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Entre a revolução e a democracia política

Gildo Marçal Brandão - Outubro 2006
 

Revista História Viva. A esquerda no Brasil - uma história nas sombras. Temas Brasileiros, n. 5. São Paulo: Duetto Editorial, out. 2006. 106p.

Como tratar a história da esquerda em um momento em que ninguém mais duvida que estamos vivendo o (começo do) fim do terceiro ciclo histórico da brasileira (o primeiro foi o dos anarquistas, o segundo o dos comunistas, o terceiro o dos petistas)? Evitamos aqui o necrológio e a profecia. Tentamos apanhá-la como coisa viva, não como sopa de letrinhas ou seqüência de disputas teológicas que só interessam ao crente. Procuramos enfatizar as idéias, o modo como as correntes se organizaram em partidos, seitas e movimentos, os grupos sociais nos quais recrutaram seus políticos e eleitores, como se relacionaram com as demais forças políticas, aliadas ou adversárias, e, sobretudo, como influenciaram a política brasileira e foram influenciados por ela. Pois não dá para escrever a história política do século XX sem fazer simultaneamente a da esquerda - no mundo como no Brasil.

O quadro não pretendeu ser exaustivo. Muita coisa ficou de fora, pois o objeto é amplo e diversificado. De fato, uma das características da esquerda brasileira é que ela sempre foi um conglomerado de tendências e de correntes de opinião, um conjunto de forças ligadas a classes sociais diversas e com interesses por vezes pouco compatíveis entre si, uma corrente de massa que raramente conseguiu expressão político-institucional permanente (pois a ilegalidade mata!), e cujos únicos núcleos estáveis e consistentes foram, cada qual em sua época, o Partido Comunista e o Partido dos Trabalhadores.

Há um evidente predomínio do PCB porque durante a maior parte do tempo ele foi "a" esquerda no Brasil, ainda que não tenha sido irrelevante a presença dos socialistas e dos trotskistas. Mas o PC foi o agrupamento mais organizado e socialmente enraizado, exerceu grande atração sobre os intelectuais e influência política e ideológica desproporcional em relação à sua efetiva força sindical e eleitoral. Sua dupla condição de delegado local da III Internacional e virtual detentor do monopólio do marxismo foi circunstância determinante - sem ela dificilmente teria ocupado o posto central no campo político que se atribuía dupla fidelidade, ao internacionalismo e aos "melhores interesses" da nação. Além disso, é nele que as vicissitudes da relação entre esquerda e democracia melhor e mais dramaticamente se expressaram - para o bem e para o mal.

Outras organizações e correntes estão contempladas, com destaque para o socialismo e o anarquismo dos primeiros anos, as organizações que se lançaram à luta armada e para a esquerda cristã e católica. Neste último caso, não se trata apenas das Comunidades Eclesiais de Base, mas da Ação Católica (JEC, JUC e JOC) dos anos 60, e especialmente da Ação Popular. Na verdade, sem o ônus do comunismo e com capacidade de entusiasmar a juventude, esse catolicismo foi o segundo grande tronco da esquerda no Brasil. Sem a transfusão de sangue obtida da AP de origem católica, o PCdoB, dissidência então maoísta do partido de 1922, provavelmente não teria sobrevivido. Além disso, não dá para pensar o PSDB e o PT das últimas décadas sem os quadros de origem católica.

O fenômeno do petismo é o mais próximo de nós. Será o mais difícil ou o mais fácil de ser analisado? Como se haver com sua formidável transformação quando chegou (ou antes de chegar?) ao poder? De qualquer maneira, nascido na contramão do recuo mundial da esquerda, seu amálgama entre sindicalistas, militantes de comunidades eclesiais de base, de movimentos sociais reivindicativos e remanescentes da esquerda armada resultou em poderosa experiência, diferenciada no panorama internacional. O PT nunca foi um partido "programático" como o PC, mas em seu curto espaço de vida dispôs de bases sociais e êxito eleitoral que aquele jamais desfrutou. A razão pode estar no próprio sujeito, mas também na sua relação com a época - afinal, viver na legalidade e na democracia faz diferença até para quem imaginou prescindir delas.

Para o bem e para o mal, o restante da esquerda se fez afirmando ou negando o modo de ser e de fazer política do PC, da AP e do PT, são realizações parciais das idéias universais e nacionais que neles foram mais desenvolvidas. Aos trotskistas caberia, é verdade, um espaço maior, em parte porque durante muito tempo foram, na esquerda, a solitária e necessária crítica ao PC; em parte porque a influência de suas idéias na produção acadêmica das ciências sociais não foi irrelevante, e terceiro porque, a julgar pela presença de tantos de seus (ex-)militantes no governo Lula, estão longe de ser passado. Também as organizações que se notabilizaram na luta armada contra a ditadura mereceriam uma análise mais detalhada, apesar de terem existido apenas em e para um momento específico da vida brasileira, tendo se esgotado com ele e sob o sol da democracia.

Finalmente, houve a preocupação de voltar a pôr em pauta a questão da relação entre a esquerda e a democracia. Se há alguma lição a tirar dessa longa, bruta, mesquinha e grandiosa história talvez seja a de que podemos hoje não saber exatamente quem é de esquerda e o que é a esquerda, mas seguramente não poderá haverá futuro para ela que não seja como casaco de ferro da democracia política e da (r)evolução democrática.

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Gildo Marçal Brandão é professor do Departamento de Ciência Política da USP, coordenador científico do NADD-USP e secretário-adjunto da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - Anpocs. Este texto também foi publicado em La Insignia.



Fonte: Gramsci e o Brasil & História viva.

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