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Itinerário suburbano

Maria Alice Rezende de Carvalho - Janeiro 2001
 

A partir do final da década de 70, após muitos anos de luta, venceram os moradores de favelas e a opinião democrática da cidade - as favelas, desde então, passaram a integrar, definitivamente, o cenário do Rio de Janeiro. Não mais as remoções; não mais aquelas operações de reassentamento dos favelados em conjuntos habitacionais distantes; não mais os deslocamentos de massa, realizados com pouco cuidado para com as pessoas, seus pertences, suas memórias, vínculos de vizinhança e hábitos consolidados. As diásporas do povo do Rio, afinal, cessaram, embora isso não tenha significado qualquer mudança nos padrões de desigualdade existentes, ou um movimento efetivo de incorporação dos mais pobres ao mundo dos direitos e das liberdades. A cidade, no entanto, pareceu conformada com a sua paisagem: ricos e pobres habitando um mesmo território, embora em todas as outras dimensões fossem sensíveis as fronteiras. O conceito, afinal, acompanhou a imagem; e a cidade passou a se definir como "partida" - um mesmo espaço dividido entre o "morro" e o "asfalto". Nessa síntese, como em todas, muita coisa se perdia. Mas ela sempre poderá reivindicar o mérito de ter produzido um bordão carioca, mediante o qual o Rio de Janeiro encontrou uma formulação simplificada para os complexos problemas urbanos que já congestionavam a pauta de estudiosos há, pelo menos, três décadas. Digamos que, com ele, a academia se viu "traduzida" pela mídia; e, com ela, chegou às calçadas.

O problema com os bordões é que são sempre cristalizações de um campo semântico construído ao longo de algum tempo. O seu sucesso, portanto, depende de uma razoável dose de fidelidade ao passado. No caso do Rio de Janeiro, a noção de "cidade partida", estrepitosa nos anos 90, condensava um amplo e complexo debate travado durante o regime militar, quando o ponto de vista etnográfico, mais cauteloso em relação às generalizações, viu-se progressivamente deslocado pelo enunciado político de um "mundo popular" que clamava por seu direito à Cidade. A perspectiva era e continua sendo democrática, embora simplificadora até para os democratas que se alinham por ela. É claro que, enquanto houve recursos fartos para as chamadas "pesquisas de campo", a pluralidade da vida não se deixou aprisionar facilmente pela síntese. Mas é típico das ditaduras o desinteresse em financiar inovações no campo das ciências sociais e, mesmo quando essa tônica é abrandada por variáveis que escapam ao controle dos cientistas, como no caso brasileiro, o próprio vocabulário da ciência vê-se simplificado, reduzido a polarizações que facilitam a denúncia, mas empobrecem a reflexão.

O fato é que já nos anos 90, quando a noção de "cidade partida" conhecia a sua fortuna crítica, vários indicadores faziam prever a sua caducidade. Em primeiro lugar, o clima de liberalização política vivido no país abaixou o tom exaltado das discussões, depurando-as, em larga medida, de maniqueísmos e simplificações. A retomada das pesquisas urbanas e as intervenções públicas em áreas degradadas da cidade, em se tornando mais freqüentes, tiveram que reconhecer as especificidades de cada favela. Paralelamente, tornou-se visível a pobreza concentrada nos loteamentos irregulares que se expandiam em progressão assustadora na periferia, esgotando-se, em muitos sentidos, o rendimento heurístico das pesquisas que tinham na favela o reduto, por excelência, da vida popular carioca [Preteceille e Valladares, 2000]. Finalmente, as dinâmicas deflagradas pela tentativa mais recente de inclusão do Rio de Janeiro em uma rede mundial de cidades - as cidades globais -, cuja característica em comum é a de terem a sua administração pautada por uma lógica empresarial, acabou produzindo, a despeito dos questionamentos que se possa fazer ao modelo, o efeito não previsível de uma revalorização da história, isto é, daquilo que é singular ao Rio de Janeiro e que, portanto, na linguagem dos novos gestores, é capaz de "agregar valor" à qualidade do urbano. Afinal, o turismo histórico no Rio de Janeiro, em Havana ou Barcelona é um dos principais produtos dessa reengenharia gerencial das cidades e, como se sabe, a história costuma vir associada à negação de todos os esquemas simplificadores de explicação.

Chegou-se, então, ao ano 2000 com algumas conquistas, como atesta a democratização espacial da cidade, várias certezas desfeitas, principalmente a que apontava a favela como o território da pobreza carioca, e, afinal, uma pauta urbana a construir. Não, é claro, pelo esgotamento das agendas sociológica e política concebidas nas duas últimas décadas, quando os índices elevados de violência fizeram soar o sinal de alerta e obrigaram toda a sociedade local a pensar sobre si. Os efeitos desse presente reflexivo ainda não estão de todo esgotados. A nova pauta urbana, contudo, virá assim mesmo, como decorrência da iniciativa de muitas agências (intelectuais, econômicas e políticas), que, buscando uma alternativa para o desenvolvimento do Rio de Janeiro, expuseram a inteligência local aos seus próprios limites e a têm condenado a rever, rapidamente, as lacunas da sua produção recente. A simples menção ao Porto de Sepetiba, por exemplo, deveria ser uma lembrança eficiente do quanto se precisa conhecer sobre o Rio de Janeiro para que um empreendimento de tal porte possa ter seus efeitos minimamente controlados [Lessa, 2000]. Mas a ignorância sobre a cidade tem outras, e mais óbvias, faces.

Inaugurada a Linha Amarela e destampados alguns indícios de um Rio suburbano que se sabia existir, mas não se atentava exatamente para o como, será desastroso continuar desconhecendo essa velhíssima fronteira, tornada "nova" por força das recentes transformações operadas na estrutura social e espacial da cidade. Isolados geograficamente, marginalizados culturalmente e historicamente ignorados, os bairros tradicionais da zona norte experimentaram o alheamento da academia e da opinião da cidade desde, talvez, a década de 40, quando, pela última vez, se concebeu uma reforma estrutural dos modos de ligação entre o centro e as periferias. De um ponto de vista democrático, portanto, o resultado imediato e importante da Linha Amarela, mais do que ampliar os fluxos de pessoas e mercadorias, foi o de trazer a imensa e desconhecida classe média carioca a um lugar de destaque na agenda sociopolítica das próximas décadas.

Porque, a despeito de tudo o que se costuma dizer, o Rio tem mudado muito e rapidamente. Há energia e movimento sob o sol carioca, ainda que o sismógrafo da pesquisa social não os tenha registrado de forma consistente. O setor informal - apenas para explicitar uma intuição -, caso tivesse os resultados da pesquisa do IBGE desagregados por bairros, certamente encontraria na zona norte carioca um território quente. Exercícios de decomposição das variáveis que conformam o ISS arrecadado em um bairro como o Engenho de Dentro, por exemplo, permitiriam perceber a recente importância que a rubrica "construção civil" vem assumindo em uma região considerada estagnada, desde que os valores totais recolhidos na área começaram a se tornar declinantes [Ruediger, 2000]. Em ambos os casos, o tipo de conhecimento produzido pelas ciências sociais poderia inspirar o desenho de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento local, a partir das vocações presentes em cada lugar, potencializando o esforço que os próprios moradores despendido. Dessa perspectiva, a concepção liberal que toma a cidade como um território aberto às iniciativas e mesmo aos deslocamentos espaciais dos cidadãos "mais aptos e capazes", ver-se-ia corrigida por um planejamento sistêmico que, sem impor vocações estranhas às manifestas pelos próprios habitantes dos bairros, tentaria favorecer as chances de que permanecessem em suas regiões de origem, tornadas culturalmente reconhecidas e promissoras economicamente. O mínimo que se alcançaria com isso seria inibir a tendência ao esvaziamento cultural, social e econômico de áreas tradicionais do Rio, como efeito da concentração desses mesmos recursos em "novas califórnias", de problemática projeção futura.

De forma análoga, o desconhecimento político sobre o Rio é também um grave obstáculo a iniciativas que visem efetivamente a democratização dos nexos entre os cidadãos e a esfera estatal. As análises políticas que, a cada eleição, vêm sofisticando sua metodologia na tentativa de perceber onde se decide a eleição no município teriam na desagregação dos resultados eleitorais por bairros um instrumento para a caracterização espacial do perfil político-ideológico dos eleitores. Aqui, também, a questão não é tanto a de um aperfeiçoamento das pesquisas eleitorais, apenas. Mas a de uma reflexão sobre as práticas sociais envolvidas na escolha de um candidato, o que descortinaria ângulos novos para a apreensão da cultura política da cidade. Indagado, por exemplo, sobre temas relativos à reforma política em discussão no Congresso Nacional, o Vice-Prefeito do Grande Méier, Carlos Bencardino, afirmou que a sua experiência como membro de diferentes administrações cariocas nos últimos 20 anos indicava que o voto distrital, por exemplo, já era uma realidade no Rio de Janeiro. Segundo ele:

é impossível, hoje, ‘carregar’ um candidato a vereador em um bairro, se ele não tem história ali [...]. Por que o Pedro Fernandes e a Rosa Fernandes têm tanto apoio em Irajá? Porque o deputado estadual Pedro Fernandes acorda todos os dias e vai comprar o pão na padaria da esquina, freqüenta a mesma barbearia há 30 anos, atende os seus eleitores na calçada [...]. O Méier também já teve grande famílias, como a do Maurício da Fonseca, que dominava a região e lutava pelo seu desenvolvimento. Era uma família historicamente vinculada ao trabalhismo, ao PTB, cujos herdeiros políticos foram o Wilmar Palis e o Gerson Assis Sampaio [...]. Hoje a região [o Grande Méier] possui 6 vereadores, um deles o Serbastião Ferraz [PSC], ligado à Igreja Universal, que só pensa em festa, em distribuição de brinquedinhos. Sem vereadores combativos na Câmara é impossível canalizar recursos públicos para a área. Todo bairro carece disso, dessa expressão do voto distrital... [Carvalho e Ruediger, 2000].

Diante dessa constatação - e independentemente das ponderações que possam ser feitas acerca dos riscos do voto distrital em uma sociedade com pequena tradição democrática -, fica desvelado um certo movimento do mundo. E se é verdade que o distrito passou a ser a esfera onde se organiza o voto, é importante que tal reconhecimento seja acompanhado de políticas de estímulo ao associativismo e à socialização cívica, a fim de que a vontade popular se expresse não como "demandas sociais" de uma clientela passiva, mas como participação política de cidadãos da República [Werneck Vianna, 2001].

O fato é que há, em curso, uma intensa organização e mobilização da sociedade em diferentes direções que, por não se tornar objeto do debate público, não "educa" a percepção da cidade sobre si e, muito menos, desenvolve as suas potencialidades, como formas embrionárias de participação cidadã. Um rápido percurso pela Linha Amarela seria, por si, eloqüente. Quem passa por ali não pode deixar de reconhecer que Del Castilho é a nova centralidade emergente na zona norte carioca. Depois do Méier, pólo tradicional do comércio suburbano e centro dinamizador de mais de 20 bairros que compõem o Grande Méier, Del Castilho vem se tornando a principal referência econômica da região. É lá que se encontram o Nova América, instalado nas dependências da velha fábrica de mesmo nome, e o Norte-Shopping, sabidamente o mais lucrativo shopping-center da cidade, que ocupa uma área de 64.000 m2 às margens da Linha Amarela e detém o recorde de maior recolhimento de ISS e de ICMS do Rio. Segundo pesquisa realizada pela EGEC, a empresa que o administra, seus consumidores são majoritariamente (53%) os jovens com até 29 anos de idade, cujo perfil social, cultural, étnico, não parece ser muito discrepante dos funcionários que os atendem [EGEC, 2000].

Del Castilho, além disso, é o local onde se instalou a Sede Mundial da Igreja Universal, cumprindo funções análogas às que o Vaticano realiza junto aos católicos, e com a monumentalidade correspondente a tais funções. A nave principal, para que se possa avaliar o seu impacto na antiga Avenida Suburbana, hoje Avenida D. Hélder Câmara, comporta um público de cerca de 20.000 pessoas sentadas em confortáveis poltronas de couro. O parque temático que está sendo construído ali - uma réplica da Jerusalém histórica - e mais o movimento incessante de viaturas que levam ao local milhares de evangélicos a cada vez, têm representado, por ora, distúrbios seríssimos no trânsito, com repercussões no fluxo habitual entre os bairros, mas, se bem equacionado, poderá significar uma expressiva injeção de recursos no pequeno comércio de rua, como, aliás, é típico das localidades que se especializam na "economia da fé", de Aparecida do Norte ao reduto cearense de Padre Cícero. Na escala da economia, strictu senso, a atividade das velhas lojas do bairro talvez não represente muito. Mas diante da projeção de ruas vazias, decadentes, escuras, sem atrativos, meras vias de acesso aos shoppings - aquelas ilhas de prosperidade encravadas no território da pobreza -, a revitalização do comércio local e o movimento de pessoas resultante disso trabalhariam, no mínimo, a favor da segurança pública.

Finalmente, é em Del Castilho que está localizada a favela Fernão Cardim, uma das que sofreram a intervenção do programa Favela-Bairro e onde, segundo informações da Secretaria Municipal do Trabalho, um conjunto de iniciativas voltadas para a geração de renda e trabalho vem sendo implementado, com amplo sucesso. Fernão Cardim é palco, hoje, de um razoável movimento de organização de cooperativas e de reativação do associativismo de moradores, cujo impacto sobre a dinâmica local vem sendo ampliado por esforços isolados, despendidos por lideranças políticas e associativas locais, como é o caso do presidente da Associação Comercial e Industrial do Méier, Tuninho Aires, empenhado em aproximar o setor privado do esforço governamental de reorganização da vida popular nas favelas do Grande Méier. As condições para isso foram, aliás, apontadas por uma das administradoras do Norte-Shopping, que, após informar sobre os programas assistenciais que o grupo mantinha junto à vizinhança, afirmou existir uma "prática informal", e ainda bastante limitada, de contratação de moradores da favela para o exercício de atividades de suporte (estacionamento e limpeza) ao funcionamento do shopping [Carvalho e Ruediger, 2000]. Mas não deixou de considerar a possibilidade de o shopping empreender uma política de recrutamento de jovens escolarizados para o seu "primeiro emprego"...

A questão a ser observada, em casos como esse, é que sozinhos, por iniciativas orientadas pelas mais diversas motivações, atores da burocracia governamental, lideranças associativas, lideranças populares, gerentes de empresas, filantropos e religiosos vêm disputando a semantização do "local" segundo os seus interesses, algumas vezes conhecendo um caminho de aproximação e de atuação conjunta, porém totalmente apartado do debate político e dos instrumentos que propiciariam o seu ingresso nas arenas decisórias do poder. Atuam como representantes do "social", para quem a democracia é uma dimensão desconsiderada, um elemento da natureza, indiferente às realizações da sua benévola missão no mundo.

Mas a história carioca não corrobora a justeza dessa indiferença em relação à política. Comparado com bairros vizinhos, o sucesso de Del Castilho evoca a importância da intervenção estatal na estruturação social e espacial da cidade. Bairro de origem industrial, seu destino terá sido traçado, a partir de meados dos anos 40, em meio à liberalização política do pós-guerra, pelo sistema previdenciário getuliano, que, com os conjuntos habitacionais dos antigos IAPIs, IAPTECs etc, conformou a fisionomia local. São construções antigas e ainda bem conservadas, com unidades residenciais amplas, jardins e praças, cuja importância foi a de ter promovido, sobre o passado fabril e suas vilas operárias, uma remodelação da planta do bairro, mantendo por ali, além da "cultura sindical", uma "cultura de vizinhança", desenvolvida entre trabalhadores de diversos setores. Não à toa, o bairro preserva uma sociabilidade densa, uma memória compartilhada sobre a fábrica Nova América e o período varguista, sobre as famílias-chave na estruturação do bairro, uma visão, enfim, sobre o passado e grandes expectativas acerca do futuro. As gerações mais recentes, se não continuaram a viver por lá, retornam com freqüência ao bairro e, segundo declarações recolhidas no local, participam das formas convencionais de encontro, das "conversas de porta" e do carteado nas mesas instaladas nos jardins que cercam os conjuntos habitacionais [Carvalho e Ruediger, 2000]. A vida suburbana, ao que parece, respira (e transpira) por aquelas mesas: sob um sol homicida, os moradores de um dos conjuntos visitados, com idades que variavam entre 80 e 30 anos, aposentados ou empregados em ocupações diversas, aproveitavam a hora do almoço para mais um dos seus encontros. E não se furtaram a conversar sobre o bairro, sobre a política de hoje em dia, sobre o seu cotidiano, sobre as histórias que os mais jovens não sabem, aproveitando para checar as suas versões sobre o passado e para socializar os novos integrantes do carteado na tradição do lugar.

Isso talvez explique a já longeva ocorrência de uma das mais fartas ofertas de instituições públicas e privadas, religiosas e laicas, dedicadas, localmente, à educação, qualificação técnico-profissional e incorporação social dos moradores do entorno. A rede de escolas públicas atende com folga à demanda local e, após o encerramento da formação de mão-de-obra patrocinada pela Nova América, a Legião da Boa Vontade, Zarur à frente, instalou ali um certo teatro de operações, que conta, atualmente, com a Supercreche Jesus e a sua escola profissionalizante para jovens carentes. A Igreja Universal, por sua vez, além de principal agência de formação de intelectuais populares, como são os seus pastores, oferece cerca de 70 diferentes cursos de formação de "produtores independentes" ou "pequenos empresários", em uma versão popular da ideologia do empreendedorismo, nova frente de atuação do Sebrae. Por fim, e mais recentemente, a Universidade Estácio de Sá ocupou um andar inteiro do Nova América Outlet com cursos universitários de menor duração, que diplomam gerentes, web-designers e especialistas em moda.

Não muito longe dali, o bairro de Bonsucesso, de igual tradição fabril mas sem a marca do Estado, viveu, com o desmonte da sua vocação original, uma tal ausência de alternativas que, hoje, no discurso de algumas de suas lideranças econômicas e associativas, assemelha-se a São Cristóvão - bairro que, segundo o diagnóstico corrente, deixa de existir a cada sábado, quando, por volta do meio-dia, o comércio "das pequenas lojinhas" encerra as suas atividades semanais. A própria legislação relativa à utilização do solo urbano, não tendo porque se alterar, preservou os terrenos de pequena frente e grande profundidade, típicos dos galpões industriais que proliferaram no lugar, constituindo uma dificuldade adicional para o desenvolvimento do bairro que, até mesmo do ponto de vista da construção civil, não demonstra ser atraente ou economicamente viável. O esvaziamento é, lá, uma palavra recorrente: esvaziamento cultural, esvaziamento econômico e, mais recentemente, demográfico, com dezenas de histórias sobre famílias tradicionais na região que passaram a procurar outros lugares para residir. Em suma, a simples comparação entre Del Castilho e Bonsucesso sugere que a reconstituição da história dos subúrbios pode ser um instrumento essencial à compreensão da dinâmica urbana no Rio de Janeiro. Somente ela poderá completar as lacunas de uma narrativa sobre a cidade que, por tempo excessivo, tem reproduzido, com suas omissões e tematizações de pertinência exclusivamente acadêmica, uma realidade invisível à sociedade e à política que se pratica no município.

De qualquer modo, fica a impressão: os subúrbios do Rio não são como os de São Paulo. Talvez a recuperação da teoria lefebvriana para a análise da periferia paulistana [Martins, 1992] faça sentido lá, onde, de fato, as margens da cidade foram ocupadas, historicamente, por um novíssimo personagem que fez valer a sua cultura e a sua identidade com base na conquista territorial, isto é, na organização de seus locais de vida e trabalho contra o Estado, contra a tradição. Não à toa, as primeiras investidas de operários comunistas pelo controle do poder local nasceram em um subúrbio de São Paulo, fronteiriço ao atual município de Santo André [Idem, p.13], curiosamente onde, décadas mais tarde, o PT encontraria sua base de lançamento. Esse, contudo, não foi o percurso clássico dos subúrbios cariocas. É claro que a presença operária foi marcante em alguns deles; mas, mesmo nestes, a sua identidade acomodou-se às vocações das antigas freguesias e interagiu com os costumes tradicionais, mais adaptando do que inovando em matéria de hábitos e socialização. Os personagens da vida suburbana carioca, portanto, jamais representaram, como na São Paulo do início do século XX, uma ameaça aguda à ordem urbano-mercantil em gestação. E o próprio Estado não os viu assim. A modernização da cidade, aqui, pôde conviver tranqüilamente com eles, reservando seus esforços coercitivos ou explicitamente repressivos para os trabalhadores concentrados no local onde se erigia a sede administrativa da República - o centro, a city. A luta pelo direito à cidade, portanto, foi territorialmente mais extensa em São Paulo, correspondendo ao que, no Rio, representaram as lutas populares pela preservação dos cortiços e cabeças-de-porco instalados nos bairros centrais.

Excetuando, pois, aquele pequeno eixo urbano e aquele breve momento de afirmação de uma cultura popular autônoma em relação ao Estado, todo o restante do município carioca ficou aberto às iniciativas de ordenamento socioespacial ditadas pela tradição. Às famílias suburbanas, vizinhanças, redes religiosas, práticas culturais e agências coletivas, inclusive as formas locais de organização operária, superpôs-se, com o tempo, a ação do Estado, com suas redes de clientela e suas políticas de incorporação tutelada dos pobres urbanos, sem colidir, porém, com a sociabilidade existente e nem exigir a liqüidação das suas práticas. É claro que, em contextos mais democráticos, ensaiava-se alguma autonomia, maior combatividade associativa, uma presença mais buliçosa do mundo popular nos fóruns organizados localmente, e que, com o fechamento político, algumas poucas famílias cumpriam o papel de gerenciadoras dos nexos entre os seus redutos - eleitorais, inclusive - e o centro decisório.

O chaguismo, aliás, terá sido a última expressão dessa arquitetura, em que a atividade modernizadora do Estado autoritário precisou contar com o substrato daquela cultura de freguesias. E, conquanto se possa lamentar os obstáculos interpostos por esse híbrido político à universalização do acesso à cidadania, o efeito positivo e imprevisto do seu exercício foi a preservação de uma trama organizacional nos interstícios da cidade, cuja história, cultura e prática não foram desorganizadas inteiramente pela lógica mercantil. A intuição de que uma sociabilidade densa ajuda a viver está ainda lá; assim como uma certa concepção de bem comum que, se não foi ainda tematizada como um valor público-político e não tem sido associada à democratização da vida republicana, é, contudo, um estoque de capital social em estado bruto, a ser lapidado por atores e institutos emergentes com a nova institucionalidade derivada da Constituição de 1998. Os temas da descentralização do governo local, com a organização de conselhos e a mobilização dos citadinos à participação, bem como o da combinação entre as instituições da democracia representativa e as da democracia deliberativa são, hoje, recorrentes na teoria e na prática democráticas. Mas aqui, como em todos os demais contextos, sua viabilidade depende de um diagnóstico público e preciso sobre as condições de seu funcionamento. Essa, portanto, talvez seja a grande convocação para a elaboração de uma história dos subúrbios cariocas, onde mais fortemente se vislumbrariam as marcas da trajetória brasileira de democratização progressiva do legado da tradição. A recomendação, nesse caso, é a de que valham os ensinamentos das últimas décadas e que, na análise dos subúrbios como na das favelas, o reconhecimento da diversidade de situações imponha o tratamento plural dos bairros do Rio, cada um deles com sua respectiva memória e suas potencialidades específicas.

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Maria Alice Rezende de Carvalho é professora do Iuperj.

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Bibliografia

Carvalho, Maria Alice R. de & Ruediger, Marco Aurélio (2001). "Linha Amarela: democracia e desenvolvimento local". Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Iuperj, mimeo.

EGEC (2000). Material de divulgação. Rio de Janeiro, mimeo.

Lessa, Carlos (2000). Palestra proferida no Seminário "Rio de Janeiro - que perspectivas?". Rio de Janeiro: Iuperj.

Martins, José de Souza (1992). Subúrbio. Vida cotidiana e história no subúrbio da cidade de São Paulo: São Caetano, do fim do Império ao fim da República Velha. São Paulo/Caetano do Sul: Hucitec/ Prefeitura de Caetano do Sul.

Preteceille, Edmond e Valladares, Lícia (2000), "Favela, favelas: unidade ou diversidade da favela carioca". In: Ribeiro, Luiz Cesar Q. (org,). O futuro das metrópoles: desigualdades e governabilidade. Rio de Janeiro: Revan.

Ruediger, Marco Aurélio (2000). Atratividade e justiça na cidade pós-industrial: uma análise política do desenvolvimento local no Rio de Janeiro. Tese de doutorado, Rio de Janeiro: Iuperj, mimeo.

Werneck Vianna, Luiz (2000). Entre duas repúblicas.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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