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Enrico Berlinguer - 1979-1984

Marco Mondaini - Março 2007
 

A presente antologia berlingueriana compreende três blocos de textos, correspondentes a três períodos distintos da sua liderança à frente do PCI:

1) 1969/1971 - Berlinguer vice-secretário;

2) 1972/1978 - Berlinguer secretário-geral (1a fase): os anos do "compromisso histórico" e da "solidariedade nacional"; 

3) 1979/1984 - Berlinguer secretário-geral (2a fase): os anos da "alternativa democrática" e da "renovação da política", bloco que se segue imediatamente abaixo.

1. As três fases da história da luta do movimento operário. A terceira via entre comunismo e socialdemocracia [1]

A passagem de 1978 para 1979 traz uma crise sem precedentes para o PCI berlingueriano. No plano interno, com o seqüestro e morte de Aldo Moro - como será visto no próximo texto -, a estratégia do "compromisso histórico" começa a perder adeptos dentro e fora do partido, passando a receber severas críticas das mais variadas direções.

O declínio da força do PCI é claramente observado na tríplice derrota eleitoral sofrida no mês de junho, quando em pleitos seguidos (Parlamento italiano no dia 3, Parlamento europeu no dia 10 e região sarda no dia 17) cai, respectivamente, para a casa de 30,4%, 29,5% e 26,28%, um recuo médio em torno de 5% em relação às eleições anteriores.

Além dos opositores internos, é claro que tal derrota agradava muito não apenas ao governo estadunidense, mas também às lideranças do PCUS e da URSS. A desconfiança dos soviéticos em relação à forma como o PCI desenvolvia sua política pode ser muito bem compreendida com a leitura do discurso de abertura feito por Enrico Berlinguer no XV Congresso do seu partido, no início da primavera européia de 1979.

Então, Berlinguer revela abertamente simpatia pela proposta de "terceira via" entre o comunismo e a socialdemocracia, uma proposta que deveria ser mais bem esclarecida do ponto de vista histórico, através da delimitação das várias fases históricas da luta do movimento operário: primeira fase - a experiência da Segunda Internacional; segunda fase - o período aberto com a Revolução Russa de 1917; terceira fase - o momento aberto com a preocupação dos partidos e movimentos localizados na Europa Ocidental de afirmar um socialismo na democracia e liberdade.

Claro está que, com isso, Berlinguer retomava o desejo de dar vida ao projeto eurocomunista - isto, porém, num instante em que o mesmo também começava a descer a ladeira.

[...] Nossa via para o socialismo origina-se, antes de tudo, da nossa história e vincula-se às nossas condições nacionais. Existem, porém, entre a nossa situação e a dos outros países capitalistas da Europa Ocidental, traços básicos comuns. "A reflexão dos comunistas encontrou-se nos últimos anos com a que estavam desenvolvendo, de modo autônomo, outros partidos comunistas da Europa Ocidental e de países como o Japão. Mesmo na diversidade histórica e de orientação em que operam, foi se afirmando a convicção comum de que a luta pelo socialismo e sua construção devem acontecer com a plena expansão da democracia e de todas as liberdades. É esta a escolha do eurocomunismo". Esta definição contida no projeto de tese nos parece clara e deve ser confirmada.

Falou-se também de "terceira via". Trata-se de uma expressão afortunada; trata-se de uma imagem - reconhecemos - um pouco aproximativa, mas que acabamos por acolher porque se tornou de massa e simples. Ela requer, porém, alguns esclarecimentos.

As vias para o socialismo, ainda que não sejam infinitas, são certamente muitas e cada vez mais numerosas. Não pretendemos indicar mais um modelo, que desvalorize todos os outros. Em vez disso, referimo-nos ao desenvolvimento histórico do socialismo. Tivemos primeiro a experiência da Segunda Internacional: a primeira fase da luta do movimento operário para superar o capitalismo. É a fase dos partidos socialistas e socialdemocratas, que, surgidos ao final do século XIX, foram protagonistas do despertar da consciência de classe e de organização para o resgate político de milhões de explorados. Mas esta experiência chega a uma dramática crise e entra em colapso com a Primeira Guerra Mundial e os nacionalismos.

A segunda fase foi aberta com a Revolução Russa de Outubro. A Revolução Russa de Outubro, o pensamento e a obra de Lenin assinalaram um divisor de águas na história contemporânea e no caminho da humanidade.

Com o projeto de tese fica claro que nossas contribuições para uma pesquisa crítica sobre determinados aspectos da história e da realidade da União Soviética apóiam-se na consciência não apenas do valor de Outubro, mas da validade - nas condições que se criaram - da grande escolha da construção do socialismo em um só país e da importância da edificação das sociedades novas: como disse, acontecimentos a partir dos quais teve início o processo revolucionário mundial.

E é no contexto desta visão que se inserem nossas observações relativas à exigência de que, na União Soviética e em outros países socialistas, sejam superadas as contradições entre as potencialidades democráticas implícitas na revolução socialista e os obstáculos ao pleno desenvolvimento de uma vida democrática.

Mas estamos convencidos de que o essencial, hoje, reside em outro ponto: reside na tarefa de levar adiante o processo revolucionário mundial por novos caminhos, que levem em consideração e valorizem a experiência das duas precedentes fases e a reflexão crítica sobre elas. É certamente necessário que o movimento comunista, revolucionário e operário, em toda parte do mundo, nos seus variados componentes autônomos, encoraje, estimule, favoreça a pesquisa de caminhos novos de avanço para o socialismo e de construção do socialismo. Exatamente sob este aspecto, é de decisiva importância a tarefa do movimento operário da Europa Ocidental. Trata-se de preencher uma lacuna histórica e um atraso que pesou e continua a pesar sobre o complexo desenvolvimento do socialismo no mundo.

A intuição do valor que a afirmação do socialismo no Ocidente europeu teria para a própria experiência iniciada com a Revolução de Outubro estava sempre presente e viva em Lenin. Basta esta sua citação: "Não impomos nossa via aos outros países [...]. No Ocidente, far-se-á de outra forma. Talvez cometamos erros, mas esperamos que o proletariado do Ocidente os corrija. E, por isso, nos dirigimos ao proletariado europeu, pedindo-lhe que nos ajudem no nosso trabalho".

Na época atual, o avanço do socialismo na Europa Ocidental constitui uma importante contribuição à superação da crise da distensão, ao estabelecimento de uma relação orgânica de aliança do movimento operário com os povos dos países subdesenvolvidos e com as massas marginalizadas, à realização do conteúdo novo que deve ter a estratégia da paz. Isto deterá o declínio da Europa, restituindo-lhe uma função de primeiro plano no progresso da civilização e na garantia de um novo desenvolvimento do socialismo como afirmação completa de justiça, democracia e liberdade.[...]

2. O declínio do compromisso histórico. O risco da crise dos grandes partidos de massa [2]

Conforme assinalamos acima, o seqüestro e a morte do líder democrata-cristão Aldo Moro representam um marco divisório na estratégia do "compromisso histórico". Sem a presença de Moro como interlocutor privilegiado, Berlinguer começou a perceber muito rapidamente que a proposta de formação de um governo de "solidariedade nacional", com a presença de representantes comunistas, estava fadada ao fracasso, abrindo espaço, assim, para a apresentação da idéia de um governo novo de "alternativa democrática".

Na verdade, nas bases do PCI, há muito já era reinante o sentimento de insatisfação com o discurso de unidade nacional e com a participação do partido numa maioria governamental encabeçada pela Democracia Cristã.

Assim, quando em 25 de janeiro Berlinguer comunica a Giulio Andreotti, presidente do Conselho de Ministros, que o PCI não mais faria parte da maioria, não apenas se encerra um triênio inesquecível na história do partido - um ciclo iniciado em junho de1976, com o avanço eleitoral comunista, e que tem seu momento mais dramático na formação do governo de "emergência nacional" logo após o seqüestro de Moro, em março de 1978 -, como também tem início uma nova fase no pensamento do secretário-geral do PCI: uma fase na qual a preocupação com a justificação do "compromisso histórico" cede lugar à indagação sobre os fundamentos morais da democracia italiana e a necessidade de refletir acerca da reforma da própria maneira de fazer política na Itália. No contexto que então se abria, o ponto de partida do "novo" Berlinguer não poderia ser outro senão a discussão sobre a crise da chamada "forma-partido".

Se o nó é político, o povo italiano criou e deu a si mesmo os instrumentos para desatá-lo: e daqui vem também a possibilidade de exercer um papel europeu e mundial. A República italiana é uma das poucas democracias ocidentais fundada na existência de grandes partidos de massa, os quais, ainda que com suas diferenças específicas, estão preparados para garantir uma participação permanente da maioria dos cidadãos na vida política e civil, uma participação que cresceria ainda mais e se tornaria mais ordenada e construtiva se estes partidos de massa trabalhassem num projeto comum de saneamento e de renovação, acolhendo e expressando as esperanças comuns das grandes massas populares, cujo voto eles recebem e pelas quais são seguidos: resumidamente, num projeto em que certas escolhas possam não ser a pura projeção da posição econômica e do status social, das categorias ou da condição corporativa dos cidadãos, as reverberações de um "estreito classismo", como escrevia Togliatti.

Num artigo de 1946 [...], precisamente, ele afirmava uma outra coisa importante: o traço distintivo da democracia pós-fascista foi o nascimento e a existência dos grandes partidos de massa, capazes de servir como mediadores das carências, das necessidades, das vontades não só das grandes massas de trabalhadores e produtores, mas também "das grandes massas de consumidores, homens, mulheres, velhos, jovens", isto é, das massas que, com o amadurecimento da questão feminina, da questão dos idosos, da questão juvenil, mais diretamente que qualquer outra coisa, põem na ordem do dia não apenas o tema da qualidade do desenvolvimento econômico, mas o da qualidade de vida.

Mas se, como disse, o nó é político - e de tal forma que só pode ser desatado por meio de uma síntese, cujo instrumento e condição sejam solidariamente, em primeiro lugar, os partidos de massa e, em seguida, todos os partidos democráticos -, então não é difícil ver por que as forças reacionárias e conservadoras tenham desferido nestes meses um furioso ataque contra os partidos de massa em geral e, sobretudo, contra o PCI.

Mais difícil é compreender como e por que este ataque, que, em última análise, se volta contra todos os partidos democráticos, tenha recebido uma contribuição também da parte mais aberta da DC e, em parte, do próprio PSI.

O fato é que, como havíamos previsto, quando a exclusão a priori do PCI do governo impede que sejam enfrentados não só os problemas de um novo curso econômico, isto é, os problemas de direção geral e de legislação, mas também os problemas de gestão da economia, da sociedade, do Estado e das suas administrações, torna-se claro que a discriminação anticomunista passou a ser o cupim que corrói as instituições, golpeia a democracia e acaba por prejudicar até mesmo aqueles que foram seus iniciadores, protetores e defensores.

Quando o ataque ao "centralismo democrático" do PCI torna-se, como se tornou, um ataque aos partidos como tais (à chamada "forma-partido"); quando se condena tudo que não seja puro movimento de opinião; quando o ataque pretende menosprezar todo esforço voltado para organizar a sociedade em torno de um fim; quando se dirige contra toda escala de valores que não seja a escala gratuita e imprevisível, confusa e contraditoriamente expressa pela multiplicação dos apetites egoístas dos indivíduos, pelo esfacelamento da sociedade numa miríade de núcleos corporativos e pelas lutas no interior destes núcleos, pela acentuação do consumismo - pois bem, quando acontece tudo isto, e isto está acontecendo, não deveria ser difícil compreender que o ataque não diz respeito apenas ao PCI, mas a todos os partidos que se propõem organizar as massas e ordenar de modo novo a sociedade em vista de certos ideais.

Será possível que a percepção destes problemas e deveres reais não ofereça um terreno de encontro novo e mais elevado entre nós e os companheiros do PSI?

Será possível que ninguém na DC, depois da morte de Moro, demonstre entender que este é um momento de desafio para todos e que, no que diz respeito à DC, está em questão hoje seu papel e talvez sua própria essência de partido popular e democrático?

Que sejam atingidos os responsáveis por tantos erros e por tantas escolhas antipopulares e antiunitárias não nos perturba: ao contrário, preocupa-nos, e muito, que em uma situação como a atual prevaleçam a obtusidade do pragmatismo, as misérias do qualunquismo, os cálculos mesquinhos do oportunismo: tudo isso leva água ao moinho da desagregação e da involução do país rumo à barbárie.

3. O repúdio à invasão soviética do Afeganistão. A denúncia da intensificação da militarização da política [3]

Se, no plano nacional, as coisas não vão muito bem para o PCI berlingueriano, no plano internacional os fatos não parecem trazer boas novas para os comunistas, na virada dos anos 70 para os anos 80. No entanto, será exatamente nesta conjuntura completamente adversa que Berlinguer ganhará uma nova expressão como liderança internacional em defesa da paz e do desarmamento.

De fato, o ano de 1979 termina sob o medo de que o clima de guerra fria retornasse com vigor redobrado. Isto, em função da invasão do Afeganistão pelas tropas soviéticas. Com tal ação, a União Soviética acabava por reprisar um velho filme já visto em 1956 (na Hungria) e em 1968 (na Tchecoslováquia). Com a exceção do velho líder comunista, Giorgio Amendola, praticamente toda a direção do PCI encontra-se unida na condenação à ação militar soviética.

Para Berlinguer, não restava outra alternativa a não ser a de criticar severamente o ato soviético como uma ação tipicamente imperialista, responsável por colocar no mesmo plano os Estados Unidos e a União Soviética. A denúncia da "política de potência" implementada tanto pelos soviéticos como pelos estadunidenses será a forma encontrada pelo secretário-geral do PCI para afirmar, por um lado, um discurso em defesa da paz mundial e, por outro, defender a desmilitarização da política internacional.

Então, prevendo os graves riscos decorrentes da retomada da corrida armamentista na era atômica - em especial para os países e populações européias -, Berlinguer alinha seu discurso às bandeiras defendidas pelo recém-nascido movimento pacifista, conclamando a URSS e os EUA a suspenderem a fabricação e instalação de mísseis em solo europeu: os SS-20 soviéticos e os Cruises e Pershings estadunidenses.

[...] É bem clara, e de todo nítida, nossa posição sobre os acontecimentos do Afeganistão. Reprovamos imediatamente a intervenção militar soviética, pedindo que se desse um fim a ela. Inspiramo-nos, assim, antes de tudo, numa posição de princípio que sempre nos levou a condenar toda violação dos direitos dos povos à independência nacional e à livre escolha do próprio desenvolvimento.

Várias vezes também, neste pós-guerra e nos últimos anos, este direito foi pisoteado pelos países capitalistas, em particular pelos EUA. E sempre se levantou nossa voz de reprovação e de condenação. Não podem sustentar o mesmo, decerto, nem todas as forças políticas presentes nesta Assembléia. O fato de que, no Afeganistão, a intervenção tenha sido realizada por um país socialista, dirigido por um partido comunista, não nos afasta desta nossa coerente linha de princípio.

Nossa posição foi tanto mais resoluta porque a intervenção soviética inseriu-se numa situação internacional já plena de tensões (no Golfo Pérsico, no Oriente Médio, no Sudeste asiático, em várias zonas da África, nas próprias relações Leste-Oeste), provocando mais deterioração. Hoje, temos diante de nós um quadro turvo e cheio de ameaças.

O primeiro elemento preocupante é que não apenas todas as negociações sobre o desarmamento estão agora paralisadas, mas a própria ratificação dos acordos já alcançados, como o Salt II, foi colocada em discussão; e, aliás, está se registrando um novo salto quantitativo e qualitativo na corrida aos armamentos. Aqui está o grave erro da decisão adotada em Bruxelas pelo Conselho da Otan.

As coisas estariam de outra forma se tivesse prevalecido a linha proposta por nós, por outras forças políticas e por alguns governos europeus: isto é, adiar, pelo menos por um certo período, toda decisão sobre a produção e a instalação dos novos mísseis americanos, pedindo ao mesmo tempo à União Soviética que suspendesse a fabricação e o deslocamento dos SS-20, o que então abriria imediatamente uma negociação entre os dois blocos para uma verificação dos reais equilíbrios militares e para uma tentativa de estabilizá-los num nível mais baixo.

Mas o mais alarmante, neste momento, é a deterioração do clima político mundial, a diminuição da confiança recíproca, já num nível mínimo, e, sobretudo, o acirramento, dia após dia, da dura contraposição e desavença entre as duas maiores potências, com crescente tentação do uso e ameaça das forças militares e com outras várias formas de pressão política e econômica. Estamos como que na presença de uma intensificada militarização da política e do próprio pensamento político.

Perguntamo-nos então: aonde levará tudo isto? Nossa resposta é que a exacerbação do conflito entre URSS e EUA só pode levar ao fim da distensão. Mas o fim da distensão, hoje, num contexto já tornado instável pela crise econômica mundial cada vez mais grave, por tantos desequilíbrios e por tantos motivos de crise e de conflito, não significaria somente um retorno à guerra fria - cujas pesadas conseqüências econômicas e políticas se abateriam sobre a Europa -, mas criaria um perigo iminente de conflagração geral. De fato, no mundo de hoje, a distensão não tem alternativas.

Para nós, portanto, a escolha a fazer é clara: é necessário inverter a tendência atual, interromper já a espiral dos atos de força, das ações e represálias. É preciso reabrir a via do diálogo e da negociação. [...]

4. Alternativa democrática e questão moral. A reação ao terremoto de Irpinia [4]

Como vimos, desde o assassinato de Moro, Berlinguer já vinha percebendo a necessidade de reformular a estratégia do compromisso histórico. No entanto, para que isto ocorresse, uma ocasião propícia devia apresentar-se - o que acabou por acontecer em 23 de novembro de 1980, quando um fortíssimo terremoto, com epicentro na região de Irpinia, sacudiu o sul da Itália.

São 6 mil mortos, 10 mil feridos e 300 mil desabrigados. A reação dos poderes públicos foi de tal forma tardia e confusa que levou o presidente da República, o socialista Sandro Pertini, a se manifestar criticamente em relação à total incapacidade do Estado italiano para prestar a ajuda necessária aos seus cidadãos, juízo que só viria a se agravar à medida que se percebiam as formas muito pouco republicanas por meio das quais o governo italiano financiava a reconstrução da pobre região arrasada.

Nesta trágica situação, o secretário-geral do PCI colhe a oportunidade de decretar o encerramento da experiência do compromisso histórico (ainda que insista em negar o abandono da estratégia), pondo no seu lugar a proposta da "alternativa democrática", isto é, a idéia de formação de um governo sem a participação da Democracia Cristã, um governo integrado por pessoas honestas e capazes dos vários partidos, mas também por gente fora dos quadros partidários.

Ao mesmo tempo que nascia a "alternativa democrática", emergia com força a idéia de que se impunha como a questão nacional mais importante a chamada "questão moral". Em poucas palavras, Berlinguer buscava denunciar a ocupação do Estado italiano pelos partidos governistas, que se tornaram verdadeiras máquinas de poder e de clientela, responsáveis até mesmo pela gestão de negócios escusos - uma análise que viria a ser comprovada anos mais tarde com a "Operação Mãos Limpas".

O PCI reafirma que, para toda a nação, o compromisso taxativo e urgente é fazer frente, com rapidez e mobilização de todos os recursos, às exigências dramáticas de socorro e de solidariedade com as populações atingidas pelo terremoto. Com este objetivo, todas as organizações e os militantes comunistas continuarão a cumprir plenamente o seu dever, sem reservas, com grande espírito unitário e em colaboração com os poderes públicos e os órgãos de governo, aos quais incumbe o dever de coordenar todas as intervenções nas zonas atingidas pelo terremoto.

No entanto, o PCI está bem consciente de que o trágico acontecimento do terremoto, logo após as respostas frustrantes e negativas do governo à cadeia de escândalos, de desvios nos aparelhos do Estado e de intrigas de poder, fez emergir com extrema agudeza o problema da eficiência, da correção e da moralidade da direção política.

O país está profundamente abalado por estes comportamentos; são cada vez mais patentes a desconfiança e o desdém. Isto emergiu também no discurso do presidente da República. A verdade é que tudo isto coloca em questão não apenas a responsabilidade de um ou vários ministros, ou do atual governo, mas de um sistema de poder, de uma concepção e um método de governo que geraram e continuam a gerar continuamente ineficiência e confusão no funcionamento dos órgãos do Estado, corrupção e escândalo na vida dos partidos de governo, omertà e impunidade para os responsáveis.

A questão moral tornou-se, hoje, a questão nacional mais importante. É impensável, de fato, governar o país e resolver os problemas que o assediam se não se restabelecer uma forte relação de confiança entre os cidadãos e o Estado. São certamente necessárias e urgentes providências e atos de moralização; serão necessárias também reformas incisivas no campo institucional, mas o que é decisivo, e já indispensável, é uma mudança radical na direção política do país.

Há uma crise evidente de posições, de métodos, de fórmulas de governo que se concentraram na direção da DC. Mostra-se ilusória, inadequada, dada a gravidade da situação e, em particular, a agudeza assumida pela questão moral, a procura de soluções que girem no âmbito dos partidos que governaram a Itália nas últimas décadas. Por outro lado, seria irresponsável e apressado fazer precipitar a situação rumo a uma nova consulta eleitoral antecipada, hipótese que o PCI rechaça por completo.

O PCI foi e é, na Itália, uma grande força de oposição democrática e constitucional; sempre deu prova exemplar de correção política e moral e de rigor na luta contra a corrupção. É necessário decidir e reconhecer que, uma vez que a DC demonstra não estar em condições de guiar o saneamento moral e a renovação do Estado, cabe objetivamente ao PCI ser a força promotora e garantidora de um governo que exprima e recolha as melhores energias da democracia italiana, homens capazes e honestos dos vários partidos e também fora deles.

É evidente o caráter excepcional de uma tal proposta, mas o ponto a que chegou a crise política no nosso país e a exigência de salvação da República requerem a coragem e a vontade de experimentar um caminho novo para assegurar a realização, em tempo determinado, e com pleno respeito da ordem constitucional e das regras democráticas, de um programa de saneamento moral e de reconstrução da organização estatal.

O PCI, ainda que considere que não se deva criar um vazio de governo em um momento em que é mais que nunca urgente a obra de socorro às populações das zonas atingidas pela catástrofe sísmica, submete sua proposta de um novo governo à discussão de todos os cidadãos e pede às forças políticas que a examinem com a ponderação necessária e com a consciência dos riscos que pairam sobre o regime democrático e os partidos que foram e são o fundamento da República italiana.

5. A "anomalia" do PCI. A luta pela igualdade social através do método democrático [5]

Além da substituição das fórmulas de "compromisso histórico" e governo de "solidariedade nacional" pela fórmula de governo de "alternativa democrática" e pela ênfase na "questão moral", Enrico Berlinguer deu início a uma batalha em torno do caráter do PCI tanto no plano nacional como no internacional. Então, quase como um corolário da nova linha política e da preocupação com a "renovação da política", tornava-se necessário apresentar o PCI como um partido dotado de uma singularidade histórica, uma verdadeira "anomalia".

Nacionalmente, era imperioso distingui-lo do eixo de poder controlado pela Democracia Cristã por meio da exaltação da sua trajetória impecável em termos éticos. Internacionalmente, urgia reforçar o discurso em torno da sua discrepância em relação aos demais partidos comunistas, em especial os dominantes nos países do "socialismo realmente existente", em função da sua escolha da luta pela igualdade social nos quadros do método democrático, isto é, no respeito às regras do jogo democrático.

O momento escolhido para a propagação do discurso sobre a originalidade do PCI coincidiu com as comemorações dos sessenta anos de fundação do partido, fato que acabou, sem dúvida, potencializando a nova pregação berlingueriana. No entanto, como era de esperar, a reação dos outros partidos seria negativa, indo desde a acusação de prepotência até a de purismo, passando pela sugestão do apego do PCI a uma visão maniqueísta de sociedade, na qual os bons estariam ao seu lado e os maus espalhados pelos restantes agrupamentos político-partidários.

Critica marxista - [...] O tema da "diversidade" comunista retornou à atualidade nos debates, nos discursos, nos escritos para o sexagésimo aniversário da fundação do nosso partido. Você mesmo falou em várias ocasiões de uma "originalidade", de uma "peculiaridade", de uma "alteridade" e até de uma "anomalia" do nosso partido. Segundo certos críticos, trazer à luz as especificidades e as diversidades dos comunistas italianos significaria, em substância, revelar e reforçar uma espécie de estranhamento em relação à democracia ocidental, de tal forma que, para eles, o que nos faz "diferentes" dos outros partidos italianos não é a seriedade, o espírito construtivo, a honestidade e a correção da nossa conduta, a tensão transformadora que nos anima, nossa fidelidade e nossas ligações com as massas trabalhadoras e populares, nosso sentido do Estado; ao contrário, tudo se reduziria ao fato de que ainda não cortamos definitivamente o famoso cordão umbilical com a URSS. Desta premissa simplista e arbitrária extram em seguida outras supostas conotações negativas do PCI, que o tornariam incapaz de "ocidentalizar-se" completamente, como, por exemplo, a ideologia "totalizante" ou a pretensão "hegemônica", que se considera inerente ao nosso partido. Parece-nos, assim, que o tema da "diversidade" merece um aprofundamento.

Berlinguer - Já tive ocasião de dizer que também nós, também o PCI é filho da Revolução Russa de 1917, mas um filho já adulto e autônomo. Se nos julgam com base no que efetivamente fazemos, pensamos e afirmamos em cada local e circunstância, com firmeza, com serenidade e sem nenhuma arrogância, na Itália e fora dela, creio que nossa plena independência se mostral a tal ponto efetiva que todos já deveriam considerá-la fora de discussão. E não acredito nem mesmo que valha a pena recordar que há tempos criticamos toda interpretação totalizante do papel do partido.

A verdade é que o que se reprova a nós, hoje como sempre, é que um partido do movimento operário, como é o PCI, não renunciou a perseguir o objetivo de uma mudança radical da sociedade e a lutar por ela. O que se quer são partidos de esquerda que, de fato, contentem-se em limitar sua ação à introdução de algumas correções marginais na ordem social existente, sem nunca pôr em discussão e formular um ordenamento profundamente diferente das relações que estão na base da estrutura econômica e social atual.

A principal diversidade do nosso partido em relação aos outros partidos italianos, além dos requisitos morais e políticos que possuímos e que os outros estão cada vez mais perdendo, [...] está exatamente nisso: que nós, comunistas, não renunciamos a trabalhar e a combater pela mudança da classe dirigente e por uma radical transformação das atuais relações entre as classes e entre os homens, na direção indicada por duas antigas e sempre verdadeiras expressões de Marx: não renunciamos a construir uma "sociedade de livres e iguais", não renunciamos a guiar a luta dos homens e das mulheres pela "produção das condições da sua vida".

A objeção que nos fazem é que este nosso finalismo seria um modo de querer impor à história um destino. Não, este é o modo como estamos na história, é a tensão e a paixão com que agimos nela, é a esperança indomável que nos anima como revolucionários. Conscientes de que, em vez de haver um desenvolvimento da humanidade, também se possa ir para uma nova barbárie (como disse o Marx do Manifesto, para a "ruína comum das classes em luta"), lutamos para que este resultado catastrófico seja poupado à humanidade e conclamamos ao combate em prol de uma meta de felicidade, de serenidade, de justiça, de liberdade. Nossa principal "anomalia" em relação aos outros partidos comunistas e operários é que estamos convencidos de que, no caminho para esta meta, é necessário permanecer - e permaneceremos - fiéis ao método da democracia.

O "assalto ao céu" - esta belíssima imagem de Marx - não é para nós, comunistas italianos, um projeto de escalada irracionalista ao absoluto. Como historicistas, tal como era o próprio Marx (e, entre nós, Labriola, Gramsci, Togliatti), não nos movemos no plano de uma exaustão da história: pelo contrário, canalizamos todas as energias de que somos e seremos capazes para tornar concreto e atual o que está maduro na história, tornamo-nos seus "parteiros", favorecendo, com o trabalho e a luta, a superação processual da sociedade capitalista, que, para usar as palavras do velho Engels, verdadeiramente já "merece morrer".

6. A condenação ao golpe de Estado na Polônia. O esgotamento da força propulsora da Revolução de 1917 [6]

Na madrugada de 12 para 13 de dezembro de 1981, na passagem de um sábado para um domingo, o general Wojcieck Jaruzelski encabeça um golpe de Estado na Polônia. Imediatamente, as principais lideranças do sindicato Solidariedade são detidas e o estado de sítio proclamado. Ao mesmo tempo, o partido comunista é colocado de lado e o governo civil substituído por uma junta militar autoproclamada responsável pela "salvação nacional".

Com isso, todas as esperanças de que a democracia e a liberdade começavam a ressurgir na Polônia, em virtude do avanço do sindicato chefiado por Lech Walesa, vêm por água abaixo. Mais uma vez, Berlinguer demonstra todo o seu senso de oportunidade. Na noite da terça-feira, dia 15, indagado por vários jornalistas em um programa de televisão, o secretário-geral do PCI explicita a condenação ao golpe de Estado polonês, afirmando de maneira inesperada que tal fato teria demonstrado a exaustão da capacidade propulsora contida na Revolução Russa de 1917.

Diante desta virtuosa heresia, não tardaram a surgir os protestos dos principais representantes do conservadorismo comunista. Para além das tradicionais acusações por parte do PC soviético e dos PCs do Leste europeu, ganha destaque a crítica feita pelo único membro da Direção do PCI que discordou da declaração de Berlinguer. Famoso por ser um dos dirigentes mais próximos de Moscou, Armando Cossutta declara que, com seu discurso na TV, Berlinguer levara a cabo muito mais que uma svolta (virada), tendo feito de fato um strappo (ruptura, "racha") não apenas com a União Soviética, mas também com as próprias raízes do partido de Gramsci e Togliatti, isto é, com a tradição do comunismo italiano.

[...] A direção do PCI reuniu-se depois de tomar conhecimento dos graves fatos verificados na madrugada entre sábado e domingo na Polônia, e disse - penso - o que deveria ser dito imediatamente. Ela expressou nossa firme condenação do estado de sítio proclamado na Polônia e a condenação das prisões e da supressão das liberdades democráticas e sindicais. Pediu também que os detidos sejam soltos, que as liberdades sejam restituídas e que se possa reabrir a via do diálogo entre os diversos componentes da sociedade polonesa, para encontrar uma solução política - ou seja, não baseada na força e na repressão - para a grave crise que abalou e até agora está abalando a Polônia.

Se examinarmos o desenvolvimento dos acontecimentos poloneses, pensamos que sua origem principal está nos graves erros de direção econômica e de método de gestão do poder que foram cometidos pelo partido comunista no governo e que provocaram uma ruptura entre o poder e as grandes massas da cidadania, antes de tudo da classe operária.

Não se pode negar, num exame objetivo, que existiram impulsos extremistas de vários matizes no próprio partido e nas organizações sindicais. Este é um dado objetivo, que não invalida absolutamente nossa tomada de posição, que me parece de todo nítida e clara. A reflexão deve prosseguir até o fim, e o artigo do L’Unità, a que o senhor se referiu, constitui uma contribuição importante. A meu ver, pode-se dizer em linhas gerais - e talvez possamos retornar a este tema - que o que aconteceu na Polônia nos leva a considerar que, efetivamente, está se exaurindo a capacidade propulsora de renovação da sociedade ou, pelo menos, de algumas sociedades que foram criadas no Leste europeu.

Falo de um impulso propulsor que se manifestou por um longo período, que tem sua data de início na revolução socialista de Outubro, o maior evento revolucionário da nossa época, e que deu lugar depois a uma série de eventos e de lutas pela emancipação e também a uma série de conquistas.

Hoje, chegamos a um ponto em que aquela fase se conclui, e, para fazer com que também o socialismo que se realizou nos países do Leste possa conhecer uma nova era de renovação e de desenvolvimento democrático, são necessárias duas coisas fundamentais: antes de tudo, é necessário que prossiga o processo de distensão, porque é claro que a exacerbação das tensões internacionais, a corrida armamentista levam ao enrijecimento dos vários regimes, inclusive daqueles regimes; além disso, é necessário que avance um novo socialismo no Ocidente, na Europa Ocidental, o qual esteja indissociavelmente ligado aos valores e aos princípios da liberdade e da democracia, e neles se baseie. Trata-se, em substância, da política, da estratégia, da inspiração fundamental do nosso partido, que recebem daqueles fatos uma nova confirmação. [...]

Pensamos que os ensinamentos fundamentais transmitidos especialmente por Marx, bem como algumas lições de Lenin conservam sua validade, mas, de outra parte, há também todo um patrimônio e toda uma parte deste ensinamento que já caducaram, que devem ser abandonados e, de resto, foram por nós abandonados com os desenvolvimentos dados à nossa elaboração, que se concentra num tema central da obra de Lenin. O tema no qual nos concentramos é o da via para o socialismo e dos modos e formas da construção socialista em sociedades economicamente desenvolvidas e com tradições democráticas, como são as sociedades do Ocidente europeu.

É claro que a exploração de vias para o socialismo, nesta parte da Europa e do mundo, requer soluções totalmente originais em relação às que foram implementadas na União Soviética e depois, aos poucos, nos outros países do Leste, tanto da Europa quanto da Ásia. Deste ponto de vista, consideramos a experiência histórica do movimento socialista, no seu conjunto, em suas duas fases fundamentais: a socialdemocrata e a dos países onde o socialismo foi implementado sob a direção de partidos comunistas no Leste europeu.

Cada uma destas experiências deu sua contribuição para o avanço do movimento operário, mas ambas devem ser superadas criticamente com novas fórmulas, com novas soluções, isto é, com o que chamamos, precisamente, de terceira via em relação às vias tradicionais da socialdemocracia e dos modelos do Leste europeu. Trata-se de uma busca na qual se acham empenhados não apenas alguns partidos comunistas, mas também algumas socialdemocracias ou, pelo menos, alguns setores da socialdemocracia, nos quais este mesmo tema vem sendo discutido e aprofundado.[...]

Pedimos, e continuamos a pedir, o retorno das liberdades democráticas e sindicais na Polônia, a libertação dos detidos. Isto não é solidariedade? Não podemos seguir Rossana Rossanda em todas as suas posições, mesmo porque, há alguns anos, ela nos pedia para sermos solidários cem por cento com a revolução cultural chinesa [...], a qual depois se revelou um desastre nacional para a China. Então, como vê, quando se trata dos conselhos de Rossana Rossanda, reflitamos um pouco antes de acolhê-los. [...]

O senhor não quer a reflexão essencial, o senhor quer as definições drásticas, as formulazinhas. Eu propus o tema que me parece o mais essencial de todos, quando digo que está superada toda uma fase do movimento para o socialismo que teve sua origem na Revolução de Outubro. Trata-se de abrir outra fase, e de abri-la, antes de tudo, no Ocidente capitalista. Esta nova fase é a que poderá ajudar especialmente até mesmo os próprios regimes do Leste a seguirem o rumo de uma efetiva democratização da sua vida política. Parece-me que este é verdadeiramente o tema essencial que hoje se propõe às forças operárias, às forças democráticas do mundo ocidental e, portanto, do nosso país.

7. A estagnação dos países do Leste europeu. A ossificação do marxismo-leninismo [7]

A trajetória crítica do PCI em relação às idéias de Estado-guia e Partido-guia do processo revolucionário mundial não se deu de uma maneira desprovida de tensões. No entanto, da invasão da Hungria pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em 1956, até o golpe de Estado na Polônia, em 1981, passando pelas trágicas experiências da Tchecoslováquia, em 1968, e do Afeganistão, em 1979, os italianos sempre se destacaram do restante do chamado movimento comunista internacional pelo fato de terem conseguido dar forma a um posicionamento crítico capaz de denunciar, com ênfases diversas, a atitude autoritária assumida pela União Soviética e pelos países do Leste europeu.

Porém, no decorrer dos anos setenta, sob a liderança de Berlinguer, o partido começou a tornar explícita a divergência em relação ao próprio embasamento teórico que sustentava as ações muito pouco democráticas dos soviéticos e seus países satélites. Para o secretário-geral do PCI, a "compressão" a que estavam submetidas as sociedades do Pacto de Varsóvia tinha uma das suas principais raízes na mutação teórica ocorrida no seio do "socialismo real", isto é, o progressivo esclerosamento da teoria marxista, por meio da formação de uma doutrina: o marxismo-leninismo.

Construído pelos partidos comunistas stalinizados, o marxismo-leninismo acabou se transformando no principal responsável, no plano ideal, pela estagnação das sociedades do Leste europeu. Desprovido por completo de qualquer espírito crítico, o marxismo-leninismo foi aqui entendido por Berlinguer como "uma espécie de credo ideológico concebido como um corpo doutrinário ossificado e de tipo quase metafísico".

[...] Aconteceu e pode acontecer que sociedades e Estados nascidos de revoluções de caráter radical estagnem, involuam, conheçam momentos de crise. Se nos referimos aos países de tipo socialista (à parte o fato de que, para alguns deles, é difícil indicar como fundamento um autêntico e original movimento revolucionário, isto é, de massa, popular e nacional), aconteceu - por causa do entrelaçamento entre os condicionamentos internacionais e externos, que foram pesados, e os erros realizados em particular no campo econômico (as pressões para o desenvolvimento, a centralização autoritária, etc.), por causa dos fenômenos da burocratização (o Estado-partido, o monolitismo, a perda da específica função política do partido, o marxismo convertido em ideologia de Estado), da prevalência de um dogmatismo fechado, com extremos até mesmo de fanatismo (e vale a pena observar que a isso estão particularmente expostas as concepções igualitárias, como aconteceu por séculos com o cristianismo) - uma singular inversão na fundamental inovação filosófica de Marx: sua crítica da ideologia.

Em primeiro lugar, em vez da realidade, da práxis transformadora e criadora de novos fatos e de novas idéias, colocou-se a ideologia, melhor dizendo, uma espécie de "credo" ideológico, tal como é o chamado "marxismo-leninismo", concebido como um corpo doutrinário ossificado e de tipo quase metafísico e como um conjunto de fórmulas que deveria justificar e garantir um tipo de estrutura econômico-política, um modelo universalmente válido, ao qual devem se adequar realidades e sujeitos sociais diversos e que, por princípio irrevogável, cabe ao partido realizar ou impor.

As dificuldades, as escleroses, as crises têm aqui uma das suas razões de fundo. Eis por que afirmamos que estas sociedades têm necessidade de inovação de sentido democrático. Mas, exatamente porque nos guiamos por uma inspiração historicista, nosso empenho deve se voltar na direção da crítica e das propostas objetivas e factuais.

Ao contrário - acredito -, possui escasso significado e pouca eficácia proceder por definições abstratas, na busca intelectualista dos requisitos necessários para uma sociedade socialista, busca que prescinda da concretude histórica e política; ou proceder por afirmações peremptórias, como, por exemplo, a da "imutabilidade" das sociedades de tipo socialista, uma tese cujo fundamento pode-se debater longamente, mas que, seja como for, não serve a quem, como nós, pretende empenhar-se numa nova fase da luta pelo socialismo e entende que, também e exatamente em tal sentido, ainda pode contribuir para um desenvolvimento democrático dos países do Leste europeu.

Não podemos nem sabemos dizer quando e de quais modos poderão ir adiante estes processos de renovação e desenvolvimento democrático. Sabemos com clareza que são necessários. Caso contrário, os riscos seriam grandes para todos. Se não se crê possível e não se pretende favorecer um processo de reformas nestas sociedades, quais conclusões deveríamos extrair? Talvez a retomada da velha política do roll-back contra os países do Leste? Ou o apelo à insurreição desestabilizadora, se não até mesmo a preparação de uma guerra? Isto deveria estar claro para todos aqueles que querem raciocinar e não se exercitar em um demagógico "heroísmo verbal", para usar as palavras de Willy Brandt.

Não é, então, a tensão, mas a distensão que pode favorecer a reforma e o desenvolvimento democrático nas sociedades do Leste: a distensão que é, ao mesmo tempo, um objetivo essencial de interesse comum para todos os países da Europa e do mundo. [...]

8. Por um governo diverso. Comentários sobre a nova linha política do PCI [8]

No momento do seu surgimento, em novembro de 1980, a nova linha política foi acolhida pela maioria dos militantes e dirigentes como uma ruptura com o "compromisso histórico". Para eles, a "alternativa democrática" representava uma nova orientação estratégica. Para Berlinguer, de maneira distinta, a "alternativa democrática" não assinalava uma negação do "compromisso histórico", mas sua continuidade com uma outra ênfase, isto é, uma espécie de adequação do espírito unitário do "compromisso histórico" aos tempos de explicitação da máquina de poder construída pela Democracia Cristã.

Não foram poucas as oportunidades em que o secretário-geral do PCI buscou sustentar tal raciocínio, contemporizando as duas idéias. Porém, à medida que o próprio discurso da "questão moral" e da formação de um "governo diverso" avançavam, mais difícil se tornava o esforço contemporizador. Tanto dentro como fora do partido, o tour de force berlingueriano era percebido como uma tentativa de explicar o inexplicável.

Assim, com a entrada do ano de 1982, ele toma a decisão de não mais falar de "compromisso histórico", alegando que suas sucessivas tentativas de esclarecimento haviam sido sempre recebidas de maneira incorreta – isto, tanto entre os críticos de boa-fé como entre os de má-fé. Dessa forma, por bem ou por mal, Berlinguer acabou se liberando de uma incumbência hercúlea, qual seja, a de propor uma alternativa à estrutura de poder construída no imediato pós-guerra pela Democracia Cristã sem romper estrategicamente com a necessidade de compartilhamento do poder com a mesma Democracia Cristã.

Alberto Moravia - [...] O senhor não acredita que o PCI procurará ressuscitar a fórmula da "frente popular"? Ou a do "compromisso histórico"? 

Berlinguer - Nem uma nem outra: ambas as fórmulas gerariam confusão. Quanto à primeira, se disséssemos outra vez "frente popular" (isto é, em substância, uma forma de unidade limitada ao PCI e ao PSI), significaria que queremos retornar a uma política que fizemos no passado e que, por um certo período (de 1936-37 a 1939-40), deu frutos positivos, mas que hoje seria em si, em suma, reducionista, limitadora do mais amplo fôlego unitário que demos e queremos manter na nossa política.

Quanto à fórmula do "compromisso histórico", ela foi por nós pensada e usada com um significado bem preciso, que infinitas vezes ilustramos, repetimos, esclarecemos, mas que, apesar disso, chegou deformada, falsificada, amesquinhada, retorcida, na cabeça das pessoas e nas grandes massas.

Por isso, cheguei à conclusão de que é melhor abandonar esta fórmula e tornar claros, com palavras e fatos, a substância e os diversos aspectos da nossa estratégia unitária e renovadora da sociedade e do Estado. Parece-me, além disso, que o objetivo político que nos demos desde novembro de 1980 - a alternativa democrática ao sistema de poder e aos governos que giram em torno da DC - tenha contribuído para tornar mais claros os nossos propósitos. [...]

Paolo Ojetti - O senhor falou de governo "diverso", não apenas como ação de moralização pública e de abandono de certos métodos de governo, mas também como inovação político-institucional. O que significa isto? 

Berlinguer - No decorrer dos anos, foi se acentuando e difundindo, em todos os níveis, aquilo que agora não mais apenas nós, comunistas, chamamos de "ocupação do Estado pelos partidos governamentais", ocupação que provocou degenerações graves seja nas instituições, seja nos próprios partidos que a efetuaram.

Para nós, pôr fim ao loteamento dos postos de poder e reconstituir as funções próprias e distintas dos partidos, do governo, do Parlamento, do Estado é a mais importante das inovações; isto significa a formação de um governo central não mais composto de "delegações" das secretarias dos partidos e das suas correntes, mas, como prescreve a Constituição, com base numa escolha dos ministros feita autonomamente pelo primeiro-ministro, dentro ou fora dos partidos, e obedecendo ao critério da honestidade e da competência individual. [...]

Agenzia di informazioni stampa - A estratégia da alternativa democrática foi considerada em geral - basta olhar a imprensa nacional dos últimos dois anos até estes dias - como a superação da estratégia do compromisso histórico. Abstraindo-se do júbilo ou da lamentação com que dentro e fora do PCI esta interpretação foi saudada, o senhor pode explicar em que a alternativa democrática difere exatamente do compromisso histórico? E se uma não é o contrário da outra, qual pode ou deveria ser, no âmbito da alternativa democrática, o papel dos católicos e, pois, a relação do PCI com as forças católicas operantes como tais, na esfera da cultura, na esfera social ou na esfera política?

Berlinguer - Como já tive oportunidade de dizer a Alberto Moravia, cheguei há muito tempo à conclusão de que é melhor, pelo menos no que me diz respeito, não falar de compromisso histórico. Isto porque, não obstante as inúmeras vezes em que ilustrei e esclareci o sentido desta fórmula, ela - especialmente a partir de uma certa data - chegou às grandes massas de modo falsificado, amesquinhado, distorcido. Assim, é inútil insistir em explicações, que, tal como nos anos passados, a maior parte dos comentaristas políticos, de boa ou má-fé, não levariam em consideração. [...]

9. A ampliação das bases sociais do movimento operário. As novas alianças da terceira via para o socialismo [9]

O XVI Congresso do PCI foi o último congresso que contou com a participação de Enrico Berlinguer. Reeleito secretário-geral, Berlinguer acaba por apresentar, no relatório de abertura dos trabalhos, uma espécie de síntese dos principais temas e idéias por ele desenvolvidos no decorrer dos anos de liderança. Assim, fazem-se presentes referências à identificação entre URSS e EUA como artífices de uma política de potência, à defesa da permanência da Itália na Otan, ao problema das relações entre Norte e Sul do mundo, à exaustão do impulso propulsor do modelo soviético, à questão da união entre comunistas e católicos, à importância da adoção de uma política econômica de rigor e austeridade, à questão moral e à alternativa democrática.

Entretanto, nesta intervenção que passaria a ter ares de um testamento teórico-político depois da sua morte no ano seguinte, ganha destaque a importância atribuída a novas questões além daquelas relacionadas aos conflitos entre as classes sociais. Na verdade, seguindo uma tradição iniciada por Gramsci e desenvolvida por Togliatti, Berlinguer nunca havia levado a cabo uma reflexão de caráter economicista, de viés classista. Pelo contrário, no seu pensamento, eram claras as influências de uma tradição engajada na valorização anti-reducionista do momento ético-político.

Foi exatamente por tal canal que as reflexões do secretário-geral do PCI acompanharam as movimentações sociais mais expressivas do pós-1968, a saber, o ambientalismo, o feminismo e o pacifismo. Todos estes pensados como novos aliados necessários para o alargamento das bases sociais do movimento operário tradicional, na luta pela construção de uma terceira via ao socialismo.

[...] É significativo que, nas esquerdas européias, o debate não siga mais as velhas fronteiras, mas perpasse ambos os alinhamentos em que historicamente se dividiu o movimento operário europeu. Existem, por exemplo, muitos pontos em comum entre a busca em que se empenhou o nosso partido e a que foi desenvolvida em diversos partidos socialistas e em alguns partidos comunistas. As velhas disputas ideológicas não são mais motivos de contraposição. Todos reconhecem que qualquer transformação em direção ao socialismo deve acontecer no quadro da democracia política. Admite-se, em geral, que os modelos das sociedades do Leste não são reproduzíveis no Ocidente. Mas parece também cada vez mais claro e explícito que tampouco são aceitáveis as tradicionais políticas socialdemocratas.

Em substância, na Europa, discute-se e busca-se algo novo, exatamente na direção do que chamamos terceira via.

O PCI participa desta busca como parte integrante do movimento operário da Europa Ocidental: com suas inconfundíveis peculiaridades, com espírito aberto e unitário, como de resto demonstra o amplo e profícuo desenvolvimento das nossas relações com outros partidos comunistas e socialistas.

No contexto desta busca de uma via para o socialismo nos países capitalistas mais avançados inserem-se nossas relações positivas com o Partido Comunista Japonês.

Entre as orientações que, a nosso ver, devem guiar o esforço de renovação de que tem necessidade o movimento operário da Europa Ocidental (e nosso próprio partido), está, antes de tudo, a de uma ampliação das bases sociais do movimento por uma transformação socialista.

Em uma fase em que as modificações tecnológicas tendem a reduzir o peso numérico da classe operária tradicional, tornou-se decisivo compreender e levar em consideração que existem outros estratos sociais que podem começar a fazer parte das forças que estão na vanguarda da luta pela transformação da sociedade. Refiro-me, antes de tudo, aos trabalhadores intelectuais, aos técnicos, aos pesquisadores - os "colarinhos brancos" -, os quais, exatamente pela sua colocação no processo produtivo, são determinantes para sua efetivação e, deste modo, tornaram-se figuras centrais para a formação do lucro. Em conseqüência, estes novos estratos sociais, nas condições capitalistas, são diretamente atingidos nas suas possibilidades sociais pela apropriação privada do lucro, são também explorados, tal como os tradicionais operários de "macacão azul".

Em relação a estes trabalhadores, não se pode desenvolver apenas uma indispensável atividade de sindicalização, mas também - e é este o dever específico do partido - uma iniciativa de formação da sua consciência política, dado que eles - como tais - não conheceram as condições de verdadeira miséria, nas quais se desenvolveu durante muito tempo o proletariado, nem viveram as experiências de luta deste último.

Não menos indispensável é que o movimento operário saiba ligar a própria luta às dos movimentos das mulheres, que exatamente por serem expressão de exigências radicais de paridade, de igualdade, de libertação da pessoa humana, estão interessados na superação do capitalismo e na transformação geral da sociedade.

A ligação com os movimentos feministas e com outros movimentos que expressam formas novas de luta (como a defesa do ambiente) requer do movimento operário uma maior atenção não só para os problemas da sociedade, mas para os do indivíduo, não só para a quantidade, mas para a qualidade do desenvolvimento, do trabalho e da vida.

Para renovar as bases e enriquecer o horizonte ideal do movimento pela transformação da sociedade, tem decisiva importância o encontro com os movimentos que vêm de uma inspiração ideal diversa daquela a que se refere o movimento operário de origem marxista. Refiro-me, em particular, aos movimentos de inspiração religiosa (católicos, protestantes das diferentes confissões, ortodoxos, judeus, adeptos de outras religiões), que freqüentemente já estão empenhados em ações concretas pela defesa da liberdade e da dignidade do homem contra a exploração e a opressão, como, por exemplo, hoje fazem muitos católicos e sacerdotes da América Latina. [...]

10. A utopia do tempo longo. Rumo ao socialismo do século XXI [10]

Não poucas as vezes se atribuiu a Berlinguer uma concepção pessimista do mundo. Mais do isso, eram freqüentes as afirmações de que seria um homem triste - idéia que, numa entrevista de abril de 1983, afirmou ser a que mais o incomodava em relação a sua personalidade.

Independentemente do possível exagero de tais avaliações, o fato era que, por ser, como Palmiro Togliatti, um homem imerso na vida política, Berlinguer acabava por ver confundidos num corpo único seus traços de personalidade e as características do próprio pensamento. Numa entrevista concedida a L’Unità, a propósito do famoso livro de George Orwell, 1984, Berlinguer parece desmentir o pessimismo a ele atribuído.

Em primeiro lugar, devido à forma ponderada com a qual abordou o tema da revolução tecnológica no mundo contemporâneo. Em segundo lugar, e principalmente, pela maneira com que defendeu a necessidade de construção de uma "utopia do tempo longo". Não seria exagerado concluir que, com tal idéia, Berlinguer imaginava dar forma a uma concepção de socialismo apropriada ao século que se aproximava, o século XXI.

Para ele, à medida que o socialismo conseguisse se desvencilhar dos seus traços evolucionistas e autoritários, mais preparado estaria para se afirmar como uma alternativa ao sistema capitalista. Qual socialismo? Um socialismo comprometido não apenas com a luta pelo fim da exploração de classe, mas também de todas as formas de opressão: de raça, de sexo, de nação, etc. Um socialismo que, cada vez mais, deveria vincular-se à luta em defesa da paz e à construção de uma "diplomacia dos povos" .

L’Unità - [...] Carlo Bernardini escreve: "Acabou o tempo dos pensamentos longos". Elmar Altvater acrescenta: não existem mais forças na Europa capazes de exprimir grandes utopias sobre a sociedade e sobre o Estado. O senhor compartilha destes juízos?

Berlinguer - Creio que é cada vez mais mais forte a necessidade de dotar a política de "pensamentos longos", de projetos. Naturalmente, estes pensamentos devem ser sustentados por uma análise científica da realidade, senão os projetos se transformam em vazias proclamações retóricas. Mas deve-se acrescentar uma coisa: o pensamento e a ação do movimento socialista na Itália (mas também em todos os países europeus) foram influenciados por uma visão que não era de Marx e que vinha em parte do iluminismo e depois do positivismo. Com base nesta visão, concebia-se a história da humanidade como um progresso contínuo rumo a metas cada vez mais elevadas de bem-estar, de cultura, de democracia.

Sob certos aspectos, a ideologia capitalista nos anos do boom também procurou dar a entender que se havia entrado em uma fase de irrefreável progresso. Todas estas ideologias revelaram-se falaciosas: na história do homem, nunca faltaram no passado, e não faltarão no futuro, cortes bruscos, rupturas e, também, involuções. E foram possíveis também períodos de tiranias obscurantistas, de fanatismo, de opressão.

Hoje se fala de Orwell, mas eu lembro, antes dele, um escritor talvez ainda mais pertinente, Jack London, que imaginou, no Calcanhar de ferro, um período longo em que todo o mundo civilizado viveria em condições de absoluta tirania. É necessário ter consciência de que estes perigos existem e se reapresentarão sempre de forma diferente daquela do passado. Mas também é necessário ter a coragem de uma utopia que trabalhe em "tempo longo" para alcançar o objetivo de utilizar novas descobertas científicas para melhorar a vida dos homens e, ao mesmo tempo, guiar conscientemente os processos econômicos e sociais.

O que é o socialismo senão isto? É a direção consciente e democrática, conseqüentemente não autoritária, não repressiva, dos processos econômicos e sociais, com fins de desenvolvimento equilibrado, justiça social e crescimento do nível cultural da humanidade. [...]

L’Unità - Um slogan que faz parte da cultura socialista e comunista fala de um "sol do futuro" a alcançar, a conquistar e no qual acreditar. Em uma civilização em que a angústia e sinais de morte parecem prevalecer, ainda tem sentido este slogan?

Berlinguer - Mas aqui há um paradoxo: sobre o sol do futuro, hoje, discutem mais os cientistas que os comunistas: de fato, um dos horizontes mais ricos que se pode abrir para o homem nasce exatamente da possibilidade de uma plena utilização da energia solar. Eis um modo científico de aproveitar, ainda, a idéia de "sol do futuro"! Mas, eliminado tudo o que, no passado, esse slogan expressava de utópico, de milenarista, creio que ele não deva ser enterrado.

Quais foram, de fato, os objetivos pelos quais surgiu o movimento pelo socialismo? O objetivo de superação de toda forma de exploração e de opressão do homem sobre o homem, de uma classe sobre outra, de uma raça sobre outra, do sexo masculino sobre o feminino, de uma nação sobre outras nações. E, além disso, a paz entre os povos, a progressiva aproximação entre governantes e governados, o fim de toda discriminação no acesso ao saber e à cultura. E, se olhamos para a realidade do mundo de hoje, quem pode dizer que estes objetivos não são mais válidos?

Superamos muitas incrustações ideológicas (próprias também do marxismo). Mas não os motivos, as razões profundas da nossa existência, que continuam a existir e nos levam a uma ação cada vez mais incisiva na Itália e no mundo.

11. Os ensinamentos de Togliatti. Questão moral e confusão entre partido e Estado [11]

Não foram poucas as vezes em que a obra de Togliatti foi recuperada por Berlinguer com vistas à legitimação das opções políticas realizadas durante sua liderança à frente do PCI. Já nos anos 1970, quando da formulação da estratégia do "compromisso histórico", Togliatti fora várias vezes citado por Berlinguer na tentativa de comprovar que a defesa de uma aliança entre comunistas, católicos e socialistas encontrava-se enraizada na própria história do comunismo italiano.

Nos anos 1980, Berlinguer voltou a fazer uso de tal artifício a fim de fundamentar a virada realizada por meio da política de "alternativa democrática" e da ênfase na "questão moral" como o problema central a ser enfrentado pela sociedade italiana. Aproveitando a oportunidade vinda à tona com a comemoração dos vinte anos de falecimento do antigo dirigente, Berlinguer procura resgatar a importância por ele atribuída à "República parlamentar" e à "Constituição reformadora", os dois eixos centrais através dos quais deveria se dar a luta dos comunistas pela abertura de uma via para o socialismo na Itália.

Para Berlinguer, Togliatti conseguira perceber claramente que o fortalecimento e extensão da vida democrática somente seriam possíveis por intermédio da construção de instituições e partidos comprometidos com a democracia. No entanto, para que tal empresa fosse exeqüível, por um lado, partido político e Estado deveriam ser dois organismos distintos, devidamente separados entre si, e, por outro lado, as crises de governo não poderiam mais ser resolvidas em outro espaço a não ser aquele representado pelas assembléias e parlamentos - duas precondições que, de acordo com Berlinguer, mais do que nunca estavam ausentes na Itália contemporânea.

[...] Hoje, pode-se apreciar plenamente a validade atual desta elaboração togliattiana. Hoje, o país está aviltado e ferido pelo peso esmagador, antigo, da inobservância deste fundamental princípio diferenciador, que deve inspirar em geral a vida e a ação política. E, ao mesmo tempo, precisamente hoje tornou-se mais claro o que se deve esperar, respectivamente, do Estado e dos partidos.

O Estado, por todos os seus órgãos, deve levar em conta e observar os desenvolvimentos, as mudanças da sociedade, suas conquistas, assumi-las progressivamente no ordenamento jurídico, ratificá-las através de normas legislativas certas e estáveis, ou seja, em uma palavra, institucionalizá-las, tornando-as, assim, gerais, de todos os cidadãos, bens comuns deles, patrimônio de toda a nação; e deve protegê-las contra os processos involutivos e os ataques reacionários de quem gostaria de retroceder, bem como contra as agressões desagregadoras da subversão anarcóide e do corporativismo. Em tal sentido, e somente assim, o Estado moderno é verdadeiramente Estado de direito, Estado de todos, Estado democrático.

Dos partidos se exige outra coisa, além, obviamente, do respeito às regras democráticas e às leis que são iguais para todos e perante as quais todos são iguais. Pode-se reconhecer aos partidos uma função primária na esfera política, contanto que eles a conquistem e dela sejam dignos, exercendo-a correta e democraticamente e colocando-a a serviço do interesse coletivo, geral. Este primado só pode se tornar real, legitimar-se e, pois, obter consenso, se os partidos estabelecem uma relação direta e contínua com a sociedade nos seus diversos estratos, com os cidadãos; se interpretam e formam sua consciência política; se recolhem e representam suas várias necessidades, aspirações e ideais; se organizam sua mobilização e participação democrática para indicar e alcançar objetivos que solucionem os problemas do país, de modo a realizar aquelas etapas do progresso político, social e civil que se revelam historicamente maduras e possíveis.

Em outros termos, os partidos só podem se manifestar e conservar a própria função primária em política, se conseguem torná-la uma função dinâmica, de movimento, de iniciativa, de invenção; uma função que estimula continuamente o desenvolvimento "de toda a sociedade", como adverte Togliatti, e concretamente o acelera e guia rumo a "fins que são comuns na medida em que são necessários, indispensáveis para a nação ou para toda a humanidade", como adverte ainda Togliatti.

Então, os partidos, por um lado, e as instituições e o Estado, por outro, têm dimensões distintas e papéis complementares mas diferentes. Por isto, eles não suportam - sob pena de subjugação e desordem mútua e decadência comum - a mistificadora e corruptora simbiose em que hoje fenecem, fruto da nefasta conduta de mais de trinta anos (mas sobretudo de cinco anos para cá) dos partidos que se alternam no governo, tendo à frente o Partido Democrata Cristão. [...]

Assim, tem sido distorcida e traída a profunda exigência de restituir às instituições a funcionalidade e o papel que lhes cabem em uma República democrática de base parlamentar. Através de algumas das "reformas", de que se ouve falar hoje, pretende-se submeter as instituições e, por isso, também o Parlamento ao cálculo de assegurar uma estabilidade e uma duração a governos que não conseguem garanti-las pela capacidade e força política própria.

Eis a substância e a relevância política e institucional da "questão moral", que nós, comunistas, colocamos com tanta decisão.

Além disso, a não resolvida questão moral deu lugar não apenas ao que, com um eufemismo não privado de hipocrisia, se chama de Constituição material - isto é, o conjunto de usos e abusos que contradizem a Constituição escrita -, mas também abriu caminho para a formação e a ampliação de poderes ocultos e subversivos - a máfia, a camorra, a P2 -, que macularam e até hoje condicionam os poderes constituídos e legítimos, a ponto de minar concretamente a existência da nossa República.

Diante deste estado de coisas, diante de tamanhos e tão variados estragos que têm uma precisa raiz política, não se pode pensar em conferir novo prestígio, eficiência e plenitude democrática às instituições com a introdução de dispositivos e mecanismos técnicos de caráter democrático duvidoso, ou com expedientes que romperiam, até formalmente, o equilíbrio, a distinção e a autonomia (estabelecida e garantida pela Constituição) entre Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como acentuariam o poder dos partidos sobre as instituições.

São certamente necessárias reformas das instituições, destinadas a dar outra vez eficiência e agilidade ao seu funcionamento. Mas elas de pouco serviriam, se os partidos permanecerem o que são hoje, se continuarem a agir e a se comportar como agem e se comportam hoje, se não se sanearem, se não se regenerarem, readquirindo a autenticidade e a plenitude da sua função autônoma em relação à sociedade e às instituições. De outra forma, é bastante fácil prever hoje onde vamos parar, mais fácil ainda do que aquilo que Togliatti previa há vinte anos no seu último discurso na Câmara, duas semanas antes de morrer. Naquela ocasião, referindo-se à Itália e à Europa, ele constatava "a tendência à limitação progressiva das instituições democráticas e ao autoritarismo".

A resposta dada pelos comunistas e pelas outras forças democráticas a esta tendência permitiu rechaçar os perigos a ela inerentes e, assim, alcançar novas conquistas democráticas. Hoje "a tendência à limitação progressiva das instituições democráticas e ao autoritarismo" se reapresenta. [...] 

12. A centralidade da questão democrática. A última batalha na oposição ao governo de Bettino Craxi [12]

A situação política da primeira metade dos anos 80 não foi menos atribulada do que aquela vivida no decorrer dos anos 70. Em 2 de agosto de 1980, a demonstrar que o terrorismo continuava ativo, uma bomba faz saltar pelos ares a estação ferroviária de Bolonha (cidade emiliana símbolo da força dos comunistas), matando 85 pessoas; em 20 de maio de 1981, revelando o estágio de promiscuidade nos poderes públicos, explode o escândalo envolvendo a Loja Maçônica P2, de Licio Gelli, ao mesmo tempo em que o presidente do Banco Ambrosiano, Roberto Calvi, era preso, num episódio que envolveria até mesmo o Banco do Vaticano, dirigido pelo monsenhor Paul Marcinkus; em 28 de junho, o republicano Giovanni Spadolini torna-se o primeiro presidente do conselho de ministros não democrata-cristão da república italiana.

Em 1982, numa clara afronta aos poderes do Estado, a máfia siciliana assassina o deputado e secretário regional do PCI, Pio La Torre, em 30 de abril, e o general Dalla Chiesa, enviado de Roma para combater a máfia em Palermo, em 3 de setembro; e, por fim, em 4 de agosto de 1983, o secretário-geral do Partido Socialista, Bettino Craxi, forma seu primeiro governo, num claro sinal de declínio da hegemonia da Democracia Cristã.

Exatamente neste contexto, Berlinguer trava seus últimos combates: por um lado, denunciando a degradação moral do Estado, agora partilhado entre a DC e o PSI, uma degradação que viria à tona, no início dos anos 90, com a descoberta da existência de Tangentopoli, nome pelo qual ficou conhecido o gigantesco esquema de corrupção incrustado no aparelho estatal; por outro lado, apontando a necessidade de defender a centralidade da "questão democrática", num instante em que o governo Craxi começava a revelar uma tendência autoritária de concentração de poderes nas mãos do Executivo e de ataque às conquistas da classe trabalhadora.

Romano Ledda - [...] Ainda gostaria de lhe perguntar: existe ou não um problema real de maior correspondência entre o mecanismo de decisão política e a dinâmica das transformações sociais e econômicas? Em suma, certas regras devem ser renovadas?

Berlinguer - Certamente. Uma democracia que seja eficiente é um problema verdadeiro. E tanto percebemos isso tempestivamente que somos autores da proposta mais radical de reforma institucional: a passagem ao unicameralismo, a drástica redução do número de parlamentares, a chamada "deslegiferação", isto é, reservar para o Parlamento nacional apenas as grandes escolhas legislativas, deixando as demais intervenções para os outros poderes democráticos do Estado, em particular as autonomias locais e regionais. Por que esta nossa proposta foi rejeitada por todos?

Constato uma singular contradição entre esta recusa e tudo isto que se diz sobre a necessidade de decidir rapidamente.

Romano Ledda - Não existiria talvez alguma razão para isso?

Berlinguer - Talvez haja duas. Por um lado, teme-se ferir muitos interesses constituídos. Por outro lado, olha-se para um só local de decisão: o Executivo. Ou seja, caminha-se para uma simplificação do problema da eficiência em uma sociedade extremamente complexa. Em substância, busca-se a solução sobrepondo-se a autoridade ao consenso, dá-se, em suma, uma resposta não democrática a um problema real e urgente. E mais ainda, esta tendência só se manifesta quando se trata de golpear os interesses dos trabalhadores, ao passo que há o máximo de ausência e lentidão quando se trata de golpear os interesses dos grupos privilegiados. Fomos os primeiros a afirmar a necessidade de intervir para melhorar o funcionamento das instituições e do Parlamento - cujas disfunções, como provou recentemente Napolitano, devem-se em grande parte aos comportamentos do governo -, mas partindo do pressuposto de que a democracia, longe de ser um obstáculo, é indispensável à solução dos problemas do país. [...]

Romano Ledda - Partindo disto, você disse que este Parlamento pode exprimir um outro governo, o que provocou um certo barulho. O que você queria dizer com isso?

Berlinguer - Fazemos por enquanto uma afirmação preliminar. Diante de uma crise do atual governo, não deve acontecer a dissolução deste Parlamento. No centro de toda e qualquer solução possível, parece-me que deve ser posta a "questão democrática". Então digo: que tomem a iniciativa as forças presentes em cada partido - inclusive, obviamente, o PSI - que, como nós, sentem como prioritária a exigência de bloquear, de inverter a tendência à degradação das relações políticas e institucionais e das próprias garantias democráticas. [...]

Lamberto Secchi - O Partido Socialista é ainda um partido de esquerda com o qual o PCI poderia encontrar a curto prazo um entendimento, ainda que limitado?

Berlinguer - Dar atestados aos partidos ou neles colar etiquetas é um vício que não é nosso, mas de outros. Os juízos que damos sobre os partidos referem-se sempre aos seus objetivos programáticos, à sua coerência com a própria e peculiar inspiração ideal e, sobretudo, aos seus comportamentos e atos concretos. Se se aplica ao Partido Socialista Italiano de hoje este nosso método e critério de juízo, sem imputação e sem facciosismo, deve-se reconhecer que a ação do PSI - no governo e no Parlamento - certamente não é orientada para defender os estratos sociais mais débeis, de baixos salários, explorados, marginalizados (os sem-casa, os aposentados, as mulheres, os jovens). Pelo contrário, a providência mais importante do governo sob presidência socialista é - como ele mesmo se vangloria - o decreto que anula o reajuste automático de salários, enquanto nenhuma providência concreta foi tomada para impedir a evasão fiscal, as atividades especulativas e as rendas puramente financeiras: é a clássica linha de sacrifícios em direção única. Além disso, comparados aos outros partidos socialistas e socialdemocratas da Europa Ocidental, o PSI se diferencia por ser o único que considera estratégica sua aliança no governo com partidos conservadores e de centro; e, a partir do governo, opõe-se ativamente ao PCI, à força mais representativa da esquerda italiana.

Estes foram os fatos destes meses. Na verdade, não quero excluir e, pelo contrário, até desejo que os fatos do futuro falem de modo diferente.

Chega junho de 1984, e o secretário-geral do PCI encontra-se engajado na campanha para a renovação do Parlamento europeu. O momento é de áspera luta contra o governo Craxi em função de um decreto-lei baixado em fevereiro, que atenta contra os salários dos trabalhadores: o decreto de San Valentino. Então, no decorrer de um comício em Pádua, na noite do dia 7, minutos depois de ter escrito a resposta acima, Berlinguer é acometido de uma hemorragia cerebral enquanto discursa, vindo a falecer após quatro dias de coma.

Aos funerais, na praça San Giovanni, em Roma, no dia 13, comparece mais de um milhão de pessoas em clima de comoção pela perda do líder político, numa das maiores manifestações políticas da história italiana. No dia 17, nas eleições européias, como uma espécie de presente póstumo, o povo italiano dá ao PCI 33,3% dos votos contra 33% dados à DC. Com isso, numa dessas ironias da história, ao mesmo tempo que os comunistas podem comemorar pela primeira vez a ultrapassagem em relação à Democracia Cristã, têm de dizer também: Ciao, Enrico! 

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Marco Mondaini é historiador e professor-adjunto da Universidade Federal de Pernambuco. Este texto também foi publicado em La Insignia.

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Notas

[1] Do discurso de abertura ao XV Congresso do PCI, 30 mar.- 3 abr. 1979, Palazzo dello Sport, Roma. Extraído de: "Relazione di Enrico Berlinguer - Avanzare verso il socialismo nella pace e nella democrazia. Unità delle forze operaie, popolari e democratiche per una direzione politica nuova dell’Italia e per il rinnovamento della Comunità europea". In: XV Congresso del Partito comunista italiano - Atti e risoluzioni. Roma: Riuniti, 1979, v. 1, p.17-109.

[2] Do artigo em Rinascita, 24 ago. 1979. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Il compromesso nella fase attuale". In: Tortorella, Aldo (Org.). Berlinguer aveva ragione. Note sull’alternativa e la riforma della politica. Roma: Edizioni di Critica Marxista, 1994, p. 81-8.

[3] Do discurso no Parlamento europeu, em Estrasburgo, 16 jan. 1980. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Riaprire la via del dialogo". In: Tatò, Antonio (Org.). Berlinguer. Attualità e futuro. Roma: L’Unità, 1989, p. 40-3.

[4] Do documento aprovado na reunião extraordinária da Direção do PCI, 27 nov. 1980. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Terremoto ed emergenza politica". In: Tatò, Antonio (Org.). Conversazioni con Berlinguer. Roma: Riuniti, 1984, p. 211-4.

[5] Da entrevista concedida à revista Critica Marxista, n. 2, mar./abr. 1981. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Prospettiva di trasformazione e specificità comunista in Italia". In: Tortorella, Aldo (Org.). Berlinguer aveva ragione, cit., p. 99-111.

[6] Da entrevista coletiva na Rai Uno, 15 dez. 1981. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Dopo i fatti di Polonia". In: Tatò, Antonio (Org.). Conversazioni con Berlinguer, cit., p. 270-85.

[7] Do relatório apresentado à reunião do Comitê Central do PCI, 11 jan. 1982. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Il ristagno dei paesi dell’Est". In: Antonio Tatò (Org.). Berlinguer: Attualità e futuro, cit., p. 91-2.

[8] Das entrevistas concedidas, respectivamente, a Alberto Moravia, Nuovi Argomenti, 27 abr. 1982; a Paolo Ojetti, Agenzia giornali locali, 24 set. 1984; e à Agenzia di informazioni stampa, 16-18 dez. 1982. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Otto risposte a Moravia", "Per um governo diverso" e "Comunisti e cattolici nella crisi attuale". In: Antonio Tatò (Org.). Conversazioni con Berlinguer, cit., p. 286-96, 297-303 e 304-15.

[9] Do relatório apresentado na abertura do XVI Congresso do PCI, em Milão, 2 mar. 1983. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "L’iniziativa e le proposte dei comunisti italiani di fronte ai rischi per l’economia e per lo Stato e alle gravi minacce alla pace in Europa e nel mondo". In: XVI Congresso Del Partito Comunista Italiano – atti, risoluzioni, documenti. Roma: Riuniti, 1983, p. 21-68.

[10] Da entrevista concedida a Ferdinando Adornato, L’Unità, 18 dez. 1983. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Verso il Duemila". In: Antonio Tatò (Org.). Conversazioni con Berlinguer, cit., p. 349-60.  

[11] Do prefácio ao volume de discursos parlamentares de Palmiro Togliatti, em 1984. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Prefazione ai Discorsi parlamentari di Palmiro Togliatti". In: Tortorella, Aldo (Org.). Berlinguer aveva ragione. Note sull’alternativa e la riforma della politica, cit., p.113-23. 

[12] Das entrevistas concedidas, respectivamente, a Romano Ledda, L’Unità, 27 maio 1984, e, de maneira inconclusa, a Lamberto Secchi, Mattino di Padova, jun. 1984. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Si è aperta la questione democratica" e "Un ciclo politico e governativo è chiuso". In: Antonio Tatò (Org.). Conversazioni con Berlinguer, cit., p. 367-72 e 373-5.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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