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Lenin e o programa agrário da socialdemocracia

Fabrício Pereira da Silva - Outubro 2006
 

Após as últimas desventuras do chamado "socialismo real", a obra de Vladimir Ilitch Ulianov (Lenin) foi encoberta por uma pesada névoa de deliberado esquecimento. No campo político, poucos são no momento os que se declaram herdeiros de sua doutrina, assim como os partidos que se inspiram em suas proposições organizativas. Mas menos ainda se fala de outro esquecimento em relação a este autor: o da intelectualidade e da "academia".

Lenin, ao mesmo tempo grande teórico do marxismo e principal líder da revolução socialista que marcou o século XX, não se furtou, em seus escritos sempre voltados para a ação, a analisar a realidade que pretendia transformar, vendo-se impelido a formular teoricamente. Para isso, bebeu diretamente na fonte de Karl Marx e Friedrich Engels e também no marxismo da Segunda Internacional, mas adaptou aquela tradição heterodoxamente à realidade russa, aplicando "a teoria de Marx às condições originais da Rússia (nossa teoria - ensinaram sempre Marx e Engels - não é um dogma, mas um guia para a ação)" [1].

Não há dúvida de que Lenin ainda tem o que oferecer. Nestas páginas me atenho às suas formulações teóricas e destaco dois aspectos: sua influência no pensamento ao longo do século XX; e a ajuda que ainda pode dar para a compreensão da nossa realidade (e especificamente da realidade brasileira). Nesse sentido, uma das obras mais marcantes deste intelectual russo é O programa agrário da socialdemocracia na Primeira Revolução Russa de 1905-1907 - escrito ainda em 1907 e reeditado no Brasil em 2002 depois de mais de duas décadas afastado das prateleiras.

Trata-se da proposta de programa agrário para o Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSR). À luz da análise crítica dos acontecimentos dos dois anos anteriores, Lenin pretendia substituir o programa agrário do partido, de inspiração menchevique (grupo moderado majoritário no partido, ao qual se opunham os bolcheviques liderados por Lenin). Na obra, Lenin destaca a centralidade da questão agrária na formação do capitalismo. Do caminho tomado pelo desenvolvimento do capitalismo no campo dependeria em grande medida a configuração assumida pelo sistema num dado Estado nacional.

A seguir, apresento as idéias centrais da obra, os pontos principais de sua argumentação, destacando alguns aspectos relevantes para o debate acerca do desenvolvimento capitalista ao longo do século XX e nos dias de hoje.

Lenin, como na grande maioria dos escritos marxistas, inicia sua obra pela análise das bases econômicas da Rússia na virada do século XIX para o XX. É a partir dessa base que se formula o programa que, dentro das possibilidades dadas, busca apresentar o melhor caminho para o desenvolvimento russo do ponto de vista do proletariado - o qual o POSR (e os bolcheviques) se propunha representar e dirigir. Segundo Lenin, o regime de posse de terras russo ainda tinha características feudais em primeiro plano - apesar do avanço lento, mas consistente, do capitalismo no campo russo desde meados do século anterior. Essa base feudal no campo - latifúndios feudais que obtinham rendimentos a partir da exploração de trabalho em moldes "medievais" - estava intimamente ligada à superestrutura política czarista, igualmente permeada por elementos feudais.

O que Lenin argumenta é que a Rússia caminhava para o capitalismo, e a produção agrária em bases feudais seria inexoravelmente substituída por uma produção em moldes capitalistas. Tal processo dava seus passos decisivos no campo, mas o desenvolvimento poderia se realizar por duas vias: "reformista" ou "revolucionária".

O desenvolvimento burguês pode verificar-se tendo à frente as grandes propriedades dos latifundiários, que paulatinamente se tornariam cada vez mais burguesas e substituiriam os métodos feudais de exploração pelos métodos burgueses; e, também, pode verificar-se tendo à frente as pequenas explorações camponesas, que, por via revolucionária, extirpariam do organismo social a "excrescência" dos latifúndios feudais e, sem eles, se desenvolveriam livremente pelo caminho da agricultura capitalista dos granjeiros [2].

A primeira via foi inspirada pelo desenvolvimento prussiano do capitalismo, no qual os latifúndios feudais alemães se metamorfosearam lentamente em capitalistas, enquanto se dava a expropriação camponesa com apoio estatal. A segunda via, por sua vez, foi inspirada no desenvolvimento norte-americano do capitalismo, no qual os grandes latifúndios com elementos feudais do Sul foram expropriados pelo Estado durante a Guerra Civil (1861-1865), prevalecendo assim o camponês lentamente metamorfoseado em granjeiro capitalista.

A Rússia naquele momento ainda estava diante das duas possibilidades [3]. A transição para o capitalismo era um processo em curso. Restava saber para qual alternativa a Rússia penderia. Tal situação implicava, segundo o ponto de vista marxista (ou leituras mecanicistas da teoria marxista?), que o socialismo só estaria na ordem do dia quando um desenvolvimento capitalista pleno gerasse as condições objetivas para essa transição. Assim, o proletariado e seu partido teriam que estar engajados na luta burguesa, ainda que sem colocar seu destino nessa luta e sem ficar a reboque da burguesia.

É por isso que Lenin define sua preferência por uma versão da via "norte-americana" adaptada às características russas. Esta via acabaria mais rapidamente e com mais vigor com os elementos feudais no campo, enquanto a outra seria lenta e incompleta. A via "norte-americana" só poderia se dar através de uma aliança entre operários, camponeses e pequenos proprietários; a outra teria o apoio da grande burguesia (incapaz de se engajar num momento de desenvolvimento mundial do capitalismo monopolista ao lado dos camponeses), dos latifundiários feudais e do Estado czarista. Estes atores já vinham se manifestando e agindo a favor de um desenvolvimento nos moldes prussianos, enquanto boa parte dos primeiros vinha exigindo uma revolução agrária.

Definida a preferência pela via "norte-americana", que levaria a Rússia mais rapidamente ao pleno desenvolvimento capitalista de suas forças produtivas - levando também o país mais rapidamente (mais favoravelmente para o proletariado) às portas do socialismo -, Lenin se dedica a encontrar a fórmula mais adequada para a consecução de tal caminho na realidade russa. Entre outras, duas propostas principais vinham sendo aventadas. Uma vinha sendo posta em prática pelos latifundiários feudais com apoio do Estado czarista:

O que é nossa "grande" reforma camponesa, o arrebatamento da terra dos camponeses, o estabelecimento dos camponeses em "terras medíocres", a implantação do novo regime agrário mediante a força militar, os fuzilamentos e castigos corporais? É a violência exercida pela primeira vez em massa contra os camponeses, em favor do capitalismo nascente na agricultura. É a "limpeza das terras" pelos latifundiários para o capitalismo [4].
A outra proposta era apresentada pelos trudoviques (representantes do campesinato): "E o que é esta estatização da terra proposta pelos trudoviques na Revolução russa? É a ‘limpeza das terras’ feita pelos camponeses para o capitalismo" [5].

O que Lenin faz é entender a proposta de estatização como a mais interessante para o proletariado e dar-lhe conteúdo marxista. Com a estatização, seriam eliminados os elementos feudais que diferenciavam os camponeses e os prendiam aos costumes, práticas e dependências feudais, aos elementos "medievais" das comunidades e instituições do interior da Rússia. Seria feita tábula rasa disso tudo, dando lugar rapidamente às diferenciações produzidas pelo capitalismo: no caso, nas palavras de Lenin, entre os granjeiros e os "restos imprestáveis". Lenin argumentava que a estatização - com a conseqüente eliminação da propriedade privada da terra - seria a única forma de libertar o campo russo do feudalismo.

Por mais surpreendente que possa soar a ouvidos do século XXI, Lenin busca demonstrar que essa proposta era absolutamente adequada aos moldes capitalistas. A terra estatizada estaria livre das determinações feudais ainda dominantes, "limpa" para a implantação de um capitalismo mais avançado. Lenin nos lembra que o granjeiro também é um elemento capitalista e que uma revolução agrária em tais moldes era capitalista, independentemente da participação da grande burguesia e seus representantes liberais. E afirma que tal forma seria mesmo a ideal do ponto de vista da produção capitalista nos países mais avançados - não fosse o interesse então crescente da grande burguesia nas propriedades rurais, sua "territorialização".

A produção das terras estatizadas seria organizada em moldes capitalistas e favoreceria o surgimento de granjeiros livres - apesar de não-proprietários. "Sob as relações capitalistas, a estatização da terra é a entrega da renda ao Estado, nem mais nem menos. [...] o Estado recebe a renda dos empresários agrícolas, que pagam um salário aos operários e obtêm o lucro médio de seu capital: lucro médio em relação a todas as empresas agrícolas e não agrícolas" [6]. O surgimento desses granjeiros poderia mais tarde levar à pressão pela partilha de terras. É uma situação que não deveria ser apoiada pela classe operária e por seu partido operário - estes deveriam apoiar os elementos burgueses enquanto eles cumprissem um papel histórico revolucionário, mas não mais quando começassem a dar sinais de acomodação e a demonstrar interesses "restauradores".

Lenin pretendia combater os programas agrários de diversas forças políticas russas, que, ainda que não defendessem abertamente os grandes interesses latifundiários, propunham soluções como a partilha de terras, o controle das terras por instituições comunais da velha Rússia agrária ou a municipalização. Esta última era a proposição do POSR, a proposta menchevique tornada oficial pela hegemonia desta força na estrutura partidária naquele momento. Seguindo o raciocínio de Lenin, qualquer uma dessas propostas seria incompleta, reformista, anti-revolucionária. A primeira somente cristalizaria relações de dependência feudais. A segunda quase congelaria formas sociais e instituições de velha Rússia. A terceira depositaria a (não) resolução do problema agrário russo em suas instituições locais e não colocaria em questão a tomada do poder central.

Aqui se chega a um elemento importante do programa agrário proposto por Lenin: a estatização pressupunha naturalmente a conquista revolucionária do poder central pelo proletariado em aliança com o campesinato. Este último se configurava como uma camada da burguesia, e o poder central constituído por essas forças, naquela quadra histórica, seria uma "república burguesa". Mas deveria ter a hegemonia do proletariado, já que o campesinato torna-se desunido num contexto capitalista devido à produção mercantil na qual está engajado. Esta era a alternativa que se colocava ao desenvolvimento da monarquia (igualmente burguesa) dos latifundiários: a revolução democrático-burguesa (ainda que a mais radical e sem a participação da grande burguesia), antes do advento do socialismo.

Vale destacar uma vez mais que a proposta de Lenin estaria adequada àquele momento do desenvolvimento capitalista da Rússia e a um dado momento histórico do desenvolvimento mundial do capitalismo. Mesmo estando adequada à realidade, ou seja, garantidas suas condições "objetivas", ainda restaria considerar até que ponto haveria condições "subjetivas" para sua consecução - certamente estas não estariam dadas segundo a visão leninista, entre outras razões porque o partido operário não assumia tais propostas.

Deve-se observar também que naquele momento já se colocava na ordem do dia, nos países de capitalismo avançado, a questão da "socialização da produção agrária", ou seja, a revolução socialista no campo. Ocorre que, naquele estágio do desenvolvimento capitalista russo, tal proposta estaria fora de lugar. Mas não alguns anos depois, como Lenin destaca no posfácio escrito em 1917 (às vésperas da Revolução Socialista Russa). Então, a Primeira Grande Guerra havia acelerado o desenvolvimento do capitalismo a tal ponto que ele teria passado de "monopolista" a "monopolista de Estado"; assim, a estatização se convertia em um passo na direção do socialismo, devendo ser baseada agora no desenvolvimento de "granjas-modelo" controladas pelos sovietes de operários rurais.

Um programa deve se adequar às condições que quer transformar. É extremamente mutável, portanto. Dessa forma, de que vale lê-lo um século depois, em condições tão diversas? Para além da clareza e vigor literários que lhe são peculiares (e descontadas certas simplificações e "mecanicismos" comuns à leitura do marxismo no princípio do século XX), Lenin logra adaptar uma teoria originalmente gestada no centro do capitalismo a um contexto periférico. Consegue compreender uma realidade em muitos aspectos ainda pré-capitalista ("oriental", no dizer de Antonio Gramsci) pela ótica de uma teoria voltada para a superação do capitalismo - e o consegue sem diluir a teoria em sua essência.

Acima de tudo, merece destaque a elaboração das noções de via "norte-americana" e "prussiana" do desenvolvimento capitalista. Tal noção, mais tarde relida por Gramsci em seus Cadernos do cárcere respectivamente como via "ativa" e via "passiva", se mostrou útil para a compreensão do desenvolvimento do capitalismo em outros países ao longo do último século.

Essa teoria foi decisiva para o entendimento do processo de desenvolvimento capitalista brasileiro, que se deu pela via "prussiana" definida por Lenin. A sociedade brasileira (e seu Estado) se modernizou a partir de uma série de reformas "pelo alto", num processo de "modernização conservadora", sem passar por uma revolução política de tipo "jacobino".

Há toda uma tradição do pensamento social brasileiro que compreendeu a transição brasileira à modernidade capitalista (já completa) a partir dessa chave. Para citar apenas dois autores, Florestan Fernandes, em A revolução burguesa no Brasil, já lançava mão dela ao compreender a modernização capitalista brasileira como um processo de longa duração, conservador, sem marcos factuais tão definidos - uma "revolução sem revolução". Luiz Werneck Vianna, em Liberalismo e sindicato no Brasil, empregou essa categoria analítica "como recurso de interpretação para o processo de modernização autoritária desencadeado no Brasil, sob a égide do Estado corporativo da década de 30" [7]. Vianna notou a manutenção dessa chave de "revolução conservadora" ao longo de toda a história brasileira (na qual "qualificam-se como revolução movimentos políticos que somente encontraram a sua razão de ser na firme intenção de evitá-la, e assim se fala em Revolução da Independência, Revolução de 1930, Revolução de 1964") [8].

A formulação teórica de Lenin desenvolvida neste O programa agrário da socialdemocracia na Primeira Revolução Russa de 1905-1907 serviu, nas últimas décadas, de inspiração para a compreensão das diferentes formas de modernização capitalista, bem como de suas consequências em cada caso. São ainda úteis, agora que tal processo basicamente se consumou, não apenas para um olhar voltado à compreensão do passado, mas igualmente para um melhor entendimento do presente - e da natureza de suas graves distorções e assimetrias.

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Fabrício Pereira da Silva é historiador e mestre em História Social pela UFRJ.

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Notas

[1] Lenin, Vladimir Ilitch. O programa agrário da socialdemocracia na Primeira Revolução Russa de 1905-1907. Goiânia: Alternativa, 2002, p. 225.

[2] Ib., p. 28-9.

[3] A via "norte-americana" ainda era viável devido à grande reserva de terras inexploradas na imensidão do campo russo.

[4] Lenin, Vladimir Ilitch, op. cit., p. 66.

[5] Ib., p. 67.

[6] Ib., p. 88.

[7] Vianna, Luiz Werneck. A revolução passiva - iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 7.

[8] Ib., p. 12.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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