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O "vintismo" e a criação da política no Brasil

Gildo Marçal Brandão - Novembro 2006
 

Denis Antônio de Mendonça Bernardes. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo: Hucitec, 2006.

Sob qualquer aspecto que se considere, este O patriotismo constitucional, de Denis Antonio de Mendonça Bernardes, é um livro audacioso. Começa que é uma tese quase antibraudeliana, concentrada no tempo curto, não na longa duração, recusando tratar a política como manifestação epidérmica de fenômenos estruturais mais profundos, quase geológicos. E bate de frente com grande parte da historiografia da Independência, marcada de maneira apologética ou crítica, tanto faz, pela tese da existência de um movimento que necessariamente culminaria num determinado resultado, o 7 de setembro.

Seu objeto é a "experiência política mais avançada que a constitucionalização do Reino havia propiciado", a da Junta de Governo presidida por Gervásio Pires Ferreira em Pernambuco, que Pedro I e José Bonifácio não podiam nem queriam tolerar. Seu problema, explicar o impacto do "vintismo no Brasil", explorar as alternativas suprimidas, as possibilidades institucionais abertas abaixo da linha do Equador pela crise política do antigo sistema colonial. O "vintismo" não é encerrado em sua dimensão recolonizadora, mas analisado pelo que significou de destruição do território colonial, de corrosão das estruturas políticas e ideológicas da monarquia portuguesa, de despertar e mobilização inédita de atores sociais variados e, sobretudo, como campo de experimentação política, refundação das instituições de um lado do Atlântico e criação do espaço da política do outro.

Erudito, manipulando vasta documentação, relendo atentamente a antiga, Denis Bernardes fornece um retrato muito mais complexo do processo de gestação do Estado político brasileiro e, no caminho, desmonta a "armadilha" da independência que ressalta o papel do centro e reduz Caneca, Gervásio Pires e outros ao papel de "liberais radicais", idealistas constitucionais, reificadores institucionais, separatistas. Mas não opõe ao regionalismo que se vende como nacional uma perspectiva igual e inversamente regionalista. Antes, o que está em pauta - é esta a sua tese - é o problema hobbesiano do contrato, da representação como autorização. O modo como ele será resolvido define, daí por diante, os estreitos limites em que a experiência política brasileira evoluirá. Mas o que ocorreu não foi apenas a reiteração do mesmo, a reafirmação das origens, o povo bestializado, a jornada de idiotas.

Da minha geração nordestina dos anos 1960, Denis Bernardes era seguramente o mais talentoso. Ao contrário dos que fazíamos filosofia ou ciências sociais, onde a retórica predominava ou os programas de pós-graduação e pesquisa sistemática apenas começavam, Denis se beneficiava da existência de sólida tradição historiográfica no Recife, aliás, a única área das ciências humanas em que Pernambuco jamais perdera posição de vanguarda. E foi discípulo de José Antonio Gonsalves de Melo - mas um Gonsalves de Melo que se reinventou nas águas de Karl Marx. Tudo somado, talvez seja essa combinação que explica a consistência empírica, profundidade analítica e beleza expositiva desse livro inovador.

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Gildo Marçal Brandão é professor do Departamento de Ciência Política da USP, coordenador científico do NADD-USP e secretário-adjunto da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - Anpocs. Este texto também foi publicado em La Insignia.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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