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Um outro onze de setembro

Ferreira Gullar - Dezembro 2006
 

Quando cheguei a Santiago do Chile, em maio de 1973, vindo de Moscou, encontrei o país praticamente parado por uma greve de transportes que só terminaria na tarde do dia 11 de setembro, após consumado o golpe militar que derrubara Allende. Falava-se que a embaixada norte-americana financiava os caminhoneiros, com cinco dólares por cabeça, o que não era pouco, uma vez que eu pagava dois dólares pelo aluguel de um apartamento duplex de três quartos, na avenida Providência; a inflação galopante pulverizara o peso chileno. Agora, com a morte do general Pinochet, a memória me faz reviver aqueles dias avassaladores.

Não demorei muito a perceber que a situação de Allende era insustentável, ao contrário de outros exilados que, já enraizados no Chile e necessitando acreditar no melhor, achavam que a hipótese do golpe era praticamente inexistente. "O Exército chileno é profissional", garantiam. Mas a realidade dizia outra coisa: o desabastecimento provocado deliberadamente pelos ricos, comprando e estocando as mercadorias, esvaziava os supermercados; ninguém conseguia encontrar carne, frango, leite em pó, açúcar, arroz, café, cigarros, papel higiênico... O governo foi obrigado a criar um sistema precário de abastecimento, apoiado no pequeno comércio dos bairros.

Uma vez por mês, eu entrava na fila de uma pequena mercearia em frente à minha casa para comprar o mínimo permitido. Enquanto isso, os atentados se sucediam, promovidos por uma organização de extrema direita, chamada Patria e Libertad. Certa noite, quando Allende falava à nação, a transmissão saiu do ar e o país mergulhou nas trevas, porque a torre central da rede de energia fora implodida.

Enquanto isso, o Exército fazia incursões nas fábricas e apreendia armas ali guardadas pelos operários. Um livro publicado por uma editora do governo denunciava O'Higgins, o pai da pátria chilena, como traidor do povo, o que deixou indignados os militares. Como se não bastasse, o partido socialista apresentou um projeto no Congresso para instituir no país um programa de ensino marxista, provocando a ira dos democrata-cristãos, que até então apoiavam Allende; os moços da juventude católica espalharam mesas por toda a cidade para colher assinaturas contra o projeto. Para culminar, em junho daquele ano, um grupo de jovens oficiais se sublevou. Ao ouvir pelo rádio o presidente da República rogando às pessoas que saíssem às ruas, valendo-se de paus ou pedras, para enfrentar os golpistas, convenci-me de que ele estava com os dias contados.

Dirigi-me ao palácio La Moneda, sede do governo, como centenas de outras pessoas, solidárias com o presidente. A certa altura, soube-se que uma coluna de tanques vinha em direção ao palácio, mas, ao contrário do que supúnhamos, os tanques vieram reafirmar a autoridade de Allende. A sublevação fora debelada. O susto passou, mas fiquei mais preocupado ainda: teria sido o fim ou o começo do processo golpista?

Dia 10 de setembro, data de meu aniversário, Tereza e meus filhos me ligaram do Brasil. Perguntaram quando iriam se juntar a mim no Chile. "É bom darmos dar um tempo", respondi. "Temo pelo que possa ocorrer aqui." No dia seguinte, às seis da manhã, começou o golpe, com o levante de uma base da Marinha em Valparaíso. Saíra para comprar um litro de leite e, ao voltar, um homem muito nervoso me disse: "O Exército cercou La Moneda. É o fim de Allende". Subi correndo as escadas, entrei no apartamento e liguei o rádio: com voz desesperada, o presidente chileno denunciava a traição dos militares golpistas e afirmava que só morto deixaria o palácio.

Horas depois, estava morto. As emissoras de rádio, ocupadas pelos militares, sugeriam à população que denunciasse os estrangeiros "terroristas", especialmente os brasileiros, que estavam no Chile para implantar o comunismo. Dois dias depois, recebi um telefonema ameaçador dando-me o prazo de um dia para deixar o apartamento. Por duas vezes, fui visitado por militares armados que hesitaram em prender-me quando lhes provei que era membro do Colégio de Periodistas de Chile, entidade jornalística de direita. Antes que voltassem pela terceira vez, tratei de obter um salvo-conduto e cair fora do inferno.

Àquela altura, assumira o poder o general Augusto Pinochet, o mesmo que chegara a La Moneda à frente daquela coluna de tanques para dar garantias ao presidente Allende. Implantaria uma das mais sangrentas ditaduras de que se tem notícia em nosso continente.

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Ferreira Gullar é poeta.



Fonte: Folha de S. Paulo, 17 dez. 2006.

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