criminosos violentos – é necessário que o Legislativo flexibilize o código, quando se trata de crimes não violentos. Para que mais penas alternativas sejam aplicadas e fiscalizadas com rigor, seria conveniente que os municípios cooperassem com a Justiça, oferecendo oportunidades e monitorando o cumprimento de tais medidas.

É verdade que o país ganharia se gastasse mais com educação. Mas não é verdade que devamos depreciar os gastos com o sistema penal, porque essa atitude impede o respeito do Estado à LEP. Um Estado que desrespeita a lei comete crime. Em o fazendo, estimula a violência dos presos. Quando explode a barbárie de rebeliões e atentados, o Estado tende a trocar a firme ação legal pela vendetta – é o que está acontecendo em São Paulo. A espiral de violência se retroalimenta e o crime acaba vencendo, na medida em que o Estado renuncia ao Direito e imita seus inimigos.

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Luiz Eduardo Soares é professor da Ucam e da Uerj; Miriam Guindani é professora da UFRJ. Este texto também foi publicado em La Insignia.



Fonte: O Globo, 21 maio 2006.

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