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Sobre o socialismo no século XX

Donald Sassoon - 2000
Tradução: Luiz Sérgio Henriques
 

1. Introdução

Aqueles que se arriscam a discutir o significado do socialismo se defrontam com duas estratégias distintas mas não incompatíveis: a essencialista e a histórica.

A estratégia essencialista segue a maneira weberiana convencional. O socialismo é um tipo ideal, deduzido empiricamente das atividades ou idéias daqueles que são vistos comumente como socialistas. Uma vez construído o conceito, ele pode ser utilizado historicamente para avaliar organizações políticas concretas, seus ativistas e pensadores, verificar em que medida eles se ajustam ao tipo ideal, por que e quando eles divergem entre si, e considerar comportamentos excepcionais. Este procedimento, de grande valor heurístico, ainda é largamente aceito e muito usado, embora seu rigor teórico seja altamente duvidoso, já que a análise se baseia numa seleção algo arbitrária das organizações "socialistas" e indivíduos utilizados para produzir o conceito ideal-típico de socialismo.

Este procedimento tem uma desvantagem adicional, já que, estritamente adotado, ele não leva em conta a mudança histórica. Uma vez definido o tipo ideal, não é fácil integrar novos elementos a ele. Entretanto, a vida deve continuar, mesmo na sociologia. Assim, quando algo novo aparece, tal como uma interpretação revisionista, tudo que se requer é colocar o tipo ideal sobre a mesa de operações, remover – se necessário – os traços que não se ajustam mais e inserir novos. Então rejuvenescido, o conceito de socialismo pode seguir adiante, enriquecido com novos significados; os cientistas sociais, munidos de um tipo ideal cuidadosamente recondicionado, adquirem um novo sopro de vida, produzem mais livros sobre o novo socialismo e deixam os editores acadêmicos felizes.

Alternativamente, os sociólogos podem defender o tipo ideal antigo, afirmar que as novas revisões são incompatíveis com ele e declarar o socialismo morto. Eles podem escrever mais livros sobre a morte do socialismo e deixar os editores acadêmicos ainda mais felizes.

Os ativistas, inconscientemente weberianos, procedem essencialmente do mesmo modo, seja exaltando o novo revisionismo e sua adaptação inteligente às realidades de um mundo em constante mutação, seja recriminando amargamente as mudanças que ocorreram, evidência de uma outra traição covarde da antiga fé. Ao fazê-lo, eles mantêm o "socialismo" vivo (isto é, sua idéia de socialismo), seu corpo ligado a uma máquina salva-vidas, esperando por tempos melhores. Este choque entre modernizadores e fundamentalistas é um evento regular dos movimentos políticos, especialmente quando ideologias e valores são de importância central – como é o caso dos movimentos socialistas e religiosos.

É evidente, pelo tom das observações acima, que sou favorável à segunda estratégia, a histórica, embora esta também tenha seus problemas. Seu ponto de partida é o mesmo dos essencialistas: selecionam-se as organizações e os pensadores que se identificam como socialistas e contam-se suas histórias de maneira empírica convencional, sublinhando similitudes e diferenças. Entretanto, nenhuma definição de socialismo é requerida: o socialismo passa a ser o que os socialistas fazem. Nenhuma predição pode ser realizada: a morte do socialismo, como do feudalismo, só pode ser declarada quando é universalmente reconhecida e não é mais assunto em disputa, isto é, quando não há mais socialistas, exceto os excêntricos usuais, que, junto com os que continuam acreditando que a terra é plana, podem ter algum interesse antropológico remanescente.

Enquanto a estratégia essencialista se preocupa preponderantemente com a questão da definição, a histórica é obcecada pela mudança e pela causalidade – por que os socialistas se comportam de uma certa maneira? – e, portanto, com o contexto em que as organizações e os pensadores agem de um certo modo. Este método, longe de diminuir a importância da ideologia, encara-a como parte integral da história do movimento. O que interessa aqui é a conexão entre a particular visão ética de mundo defendida pelos socialistas e sua ação na esfera das práticas políticas. Portanto, o modo como tal teoria e tal prática são modificadas ao longo do tempo constitui a preocupação central da análise histórica.

Este procedimento, com a ênfase na inevitabilidade da mudança histórica, é claramente menos judicativo que o essencialista. Entretanto, como todas as narrativas historicistas, ele sofre o perigo persistente de cair numa versão determinista de eventos: o que quer que tenha acontecido tinha de acontecer. É bom ter consciência disto e saber que, sob determinadas circunstâncias (isto não é uma condição menor), as coisas podiam ter ocorrido de outra maneira. Em particular, é preciso lembrar que, embora seja verdade que o movimento socialista tenha surgido no princípio da sociedade industrial e seguido seu rastro, ele nunca é um componente necessário do mesmo. Houve, há e, com muita probabilidade, haverá sociedades industriais sem um movimento socialista significativo. Analogamente, houve sociedades com um movimento socialista poderoso onde o processo de industrialização mal havia começado.

2. Os dois socialismos

No começo do século XX, os socialistas sabiam que seu movimento dependia da sociedade capitalista. É verdade que a versão da teoria de Marx adotada pela maioria deles implicava que o socialismo era um estado de coisas que sucederia o capitalismo, mas eles observaram que a sociedade capitalista com crescimento mais intenso no mundo, os EUA, não possuía um movimento socialista significativo. Eles também tinham conhecimento de que o Estado capitalista mais desenvolvido da Europa, a Grã-Bretanha, berço de sindicatos poderosos, tinha, quando muito, apenas um partido socialista embrionário. De seu ponto de vista, a Grã-Bretanha era uma sociedade capitalista avançada com um movimento socialista atrasado. Ao contrário, algumas das sociedades ainda essencialmente agrárias da Europa – tais como a Itália e a Finlândia – tinham partidos socialistas bastante fortes e eleitoralmente bem sucedidos.

Na Rússia, o movimento surge dividido – do mesmo modo que toda a intelligentsia russa – entre tendências ocidentalizantes e eslavófilas. Os ocidentalizadores pressupunham que o dever dos socialistas consistia em acelerar o desenvolvimento do capitalismo, porque só o capitalismo poderia propiciar o terreno para um posterior avanço rumo ao socialismo. Os eslavófilos supunham que a Rússia seria capaz de saltar o capitalismo de estilo ocidental. Populistas anticapitalistas – como V. Bervi-Flerovski, autor de A Situação da Classe Operária na Rússia (1869), um livro muito admirado por Marx – sustentavam o ponto de vista de que o mir, a comuna camponesa russa, proporcionava princípios comunais que podiam e deviam se tornar universais. A Rússia poderia evitar as iniqüidades do capitalismo e oferecer ao resto do mundo o exemplo de um sistema social superior baseado na solidariedade e cooperação nacional. Esta miragem de alcançar e ultrapassar o Ocidente permaneceu como traço fundamental de quase todas as crenças revolucionárias russas. Um século depois, o abandono desta "Grande Idéia" coincidiu com o colapso de todo o sistema comunista.

As posições de ocidentalizantes e eslavófilos convergiram para um amplo consenso: o problema real com que a sociedade russa se defrontava era o da modernização, então considerada como sinônimo de industrialização. A questão era se esta tarefa poderia ser deixada para os capitalistas ou deveria ser assumida diretamente pelos socialistas. Aqueles que apoiavam o segundo ponto de vista eram inevitavelmente levados à proposição pela qual, para alcançar a industrialização dirigida pelos socialistas, seria necessário tomar conta do próprio aparelho político, isto é, estar no comando do Estado. Daí não se seguia que o Estado necessariamente devia ser o dono dos meios de produção. Havia várias possibilidades: o Estado poderia substituir uma classe de capitalistas visivelmente incapaz de cumprir sua tarefa histórica; de modo alternativo, o Estado poderia apoiar os capitalistas e auxiliá-los a industrializar o país ou, ainda, poderia estimular alguns empresários, por exemplo, na agricultura ou em negócios novos e/ou menores; ou poderia prover incentivos financeiros para uma classe de gerentes em operação num quase-mercado, mesmo que a propriedade privada tivesse sido abolida. A mistura apropriada de Estado e mercado nunca foi uma questão resolvida de uma vez por todas e, certamente, não decorreu inevitavelmente da Revolução de Outubro. No entanto, muito da história subseqüente da Rússia – desde o comunismo de guerra, a política da NEP, os planos qüinqüenais de Stalin, até a inadequada e limitada reforma econômica dos anos 60 e 70 – pode ser visto como uma disputa acerca das relações entre mercado e política.

Esta versão do socialismo, ou socialismo desenvolvimentista, pode ser descrita como uma ideologia de modernização ou desenvolvimento. Embora o objetivo final fosse uma sociedade socialista, suas tarefas práticas consistiam no desenvolvimento de uma sociedade industrial sob condições em que se pressentia que, se os socialistas não o fizessem, ninguém o faria (e o país estagnaria) ou estrangeiros o fariam (e o país teria status de colônia). Este tipo de socialismo – que se é tentado a definir como socialismo de formação do capital – coincide, mais ou menos, com o comunismo e sua variantes socialistas de Estado.

A outra variedade de socialismo – assunto principal do resto deste ensaio – pode ser concebida como uma forma de regulação do capitalismo. Sua tarefa não é desenvolver uma sociedade industrial; os próprios capitalistas se encarregam disso. Longe de requerer qualquer "auxílio" dos socialistas, podem fazê-lo melhor e mais rápido sem os socialistas – como a Grã-Bretanha do século XIX e a América e o Japão do século XX demonstraram amplamente.

Isto coincide com o que veio a ser conhecido como socialdemocracia. Naturalmente, o contraste entre o socialismo desenvolvimentista ou modernizador e o socialismo como regulação capitalista é muito mais profundo. O primeiro, na URSS, em Cuba, ou na China e na Coréia do Norte, exibia traços marcadamente autoritários e intolerância com a divergência e o pluralismo, que se igualavam e em alguns casos excediam os regimes autoritários capitalistas. O segundo ramo do socialismo coexistiu, em todos os casos, com a democracia, o pluralismo e os direitos humanos. Freqüentemente, tal comparação é feita, de forma legítima, pelos próprios socialdemocratas, os quais apontam que o socialismo desenvolvimentista (isto é, o comunismo) nunca foi liberal, enquanto a socialdemocracia nunca foi ditatorial. É tentador concordar, distinguir convencionalmente comunismo e socialismo, e deixar as coisas neste ponto.

Infelizmente, isto deixaria uma série de problemas sem solução. A transformação das sociedades de pré-modernas em modernas, pelo menos em sua fase inicial, raramente foi acompanhada por democracia e direitos humanos no sentido adquirido no século XX. Mesmo na Inglaterra ou nos EUA, sem falar da Alemanha e do Japão, o padrão era tal que o sufrágio era inexistente ou rigorosamente restrito, as liberdades seriamente limitadas, os sindicatos banidos ou submetidos a um controle rígido. Em alguns casos o processo coexistiu com escravidão e genocídio (os EUA), racismo, colonialismo, autoritarismo rígido (por exemplo, Japão) e regimes de partido único (por exemplo, Taiwan e Coréia do Sul até tempos relativamente recentes). A democracia plena e os direitos humanos foram estabelecidos mais tarde. Eles foram, em outras palavras, resultado de lutas políticas, e não um acompanhamento obrigatório da primeira fase do processo de modernização. A socialdemocracia, onde existiu de fato, estava na dianteira da luta política por democracia e direitos humanos, impelindo os partidos liberais, então muito pouco democráticos, e mesmo os partidos conservadores, então avessos à democracia, para as reformas políticas.

Entretanto, enquanto o capitalismo não esteve plenamente desenvolvido, os socialdemocratas se mantiveram usualmente na oposição. A modernização do país, o desenvolvimento do capitalismo, sua lucratividade e produtividade não eram de seu interesse. Eles só assumiram o poder quando a primeira fase de industrialização se completou, diferentemente dos comunistas, que assumiram o poder e se defrontaram com o problema da industrialização do país (com algumas poucas exceções significativas, como a Tcheco-Eslováquia e a Alemanha Oriental). Não se conclui daí que o grau de autoritarismo exibido pelo regime comunista fosse justificável ou inevitável. Em princípio, outras formas de modernização menos rígidas e cruéis poderiam ter sido idealizadas. A questão é que as duas formas de socialismo que vigoraram no século XX não são comparáveis. As ideologias são configuradas pelo tipo de sociedade em que operam e pelas relações que possuem com o poder político, isto é, com o Estado. Os socialdemocratas somente governaram quando o capitalismo estava bem estabelecido e a democracia se tornara um patrimônio comum da maioria dos partidos. Os comunistas tiveram que desenvolver uma sociedade industrial. Os socialdemocratas (ou os socialistas, usarei os dois termos indiferentemente) tiveram que geri-la. Os comunistas predominaram nas sociedades menos desenvolvidas e os socialistas nas economias de mercado desenvolvidas.

3. Individualismo e Coletivismo

Um dos muitos paradoxos que se apresentaram ao historiador do socialismo é que a noção de gerir sociedades de mercado não fazia parte do arcabouço ideológico dos socialistas, embora isto seja o que todos acabem fazendo. Na passagem do século, a ideologia socialista distinguia entre um objetivo final e demandas de curto ou médio prazo. O objetivo final era a sociedade socialista vagamente definida através da abolição da propriedade privada. As demandas de curto prazo eram variadas, mas de modo geral visavam a três objetivos: a primeira era a democratização da sociedade capitalista, a segunda se referia à regulação do mercado de trabalho (por exemplo, a jornada de 8 horas) e a terceira à socialização dos custos de reprodução do trabalho: saúde pública gratuita, aposentadorias e pensões, seguridade nacional – em resumo, os custos que teriam que ser absorvidos pelos trabalhadores individuais. Este terceiro objetivo é o que conhecemos atualmente como o Estado do Bem-Estar.

Os valores que caracterizavam esta política eram os da igualdade, solidariedade social e o estabelecimento de padrões mínimos de vida. Se todos os cidadãos devem ser igualmente dignos, todos eles (incluindo as mulheres) devem ter direito ao voto, devem ser tratados com igualdade e ter os mesmos direitos. Doenças, desemprego e velhice devem ser protegidos por um fundo comum, administrado e financiado de forma centralizada. A definição do que seria um padrão mínimo de vida civilizada não poderia ser deixada para a esfera da sociedade civil, ou seja, para o arbítrio do mercado. Ela devia se tornar um assunto político. O Estado tinha de ser chamado para estabelecer um sistema de proteção, que não existiria, ou existiria de forma rudimentar, se deixado para as forças do mercado. Esta foi a base para submeter as condições de trabalho à regulamentação estatal: os procedimentos de saúde e segurança foram legalmente impostos e reforçados e foi estabelecido um limite para a jornada de trabalho. Para forçar o Estado a operar desta maneira, foi necessário democratizá-lo, isto é, livrá-lo do controle exclusivo das classes dominantes.

A extensão da democracia que os socialistas advogavam não estava baseada em princípios de classe, mas nos princípios dos direitos individuais. O sufrágio universal, afinal, supõe que todos os indivíduos possuem exatamente a mesma dignidade quando votam: cada qual, literalmente, conta como apenas um. O voto deve ser depositado secretamente por um indivíduo solitário que faz uma escolha individual. Na esfera da política, os socialistas, longe de agirem com base na consciência de classe, foram individualistas obstinados. Vale a pena lembrar-nos de tais pontos corriqueiros, historicamente bem documentados, num tempo em que os socialistas são criticados (e aceitam passivamente a crítica) por sua suposta posição de classe coletivista. Aqueles que, no começo do século, defendiam uma concepção de classe para a democracia eram os liberais e os conservadores, não os socialistas. Os partidos liberais ou conservadores defendiam um sistema eleitoral que determinava os votos de acordo com os bens possuídos ou adquiridos por cada indivíduo. Por toda a Europa, eles também aceitavam e defendiam uma câmara alta, que sobre-representava ou representava apenas as classes superiores. No momento em que escrevo, tal instituição ainda existe, incrivelmente, na Inglaterra, a "mãe da democracia". Além disso, os partidos liberais e conservadores não eram apenas culpados de "classismo", mas também de sexismo. Eles não só se opunham ao direito de voto da classe operária, mas também das mulheres. Sua oposição ao sufrágio da classe operária pode ter se baseado no oportunismo: eles pressentiam que os trabalhadores aumentariam o peso eleitoral dos perigosos socialistas. Acreditava-se, por outro lado, que as mulheres estavam mais propensas a votar nos partidos conservadores e tradicionais; ainda assim, estes resistiam ao sufrágio feminino – um exemplo raro de predomínio de ideologia e princípio sobre o interesse.

É certo que os socialistas nem sempre lutaram com grande vigor pelo sufrágio feminino, mas isso tem pouco a ver com questão de princípio. Alguns eram motivados por seu compromisso com o gradualismo e a moderação (o requisito moderno de deixar todos satisfeitos, agradar a todos, não contrariar ninguém e manter a unidade). Portanto, era essencial proceder por etapas e conquistar o sufrágio pleno para os homens, antes de estendê-lo para as mulheres. Outros socialistas eram motivados simplesmente por oportunismo político: estava claro para eles que o voto da mulher daria nítida vantagem aos partidos religiosos. No entanto, quando se tratava de princípios e valores, todos os partidos socialistas se alinharam de maneira firme em favor do sufrágio universal real.

Deste modo, os socialistas eram de longe defensores mais coerentes dos direitos democráticos individuais do que os liberais e conservadores. No entanto, na busca de seu segundo objetivo, a regulamentação da jornada de trabalho e, de forma mais geral, a regulamentação das condições de trabalho, os socialistas adotavam uma posição claramente coletivista. A relação contratual que associava capitalistas e operários era de indivíduo para indivíduo. Em troca do salário combinado, cada operário se comprometia a realizar uma determinada função, em determinadas condições e por um determinado período de tempo – uma situação que Marx e seus seguidores descreviam como igualdade "formal", significando que tal acordo era entre partes juridicamente iguais, uma relação contratual entre iguais, que mascarava uma desigualdade maciça de poder. Além disso, os capitalistas tinham vantagens substanciais, especialmente onde havia um considerável excedente de trabalho, o que era a norma nos estágios iniciais da industrialização.

A formação dos sindicatos foi um meio coletivo de compensação desta desigualdade de poder. Sua probabilidade de êxito dependia de uma variedade de fatores, dos quais o mais importante era a ausência de impedimentos legais a seu funcionamento efetivo. Neste ponto, os sindicatos eram a favor de conter o Estado e bem que poderiam ter adotado a palavra de ordem contemporânea de "livrar-se do peso do Estado". Entretanto, quando se tratava da imposição política dos padrões mínimos, os sindicatos eram favoráveis a trazer de volta o Estado para criar, usando mais uma vez uma terminologia moderna, uma igualdade de condições entre os empresários, impedindo-os de competir às custas dos operários.

O terceiro objetivo, a criação do que posteriormente seria denominado Estado do Bem-Estar, assegurou a socialização de alguns custos de reprodução da classe operária. Os fundos coletivos derivados dos impostos (para os quais se esperava que a classe média contribuísse de forma mais do que proporcional) ou a extração forçada de contribuições dos capitalistas poderiam ser utilizados para auxiliar o financiamento das aposentadorias e pensões, as despesas médicas e de seguridade social. Isto teria óbvios efeitos benéficos para os trabalhadores e suas famílias, ainda que também permitisse aos empresários pagar salários menores. Os salários são necessários para a reprodução da classe operária, mas o desenvolvimento de benefícios não-salariais significava que os salários monetários (em oposição aos salários reais) poderiam ser mais baixos do que se não houvesse outros benefícios.

Os êxitos obtidos na busca destes objetivos diferiam de um país para outro. Muita coisa dependia da força relativa das duas classes em conflito, operários e capitalistas, da riqueza da economia, do poder e domínio dos interesses da aristocracia rural, do ethos político predominante, da posição da Igreja. Por exemplo, no começo do século, os EUA possuíam a economia que mais rapidamente se desenvolvia no mundo, mas as sucessivas levas de trabalhadores imigrantes atuaram como freio na formação de poderosos sindicatos com inclinação política, e a competição entre os capitalistas levou alguns a optar por uma estratégia de salários elevados (fordismo) que favoreceu a formação de um mercado de bens de consumo maior do que seria possível de outro modo. Embora as elites políticas americanas fossem também bastante impermeáveis às pressões dos sindicatos, elas eram menos resistentes àquelas originadas na ampla classe de pequenos agricultores. A polarização decorrente isolava mais ou menos o movimento sindical e enfraquecia seu desenvolvimento político; daí, o desenvolvimento de um peculiar populismo contrário às grandes empresas.

A Inglaterra seguiu um caminho diferente. No século XIX, sua classe operária era grande, bem organizada, e possuía, pelos padrões da época, uma larga história de luta e militância. Nenhum partido estabelecido podia ignorar os operários. A fragmentação religiosa do país e, especialmente, da classe operária contribuiu para impedir a formação de um partido confessional nos moldes da Democracia Cristã no continente. O resultado é que, na segunda metade do século XIX, liberais e conservadores competiam entre si pelo apoio da classe operária e incorporaram em seus programas aspectos da plataforma socialdemocrata, antes que esta pudesse encontrar a forma de partido político organizado. Isto ajudou a retardar a formação e o crescimento de um grande partido socialista inglês como a socialdemocracia alemã. No continente, um processo similar de cooptação estava a caminho: a construção nacional requeria a incorporação de demandas emergentes das classes subalternas e tomou a forma daquilo que se denominou na Alemanha "socialismo de Estado" – construído por Bismarck e apoiado pelo líder socialista Ferdinand Lassalle. Os partidos liberal, conservador e nacionalista estavam na vanguarda deste movimento. A eles mais tarde se juntaram os partidos que giravam em torno da Igreja, particularmente quando a Igreja Católica Romana abandonou sua defesa intransigente do ancien régime e adotou uma nova posição em relação à chamada "questão social", com a publicação em 1891 da encíclica do Papa Leão XIII, Rerum novarum.

4. Socialistas, Liberais e o Estado

No começo do século XX, os três aspectos chave no programa de médio prazo dos socialdemocratas podiam ser encontrados de alguma maneira em outros partidos. Como conseqüência, não era mais possível, se é que o foi em algum momento, estabelecer uma distinção permanente entre socialistas e não-socialistas em termos de políticas práticas.

Havia também, é claro, grandes diferenças: os socialistas continuavam comprometidos com o objetivo de longo prazo de atingir uma sociedade pós-capitalista, possuíam um conjunto de símbolos distintivos, formulavam suas reivindicações de maneira mais radical, tentavam e exploravam novas formas de luta, tais como a greve política, continuavam a se opor a uma cooperação pública com outros partidos e, com exceção da Grã Bretanha, professavam o anticlericalismo. Em outras palavras, os socialistas tentavam se diferenciar de todas as maneiras possíveis daquilo que eles persistiam em considerar como um bloco burguês monolítico.

A tentativa contínua feita pelas forças anti-socialistas para incorporar as demandas socialistas poderia ser vista como uma evidência do êxito dos socialistas e de sua capacidade de moldar e influenciar o desenvolvimento político. Mas também tornava impossível a construção de uma definição completa das políticas socialistas.

A extensão da democracia, a instituição do Estado do Bem-Estar Social, o controle da jornada de trabalho eram objetivos e políticas socialistas, mas pode-se encontrar sempre, em qualquer momento, demandas semelhantes promovidas e implementadas por partidos não-socialistas, direitistas, centristas, conservadores, liberais, cristãos ou nacionalistas. Desde o princípio, o "socialismo" não foi prerrogativa dos socialistas.

É verdade que os socialistas foram forçados, em sua prática cotidiana, a moderar suas reivindicações e a aceitar compromissos, mas isto também ocorreu com os conservadores e liberais. A extensão da democracia e o avanço da sociedade de massas significavam que nenhum partido político podia esperar obter apoio suficiente, seja defendendo in toto o status quo (a posição conservadora em essência), seja propondo o retorno a um status quo ante (a posição reacionária essencial). O reformismo triunfou. Foi adotado pelas forças mais variadas: na Alemanha, por Bismarck e pelos nacionalistas posteriores da era guilhermina, bem como pelos social-cristãos do Partido do Centro; na Itália, pela ala majoritária do Partido Liberal (Giovanni Giolitti) e pelas forças emergentes do catolicismo político; na França, pelos Radicais da Terceira República; na Inglaterra, pelos conservadores de Disraeli e Salisbury, bem como por Joseph Chamberlain, Gladstone, os Novos Liberais, Asquith e Lloyd George; na Áustria, pelos social-cristãos anti-semitas de Karl Lüger e, na Holanda, pelos novos partidos confessionais em aliança com os liberais mais esclarecidos.

O impacto desta virada para o social era mais visível no nível local que no nacional. As autoridades locais estavam ocupadas em imaginar esquemas para melhorar as condições sociais da vida urbana através de programas de saúde pública, desenvolvimento habitacional, remoção de cortiços, assistência aos pobres – ou seja, através do desenvolvimento de um setor público local importante. Este "socialismo municipal" evolucionário raramente foi, se é que foi, obra dos socialistas. O êxito do socialismo reformista, como o êxito de todas as ideologias políticas, se baseia no fato de que ele não tinha o monopólio do que representava. Em política, o êxito consiste em assegurar que aquilo que se pensa como normal, desejável ou possível se torne uma atitude compartilhada, patrimônio comum de toda a comunidade política. Entretanto, para atingir isto, é necessário formular demandas destacáveis do invólucro ideológico (os símbolos e a linguagem) que as acompanha. Isto só pode ser realizado quando a conexão entre valores ideológicos e políticas práticas é vaga, frouxa, e está pronta, portanto, para ser permanentemente renegociada. É justamente porque é perfeitamente possível ser a favor de pensões e aposentadorias adequadas, sem apoiar o objetivo final do socialismo, que os liberais e conservadores podem lutar por elas. A consistência e a coerência podem proporcionar a sobrevivência indefinida de pequenas seitas políticas, mas certamente acarretam a decadência para os partidos e movimentos com reais ambições hegemônicas.

Examinar o socialismo como um programa político que tem interseções com o de outros partidos ajuda a esclarecer a importância dos objetivos de longo prazo, dos símbolos usados, do fato de privilegiar uma classe particular. Os partidos socialistas, como outros partidos, deviam apresentar posições contraditórias. Por um lado, eles propunham um programa realista que pudesse agradar a tanta gente quanto possível; por outro lado, insistiam no que era absolutamente distintivo e único. Eles sabiam que políticas exitosas seriam provavelmente imitadas e demandas populares assumidas. Para evitar a provável dispersão de apoio, os socialistas se apresentavam como autênticos campeões das reformas. Ao mesmo tempo, eles enfatizavam que estas não eram um fim em si, mas etapas para uma situação – socialismo – onde não mais seriam necessárias, porque os problemas sociais estariam eliminados. Desta forma, a insistência num objetivo final não era apenas uma estratégia de recrutamento dirigida a intelectuais e outros com aspirações milenaristas. Era também uma maneira convincente de fortalecer a força de atração daquilo que, de outra maneira, poderia aparecer como reformas limitadas. Analogamente, a insistência na classe operária não derivava exatamente da teoria marxista – o não-marxista Partido Trabalhista Britânico foi muito mais ruidoso em advogar uma consciência "proletária" que a maioria de seus congêneres no continente. Era o reconhecimento de que um grupo social particular representava a fonte mais provável de apoio às reformas sociais e econômicas.

A luta pela democracia, pelo Estado do Bem-Estar e pela regulamentação da semana de trabalho criou uma extensa arena de luta da qual todos os principais partidos participavam. Ela também trouxe à baila uma das características fundamentais do socialismo do século XX: seu estatismo. É relativamente recente o questionamento dos socialistas a este respeito. O crescimento de um Estado excepcionalmente forte e centralizado na URSS, bem como o desenvolvimento, entre as duas guerras, dos chamados Estados totalitários ofereceram aos opositores do socialismo uma plataforma ideal. O fascismo, o nazismo e o stalinismo podem ter representado formas extremas de estatolatria, mas será que os próprios socialistas não pensavam de maneira perigosamente próxima? Os socialistas não desenvolveram um "caso de amor" com o controle centralizado? O próprio Estado do Bem-Estar – freqüentemente descrito como produto de uma ideologia da compaixão, preocupada com o social – não seria a face moderada de uma obsessão com controles, burocracia e direções verticalizadas? Não seria, de fato, uma investida sistemática contra a liberdade individual e os incentivos?

Os socialistas têm aceito agora, em parte por oportunismo político, em parte por convicção, em parte por aquela crônica ignorância de sua própria história que macula os movimentos políticos modernos, que existe um elemento de verdade em tais críticas. De fato, o estatismo foi parte inseparável e inevitável da prática dos socialistas ( isto é, da prática reformista) mas não de sua ideologia (isto é, de seu compromisso revolucionário com um objetivo final socialista). Durante o século XIX, quando os socialistas estavam na oposição e o movimento em sua infância, o socialismo era contra o Estado. As razões são tão óbvias e têm sido investigadas com tanta profundidade que podemos simplesmente recordá-las aqui: o Estado era – tanto para marxistas quanto para não-marxistas – um Estado burguês que privava os trabalhadores do direito de voto e produzia uma legislação que, grosso modo, favorecia muito mais os empresários, a aristocracia e as classes médias que os trabalhadores. A posição antiestatista dos socialistas tinha certa substância. Por razões similares, os partidos confessionais da Europa, onde eles existiram, e a Igreja Católica Romana também enxergavam no Estado uma força alheia. Afinal, ele estava nas mãos de descrentes e racionalistas (como na França e na Itália) ou de "estatólatras" (Bismarck e os nacionalistas alemães). A Igreja percebia perfeitamente bem o que a propaganda liberal sempre se esforçara em mascarar, a saber, que o poder do Estado era usualmente a contrapartida inevitável do culto do indivíduo. No século XIX, o Estado foi considerado pelos liberais como o meio essencial através do qual quebrar a resistência dos privilégios tradicionais, ou poder local, e abrir caminho para o desenvolvimento dos mercados nacionais e, portanto, da acumulação capitalista. Analogamente, os conservadores consideravam o Estado como o instrumento principal a ser usado para frear os avanços das reformas liberais. Os reais étatistes, no século XIX, eram os liberais e os conservadores.

Gradualmente, primeiramente de forma imperceptível no começo do século XX, mais abertamente entre as guerras e claramente após a Segunda Guerra Mundial, os socialistas passaram a reconhecer que o Estado era a melhor arma disponível para a implementação dos três componentes do programa político original – democracia, bem-estar e regulamentação do mercado do trabalho.

É bastante surpreendente que esta aceitação do Estado – não exatamente do Estado como conceito, mas do Estado como máquina, como aparelho coercivo – tenha aparecido tão tarde no desenvolvimento do socialismo do século XX. Nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, havia uma visão otimista da possibilidade de forçar o Estado burguês a implementar um programa de reformas socialistas. Em princípio, eles não estavam errados. Sem o Estado, não poderia ter havido a socialização de alguns custos de reprodução da classe operária (o bem-estar social) e a regulamentação da jornada de trabalho. Sindicatos poderosos, sem um partido político, poderiam ter lutado sozinhos e negociado com os empregadores sobre a jornada de trabalho, as condições de trabalho, férias pagas, etc. Eles poderiam ter agido como um grupo de pressão e arrancado concessões dos partidos políticos governamentais. Esta foi, antes da Segunda Guerra Mundial, a experiência britânica. Emergiram dois padrões: no continente, a duração da jornada de trabalho e regulamentações semelhantes do mercado do trabalho foram obtidas do Estado; na Inglaterra, elas foram atribuídas à "luta de classes", isto é, à confrontação sindical com os empregadores. O continente seguiu o princípio dos direitos universais: onde a jornada de oito horas de trabalho foi vitoriosa, ela o foi em nome de todos os cidadãos. Na Inglaterra, qualquer vitória era limitada aos membros do sindicato.

A aprovação do Estado não era, portanto, parte da ideologia socialista. Era um instrumento para atingir os objetivos de médio ou curto prazo. O compromisso dos socialistas com o Estado aumentou à medida que estes objetivos se tornaram mais significativos e à medida que o objetivo final de um Estado pós-capitalista se tornou cada vez mais distante no futuro. O sufrágio universal tornou o Estado mais receptivo às demandas dos socialistas em nome de todos os cidadãos. Tornou-o também mais legítimo e, portanto, mais poderoso. Ele permitiu aos socialistas conquistar o poder político ao "capturar a máquina do Estado". Isto facilitou a implementação do restante de seu programa de reformas – a regulamentação da jornada de trabalho e a socialização de alguns custos de produção e reprodução –, o que transformou a sociedade industrial.

Socialistas e liberais compartilharam hipóteses igualmente positivas sobre o industrialismo, mas tinham visões diferentes a respeito de como deveria ser a relação entre o sistema político e a indústria. No tocante à teoria liberal, em contraste com sua prática, o propósito do Estado devia ser o de remover obstáculos para o avanço da sociedade industrial. Alcançado este objetivo, à indústria – como parte da sociedade civil – seria permitido desenvolver-se sem interferências. É digno de nota que esta era precisamente a posição defendida por alguns socialistas primitivos, em particular Saint-Simon.

Os socialistas eram ambivalentes acerca da sociedade civil. Por um lado, eles queriam ser tão livres quanto possível para organizar e usar a ação coletiva para realizar suas demandas; portanto, juntavam-se aos liberais, que queriam ampla liberdade de mercado. Por outro lado, eles enxergavam a sociedade civil como um espaço em que a distribuição de poder e dinheiro era tão desigual que diluía consideravelmente a igualdade de direitos adquirida na arena política.

5. Depois da Primeira Guerra Mundial

Os socialistas, portanto, consideravam o Estado ora como uma força alheia, ora como uma máquina que podia ser usada para a redistribuição do poder. Eles acreditavam que podiam controlar o capitalismo e mais tarde substituí-lo. O que eles não admitiam era que poderiam gerenciar o capitalismo. E aqui está a outra área substancial de acordo entre socialistas e liberais. Antes da Primeira Guerra Mundial, não havia socialista, marxista ou não-marxista, moderado ou autoritário, que pensasse em economia planejada. O modo como o socialismo seria organizado era uma questão sobre a qual os partidos socialistas se mantinham em silêncio ou recorriam a vagas generalizações de nenhum valor prático. Os intelectuais ajudavam pouco. Marx, de alguma forma, tinha pensado que a economia socialista se administraria por si mesma, seria a "administração das coisas", seja qual for o significado disto. Lenin, piedosamente, sugere que uma cozinha seria capaz de administrá-la. Kautsky, como a maioria dos socialdemocratas daquele tempo, simplesmente acreditava que a questão somente poderia ser resolvida quando o capitalismo se desenvolvesse plenamente e a classe operária adquirisse uma cultura e uma inteligência superiores. Bernstein, como havia declarado mais de uma vez, não estava muito interessado na sociedade socialista, preferindo lutar pela melhoria das condições da classe operária sob o capitalismo. Não existiam planos para criar um amplo setor público ou para nacionalizar a economia.

A guerra trouxe mudanças, e não só para os socialistas. Politicamente, ela rompeu o isolamento entre socialistas e partidos burgueses em todos os países beligerantes, na medida que os socialistas na França e na Alemanha colocaram a defesa de "seu" Estado acima da solidariedade internacional. Em assuntos econômicos, os Estados foram forçados a gerenciar a economia, regulando o mercado de trabalho, a produção e a distribuição numa escala sem precedentes. A idéia de gerenciar a economia capitalista instalou-se firmemente na agenda tanto de liberais e conservadores quanto de socialistas.

Na Rússia, o colapso do Império Czarista e a subseqüente débâcle militar criaram um vácuo de poder que permitiu aos bolcheviques tomar o poder. Mesmo então, a resposta automática dos bolcheviques não foi a abolição da propriedade privada e a construção da economia planejada. Durante a guerra civil, o controle enérgico e verticalizado da economia se devia a exigências da situação militar e não a predisposições ideológicas. O "passo atrás" para a adoção da Nova Economia Política foi visto como um retorno à economia de mercado, não como o prenúncio de novas formas de gerenciamento econômico. O mecanismo do planejamento introduzido por Stalin no fim dos anos 20 não foi a conseqüência inevitável da vitória bolchevique (dez anos após a tomada do poder), mas o desfecho de um vigoroso conflito político que evidenciou a vitória dos planificadores sobre seus oponentes mais gradualistas. Dito de outra maneira, mesmo no que veio a ser a URSS, o socialismo nem sempre foi identificado com a abolição das forças do mercado ou com o monopólio estatal da economia.

Na Europa, por toda a parte, os socialistas acabaram por se mostrar relutantes intervencionistas econômicos. Um dos efeitos da Revolução Russa foi afastar dos partidos socialistas seus quadros mais radicais, que formaram os partidos comunistas. Em parte alguma, estes foram capazes de assegurar o apoio da maioria do eleitorado socialista, mesmo onde, como na França, conseguiram reunir a maioria dos ativistas partidários. Como resultado, alguns partidos socialistas, embora radicalizados pela guerra, estavam mais livres para trilhar políticas mais conciliatórias com relação aos partidos de centro e centro-esquerda. Antes da guerra, todos os partidos socialistas, sem exceção, aceitavam o princípio político de que em nenhuma circunstância cooperariam com os partidos "burgueses". Durante a guerra, e sobretudo após, este princípio foi abandonado. Nos anos 20 e 30, os socialistas finalmente puderam assumir o poder político e formar governos. Em todos os casos, eles o fizeram em aliança com outros partidos: na Suécia, na França, na Alemanha, na Inglaterra, na Espanha.

Vieram abaixo algumas barreiras ideológicas que haviam sido erigidas para distinguir os socialistas do resto. Como vimos, em termos de políticas práticas, estas barreiras tinham sido flexíveis ao longo do tempo. Depois da guerra e particularmente nos anos 30, aspectos chave dos programas de reforma da socialdemocracia foram aceitos por outras forças políticas. Organizações radicais da direita (fascistas e populistas de direita) incorporaram algumas demandas sociais da esquerda, inclusive importantes elementos reformistas de bem-estar social, ainda que rejeitassem a política democrática que os acompanhava. Liberais, católicos e forças de centro aceitavam o princípio do sufrágio universal, embora em alguns casos (França, Bélgica e Suíça) continuassem a excluir a metade feminina da população. O princípio da regulamentação da jornada de trabalho tornou-se universalmente aceito.

A incorporação de alguns aspectos do Estado de Bem-Estar, acompanhada da repressão às forças políticas que mais vigorosamente o defenderam, tornou-se a marca registrada de regimes populistas autoritários que prevaleceram em áreas do Centro, Sul e Leste europeu, tais como a Itália fascista e a Alemanha nazista. Em alguns dos Estados democráticos remanescentes da Europa Ocidental, o período do entreguerras foi caracterizado por um instável compromisso entre trabalho e capital.

A existência do movimento comunista forçou os partidos socialistas a desenvolver barreiras ideológicas à esquerda. Eles o fizeram acentuando a importância da democracia política: não só a consideravam como o melhor arcabouço político para implementar suas demandas econômico-sociais, mas também como aquilo que fundamentalmente os distinguia dos comunistas. Entretanto, os socialistas também eram influenciados por aspectos chave da nova ideologia comunista, notadamente a importância da expansão da propriedade estatal. A reinterpretação completa da famosa Cláusula Quatro do Partido Trabalhista é emblemática. Adotada em 1918 quase como um adendo, ela se referia vagamente à "propriedade comum" dos meios de produção, distribuição e troca. Não estava claro como funcionaria na prática. Para alguns, isto se referia claramente ao futuro socialista. Para outros, fazia parte de um processo gradual no rumo de uma sociedade socialista: o capitalismo viria a ser abolido mais tarde, na medida em que empresas e inteiros setores industriais fossem absorvidos num setor público em expansão contínua. Para outros ainda, a propriedade pública compensaria as falhas do mercado, eliminaria empresas ineficientes, impediria monopólios privados.

O processo de osmose entre a esquerda e a direita que teve início antes da Primeira Guerra Mundial continuou e foi acelerado pela crise de 1929. Os liberais já não tinham tanta certeza de que o estado que interfere minimamente era o melhor. O rápido desenvolvimento do desemprego que havia desestabilizado a Alemanha e ameaçava a França e a Inglaterra era visto como uma evidência de que os socialistas tinham razão pelo menos num ponto: as forças do mercado não atingem naturalmente o equilíbrio mas uma instabilidade crônica. Na Itália, o regime fascista reagia à crise tomando posse do grosso do sistema bancário, mas mesmo na Inglaterra liberal e conservadora, uma intervenção estatal limitada tornou-se aceitável.

Contudo, a velha visão anterior à Primeira Guerra Mundial de que capitalismo e socialismo são rigidamente separados – compartilhada com os comunistas – permaneceu praticamente em toda parte entre as duas guerras. Quando os socialistas chegavam ao poder, se abstinham de ampliar o setor público e não tentavam dirigir a economia. Eles acreditavam que o capitalismo não podia ser administrado a não ser pelos capitalistas, e daí o respeito pela economia ortodoxa demonstrado pelos socialistas na Alemanha de Weimar, depois de 1928, na Inglaterra, quando os trabalhistas estiveram no poder em 1929-31, e em outras partes, como na Bélgica e nos países escandinavos. O máximo que se podia fazer era estabelecer sistemas de conciliação e negociação entre capitalistas e sindicatos, um dos muitos esquemas de "parceria" entre as duas contrapartes da indústria, que ainda são – no começo do século XXI – saudados como o dernier cri na modernidade socialista: do Pacto de Stinnes-Legien de 1918, que estabeleceu na Alemanha a comissão conjunta entre trabalhadores e empresários para a regulamentação econômica, aos Whitley Councils, na Inglaterra, dos Acordos de Matignon de 1936, após a vitória da Frente Popular na França, aos National Recovery e Wagner Acts de 1933 e 1935, nos EUA, dos Acordos de Saltsjöbaden, na Suécia (1938), ao Acordo Básico, na Noruega (1935).

Portanto, para a maioria dos socialistas, então como depois, socialismo prático significava proteção aos trabalhadores e suas famílias, através do desenvolvimento de políticas de bem-estar experimentadas e testadas e da regulamentação das condições de trabalho. A vitória do Governo da Frente Popular na França foi um sinal claro de que os socialistas "ocupariam o poder" onde fosse possível – e implementariam as reformas necessárias –, mesmo que não tivesse chegado o tempo de "exercício do poder", para usar a famosa distinção de Leon Blum. Em contrapartida, alguns socialistas formularam esquemas para planificar a economia – como, na Bélgica, o Plan du travail de Hendrik de Man ou, para usar seu título mais apropriado em flamengo, o Plan van den Arbeid – e defendiam um sistema econômico misto, incluindo, além do setor privado, um setor nacionalizado formado por instituições de crédito e antigos monopólios privados. Isto, obviamente, requeria um Estado forte e eficiente. O conservadorismo, o autoritarismo de direita, o liberalismo tecnocrata de Keynes e Lloyd George e todas as vertentes de socialismo convergiam para este ponto. Após o colapso de 1929, o liberalismo clássico, única ideologia importante que ainda defendia o Estado mínimo, estava em declínio mesmo em seu berço anglo-saxão.

6. Após a Segunda Guerra Mundial

Após a Segunda Guerra Mundial, os socialdemocratas europeus tornaram-se uma real alternativa de poder em praticamente todos os países democráticos da Europa Ocidental. De sua plataforma de três pontos, o primeiro – o sufrágio universal – tornou-se base política inquestionável, com algumas exceções significativas que ocorreram onde os partidos socialistas não exerceram nenhum poder: os estados sulistas dos EUA, que até o começo da década de 1970 privavam os negros do direito de voto na maioria das eleições; a Suíça, onde muitos cantões (em que os socialistas são fracos) restringiam o sufrágio apenas aos homens até 1971; e a África do Sul, onde – até o colapso do regime do apartheid – um sistema multipartidário excluía os negros de uma participação política efetiva.

O princípio do sufrágio universal é tão fortemente reconhecido que foi adotado ou mantido – mesmo que apenas em princípio – na maioria dos países recém-descolonizados e em todos os Estados comunistas; as regras ditatoriais foram asseguradas não pela privação do direito de voto, mas pela eliminação de qualquer oposição política efetiva.

Os princípios do Welfare e do pleno emprego nunca tiveram tal legitimação universal. Eles se tornaram políticas de governo predominantemente na Europa Ocidental e nos lugares em que os socialistas tinham força, como na Austrália. Quanto ao setor público, ele foi expandido na Europa Ocidental, mas houve pouca conexão entre a extensão do setor público e a força dos socialistas. As nacionalizações do pós-guerra ocorreram sob impulso de conservadores (gaullismo), democratas-cristãos na Áustria e Itália, socialistas (no Reino Unido). Um dos menores setores estatais na Europa era o dos países socialdemocratas nórdicos.

Sobre relações internacionais, nenhum princípio comum foi adotado no período pós-guerra. O compromisso retórico com o pacifismo, adotado antes da Primeira Guerra Mundial, permaneceu após a Segunda Guerra Mundial como uma subcultura interna dos partidos socialistas. Estes se dividiram entre atlantistas e neutralistas e entre os favoráveis a uma política de integração da Europa e os que continuavam comprometidos com uma concepção nacional do socialismo. Somente nos anos 90, o europeísmo tornou-se um fator unificador dos partidos socialistas – diferentemente do atlantismo, que, mesmo depois do colapso da URSS e da expansão oriental da OTAN, não foi aceito por importantes partidos socialistas, tais como os da Suécia, Finlândia e Áustria.

A organização internacional formada pelos partidos socialistas nunca foi além de um fórum simbólico. Seus pronunciamentos simplesmente refletem em termos gerais um vago consenso vago em torno de princípios. De fato, cada partido socialista se comportou como uma organização estritamente nacional, cuja prioridade era salvaguardar a própria comunidade nacional e, conseqüentemente, as exigências do próprio capitalismo nacional.

Como vimos, as conexões entre socialismo moderno e Estado e, portanto, com o próprio capitalismo começaram a ser estabelecidas no fim do século XIX. Portanto, não surpreende que, na medida em que os socialistas tiveram êxito em reformar suas sociedades capitalistas, eles tenham relutado em abandonar as instituições regulatórias existentes: um amplo setor público, um banco central poderoso, um mecanismo de controle cambial, um sistema complexo de subsídios e políticas regionais, um mecanismo intrincado para o controle do mercado de trabalho. Este aspecto regulatório tornou-se a relação fundamental entre socialismo e capitalismo e reduziu ainda mais a importância da antiga meta de abolição do capitalismo. De fato, esta acabou por ter, em grande medida, um valor simbólico: manteve-se para indicar que, embora fosse indispensável uma economia próspera para o êxito de todos os outros objetivos socialistas intermediários e embora estivesse distante a perspectiva de uma sociedade pós-capitalista, os socialistas ainda sustentavam uma relação antagônica com o capitalismo. Entretanto, o apelo popular desta mensagem simbólica se reduziu muito. A prosperidade associada ao crescimento capitalista, o estabelecimento do pleno emprego, o aparelho protetor do Estado do Bem-Estar, a incapacidade patente dos Estados comunistas de desenvolver uma sociedade de consumo comparável à do Ocidente – tudo isso veio quase eliminar o antagonismo profundamente arraigado contra o capitalismo, que existia anteriormente. Outros partidos políticos, tais como os comprometidos com os valores cristãos e conservadores, que, no passado, não tinham estado entre os maiores proponentes do capitalismo, descobriram suas virtudes. Os socialistas fizeram o mesmo. Portanto, gradualmente, mas continuamente, variando a velocidade de acordo com diferentes conjunturas políticas, e sobretudo, com as vicissitudes eleitorais, os partidos da esquerda abandonaram seus símbolos anticapitalistas radicais. Este processo, ao qual se refere em geral como revisionismo, acelerou-se no fim dos anos 50 com o Congresso do Partido Socialdemocrata Alemão em Bad Godesberg. Ele continuou em todos os partidos, dividindo tanto ativistas quanto líderes em meio à indiferença do eleitorado em geral, cuja notável estabilidade é um dos fatores mais significativos da história da Europa Ocidental no pós-guerra.

A vitória do revisionismo foi quase inevitável. Acabamos de aludir a uma das razões: o eleitorado da esquerda nunca esteve seriamente preocupado com a abolição do capitalismo como objetivo de longo prazo. Estava muito mais interessado em demandas de médio prazo e numa genérica justiça social, particularmente em educação e saúde. Conseqüentemente, os revisionistas, mesmo quando fracos em seus partidos, sempre tiveram um forte apoio entre os eleitores. Isto não podia deixar de ter impacto sobre os ativistas radicais, que queriam que seus partidos maximizassem as oportunidades de ganhar eleições. Existiram, porém, outras razões para a vitória do revisionismo. Em quase todos os casos, os socialistas só podiam esperar o acesso ao poder mediante coligações com os partidos de centro. Estes acordos teriam sido mais difíceis se os socialistas persistissem no anticapitalismo retórico e em esquemas radicais de redistribuição (que exigiriam níveis elevados de impostos). Houve, naturalmente, situações em que os socialistas podiam chegar ao poder apenas com um entendimento à esquerda – por exemplo, socialistas e comunistas na França, na década de 1970. Aqui, a plataforma negociada foi radical, mas os socialistas franceses foram capazes de usar outros acontecimentos simbólicos para sinalizar que seriam o parceiro dominante e conseguiriam manter os comunistas sob controle – o que, de fato, ocorreu.

De maneira mais geral, os revisionistas sempre puderam lançar desafios vitoriosos porque sempre gozaram de uma vantagem vital: seus oponentes conservadores (os partidos da direita), a mídia e as estruturas de poder que a estes davam apoio invariavelmente se mobilizaram para estigmatizar a esquerda radical como definitivamente destituída de contato com as realidades modernas. Dito de outra maneira, o revisionismo teve a vantagem que todas as posições centristas possuem: a de jogar em duas frentes. Como parte da esquerda, pode denunciar as iniqüidades capitalistas; como parte do centro, pode se distanciar do radicalismo.

Isto sublinha a maior conquista ideológica do socialismo moderno e também seu fracasso. A conquista consiste no fato de o mercado capitalista, livre e sem entraves, nunca ter sido capaz de estabelecer-se como ideologia dominante na política européia. Ele falhou, evidentemente, por toda a Europa católica (Espanha, Portugal, Itália, Áustria e Sul da Alemanha), onde as ideologias não-socialistas vigentes sempre tomaram uma forma tradicionalista (democracia-cristã), nacional-popular (gaullismo) ou populista autoritária (fascismo). Ele também falhou nos países nórdicos protestantes, onde os partidos agrários cooperaram ativamente no estabelecimento da hegemonia social democrata. Só na Inglaterra – berço original da ideologia do laissez-faire –, o conservadorismo de livre mercado adquiriu uma posição de relativa hegemonia nos anos 80. Ainda assim, mesmo lá, ele o fez de forma quase sub-reptícia, graças a um sistema eleitoral que favorece o maior partido, à desorientação na esquerda e no centro, e ao recuo do conservadorismo nacional tradicional.

O maior fracasso ideológico da socialdemocracia está vinculado a uma das causas de seu sucesso original: tendo identificado corretamente o Estado como o principal regulador da economia capitalista, ela buscou, com sucesso, democratizá-lo e utilizá-lo. Enquanto o Estado conservou esta posição, a estratégia socialdemocrata manteve plena coerência. Mas, na medida em que vários aspectos do capitalismo (especialmente sua organização financeira) se desenvolveram num sentido global, esta estratégia centrada no Estado começou a falhar. Os socialdemocratas e os maiores partidos comunistas do Ocidente permaneceram aferrados a uma concepção nacionalista da política e a reforçaram constantemente, encerrando suas conquistas (bem-estar, educação, direitos civis) dentro das fronteiras territoriais do Estado, enquanto o capitalismo dava passos largos rumo à globalização.

7. Conclusão

Predizer se o socialismo tem futuro é um exercício fútil, ao qual, no entanto, se aplicam com espantosa regularidade pessoas inteligentes e bem informadas. Como vimos, a questão de saber o que é "realmente" o socialismo sempre esteve em disputa; uma vez que seu significado preciso pode ser continuamente redefinido e renegociado, não há razão para que o termo não seja usado indefinidamente – ou, pelo menos, enquanto o capitalismo existir. A única condição para sua sobrevivência é a existência de forças políticas significativas dispostas a se associarem a ele. Enquanto o termo "socialismo" for usado para denotar qualquer forma de regulação política do capitalismo, o socialismo vai perdurar, assustando uns, tranqüilizando outros, morrendo regularmente e revivendo outra vez, como centro de debates e disputas sem fim.

O socialismo como uma força anticapitalista, visando à superação do presente arranjo econômico da sociedade e ao estabelecimento de uma ordem social alternativa, na qual os recursos são alocados de acordo com as necessidades, há décadas tem sido uma força morta na Europa Ocidental.

As pretensões do socialismo como força modernizadora (o socialismo em sua vertente comunista), capaz de alcançar as sociedades capitalistas industrializadas, foram completamente derrotadas nos últimos vinte anos. O colapso da URSS constituiu a demonstração mais notável desta derrocada. E os acontecimentos na China, onde um partido comunista se esforça para estabelecer relações capitalistas, dão uma confirmação adicional do colapso histórico da idéia do comunismo.

No começo do novo século, o socialismo como força distributiva que visa alocar recursos vitais, como saúde, cultura e educação, fora dos mecanismos do mercado e com base na cidadania social, isto é, sem excluir ninguém, ainda sobrevive sem perda de apoio. Seus recentes êxitos eleitorais podem ser vistos como um reconhecimento consciente ou inconsciente, por parte da maioria dos eleitores, da necessidade de algum tipo de renegociação com um novo tipo de capitalismo, mais afirmativo, mais confiante, mais poderoso e mais global. E um reconhecimento tácito de que pode ser melhor confiar tal renegociação às forças políticas que, historicamente, sempre desconfiaram, quando não hostilizaram, a ideologia do mercado livre.

A dificuldade dos que ainda se autodenominam socialistas é que, enquanto estes necessitam tanto do capitalismo quanto do crescimento econômico e da prosperidade que ele pode gerar, o capitalismo prescinde deles. As sociedades capitalistas podem ser organizadas de maneira economicamente sustentável, oferecendo apenas proteção mínima a alguns grupos marginais (EUA) ou delegando atividades promotoras de bem-estar a organizações da sociedade civil, tais como grandes empresas, grupos sociais e familiares (Japão). Estes diferentes modelos, particularmente o americano, cuja capacidade de utilizar cada crise para reemergir mais fortalecido é surpreendente, têm boas perspectivas de um resultado favorável. Tais expectativas são grandemente fortalecidas pela crescente relutância dos líderes socialistas e seus seguidores de se identificarem com o termo socialismo.

Tal relutância é um reflexo da multiplicidade incontrolável de significados que sobrecarregaram o termo e da incapacidade que os socialistas demonstraram para produzir seu próprio significado dominante do termo. É como se eles tivessem aceitado que a definição "hegemônica" de socialismo é aquela dada pelos inimigos: uma definição que desacredita o socialismo por seu suposto iliberalismo, estatismo, anti-individualismo e dogmatismo; por recompensar a ineficiência e reprimir a iniciativa.

Nenhuma ideologia pode sobreviver por muito tempo, se seus seguidores sentem dificuldades em se identificarem com ela.

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Donald Sassoon é professor de História Européia Comparada no Queen Mary and Westfield College da Universidade de Londres. Texto originalmente publicado no Journal of Political Ideologies, v. 5, 1, 2000.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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