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Carajás - a conta do bilhão

Lúcio Flávio Pinto - Julho 2007
 

A Vale já começou a comemorar um aniversário que só acontecerá em outubro: o primeiro bilhão de toneladas de minério de ferro produzido em Carajás. Se seus planos derem certo, o 2º bilhão acontecerá em menos de uma década. E toda a melhor jazida de minério de ferro acabará em mais um século. O que sobrará para nós destas festas? As batatas?

A Companhia Vale do Rio Doce começou a comemorar, no mês passado, uma façanha que só se completará em outubro: a produção de um bilhão de toneladas de minério de ferro na mina de Carajás, no Pará. A marca foi alcançada com menos de 23 anos de operação, graças a uma extração média de 45 milhões de toneladas por ano (começou com menos da metade desse valor). Se a mina tivesse funcionado durante esse período com a capacidade máxima de projeto, de 25 milhões de toneladas, o primeiro bilhão só seria alcançado em 40 anos, ou 2025.

Há, portanto, motivo para tanta comemoração. Haverá ainda mais razões quando o segundo bilhão for atingido. Se a escala atual de produção, em vigor a partir deste ano, que passará de 85 milhões para 100 milhões de toneladas, fosse mantida, Carajás chegaria a 2 bilhões em 10 anos - em menos da metade do tempo do 1º bilhão. Acontece que a partir de 2010 a mina já estará funcionando na bitola de 130 milhões de toneladas, respondendo por metade de toda produção de minério de ferro da CVRD, a maior vendedora desse produto no mundo.

São números espantosos. As jazidas de Carajás, com 18 bilhões de toneladas, podiam durar 800 anos se o máximo de produção que era previsto inicialmente se mantivesse. Na média do primeiro bilhão, o tempo de vida útil cairia à metade, em valores redondos. No ritmo que a mina terá a partir de 2010, esse prazo baixará para 180 anos. Ou seja, mais 130 anos a partir do momento em que começasse a produzir 130 milhões de toneladas a cada ano. Ou, na verdade, um tanto menos: seria preciso descontar desse total o minério já extraído. Talvez apenas mais um século.

Aquele fantástico pacote de hematita compacta, com 600 metros de altura, espalhando-se por mais de 400 mil hectares de área, inteiramente lavrável a céu aberto (sem precisar, portanto, de dispendiosa mina subterrânea), que parecia infinito, inesgotável, não será mais do que história para os nossos bisnetos. Restarão então algumas perguntas ansiosas pelas respostas: fizemos por merecer o melhor minério de ferro que já existiu na crosta terrestre? Tiramos dele os benefícios que ele nos podia proporcionar? Fomos inteligentes no seu aproveitamento? Pensamos a longo prazo, já que minério não tem segunda safra, ou agimos apenas considerando o imediato?

À euforia da CVRD, com tantas marcas históricas alcançadas e recordes quebrados ao longo de 10 anos como empresa privada, a indicar o acerto da administração Fernando Henrique Cardoso em privatizá-la, corresponde a inquietação dos que questionam se têm motivos de fato para se incorporar a esta festa. A cada vez em que faz o balanço do exercício findo e apresenta seus planos para o ano em curso, a direção da Vale esgrime números grandiosos.

São sempre bilhões e bilhões de reais ou dólares, centenas e centenas de empregos, rendas e salários, trens e vagões, usinas e estradas. Agora seu valor de mercado chegou a 100 bilhões de dólares, tornando-a a segunda maior mineradora do mundo. À sua frente está apenas a anglo-australiana BHP-Billiton. Encerrado o foguetório verbal, porém, fica a sensação de que a participação do distinto público restringe-se à festa de aniversário, ao vernissage, à avant-prémière, à admissão com data certa e duração curta. Na hora de distribuir os dividendos, a reunião é em circuito fechado.

É impossível não deixar de reconhecer e admirar a capacidade empreendedora e o tirocínio de dezenas de pessoas que dirigiram e dirigem ainda a companhia, numa sucessão aberta pelo engenheiro Eliezer Baptista. Foi ele que definiu um rumo, o do Oriente, para viabilizar Carajás depois que os americanos da United States Steel se retiraram da associação com a CVRD, iniciada em 1969, dois anos depois daquele 31 de julho de 1967, que marca a descoberta da jazida, em outra data honorável, cujos 40 anos serão devidamente comemorados.

A USS, então a maior siderúrgica do mundo, achou que podia se manter na sua mina da Venezuela, aonde se estabelecera em 1954, e esperar por um novo chamado dos ex-parceiros compulsórios (por exigência do governo militar, incomodado com o fato de uma multinacional ser dona exclusiva de tamanha riqueza estratégica). Afinal, a engenharia econômica de Carajás lhe conferia vantagem competitiva exatamente pela abertura que propiciaria ao Brasil do mercado consumidor dos Estados Unidos, vedado até então.

Mas a equação de Eliezer Baptista já estava armada em torno do Japão, que se tornaria o principal cliente de Carajás (e da fábrica de alumínio da Albrás). Para fechar as contas, a Vale precisava deslocar o concorrente australiano, que estava muito mais perto, porém dispunha de um minério bem mais pobre. Só pureza não bastava: a Vale azeitou a logística e criou um eixo de exportação invejável, através de ferrovia, até o porto da Ponta da Madeira, em águas profundas, no litoral do Maranhão.

O minério de Carajás chegou barato ao Japão, garantindo 15% da demanda dos altos-fornos da sua siderurgia. Quando o gigante chinês despertou, provocando o maior impacto mundial da era moderna (a China produz um terço do aço do mundo), a CVRD já dispunha de um esquema afinado para se habilitar a fornecer volumes crescentes, numa escala que já chega a 40 milhões de toneladas, superando o Japão. A triplicação e quadruplicação do preço do minério, que por largo tempo estagnou em torno de 20 dólares, é função do enorme e insuspeitado incremento da demanda chinesa.

Por causa dessa fome ainda insaciável (e pendente de controle e redução) de minério para atender à desenfreada expansão da produção de aço, em 2003 a Vale deu um golpe antes impensável: reajustou sua principal mercadoria em 71,5%. E todos tiveram que pagar. Os aumentos seguintes não foram tão notáveis assim, para não dar um nó no mercado, mas continuaram a ser impressionantes.

O resultado: exercício após exercício, a Vale fechava seu balanço quebrando recordes de produção, faturamento, lucro líquido e distribuição de dividendos. Em 2005 foi a empresa que mais dividendos distribuiu no mundo inteiro. Quem aplicou em papéis da Vale ganhou quase 10 vezes mais do que quem investiu em caderneta de poupança nos últimos 10 anos. A compra do controle acionário custou, em 1997, 3,3 bilhões de reais. Só o lucro líquido de 2005 foi quatro vezes e meia maior.

Como seus acionistas já tiveram de volta o dinheiro aplicado várias vezes (a uma taxa média de 40% desde a privatização), a empresa incrementou no ano passado seu porte: incorpou a segunda maior produtora e dona da maior jazida de níquel do mundo, ao custo de 19 bilhões de dólares, em dinheiro vivo, para liquidar os demais pretendentes ao negócio. Foi o maior que uma empresa baseada na América do Sul já realizou em todos os tempos.

A CVRD, há seis anos sob o comando forte de Roger Agnelli, o mais impetuoso dos executivos brasileiros (pulverizou Benjamin Steinbruch dos anais da empresa), está cada vez mais forte (embora razoavelmente endividada), mais (preocupantemente) internacionalizada e fica mais diversificada (com a Inco, a área de metais não-ferrosos já é responsável por 42% do faturamento). Mas e o Pará?

O Pará, ao que parece, é um detalhe nessa história, embora sem ele não houvesse parte (e a parte melhor, para a companhia) dessa história. O Pará está à margem, está fisicamente atrás da porteira que controla ou simplesmente veda o acesso às minas (que, como se sabe, não são apenas de minério de ferro: incluem neste momento manganês e cobre, mas têm ainda níquel e ouro, em proporção crescente).

O caos humano - social, étnico, fundiário, policial - fica do lado de fora. Do lado de dentro, a ordem, o compromisso, a determinação. Um universo protegido pelas unidades de conservação que circundam as minas, criadas pelo governo federal, por inspiração da CVRD, que não pôde comprar a superfície do solo que contém as rochas mineralizadas. A empresa proclama que o Pará está muito bem e ficará ainda melhor. Está apostando muitas fichas no Pará. Seu plano de investimento é várias vezes superior ao do governo do Estado, que se encolheu comparativamente ao porte da mineradora.

Só para se ter uma idéia: um quarto do dinheiro que a empresa gastou nos últimos quatro anos em suas ferrovias e terminais portuários (o equivalente a dois bilhões de dólares) daria para concluir, com folga, o sistema de transposição do Tocantins, restabelecendo a navegabilidade do rio, interrompida pela barragem da hidrelétrica de Tucuruí há 23 anos.

Mas a CVRD está sob o guarda-chuva leoninamente protetor da Lei Kandir, que a isenta do pagamento de imposto por exportar, que é quase só o que ela faz no Pará, produtos semi-elaborados. Seu efeito germinativo no Estado é desproporcionalmente pequeno diante do volume enorme de riquezas que ela movimenta no Pará. Gastará 2,5 bilhões de dólares nos próximos dois anos para elevar a produção de minério de ferro para 130 milhões de toneladas e colocá-la no porto de embarque, na ilha de São Luís, praticamente duplicando a ferrovia de Carajás. Como não chegará a tanto, provocou especulação sobre sua intenção de construir um mineroduto, o maior do mundo, com quase 900 quilômetros de extensão (seis vezes o tamanho dos minerodutos do caulim).

A empresa está disposta a esticar sua imaginação e seu capital até o limite extremo para colocar mais minério paraense no mercado mundial, mas não move uma palha no sentido de transformar minério de ferro em aço dentro do Estado. Não só agregaria mais valor ao produto como teria menos volume a transportar nos comboios, que terão sua capacidade atual aumentada de 220 para 320 vagões no próximo ano, constituindo o maior trem de minério do mundo. Quase um terço do minério transportado é estéril, descartado somente na siderurgia.

É certo que com uma tonelada de ferro se aproximando de 90 dólares, aritmeticamente falando é mais atraente vender minério. Mas por quanto tempo? Em que nível de dependência de dois clientes, China e Japão, responsáveis pela compra de mais da metade da produção de Carajás, principalmente da China? E - o que nos toca mais de perto - por que privar o Pará de usufruir essa fase de vacas gordas?

Se a Vale só pensa nela, está na hora de o Pará pensar na parte que lhe cabe nessa sucessão de festas de recordes, seja na forma de uma compensação honesta e devida como numa sobretaxa sobre o lucro, a partir de certo limite, mesmo que essa compensação precise vir através de uma nada fácil legislação ou de uma terrível guerra política. Já está na hora de os paraenses se aperceberem de uma coisa: essa enorme e valiosa riqueza que está indo embora, numa escalada crescente, não voltará. Nunca mais.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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