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Sobre a cultura política do Partido Democrático

Alfredo Reichlin - Outubro 2007
Tradução: Josimar Teixeira
 

Estas notas que, em parte, reelaboram coisas que escrevi em outros lugares não têm a pretensão de descobrir problemas desconhecidos [Ver aqui a segunda parte deste texto]. São inteiramente conscientes do modo substancialmente rapsódico como se enfrentam as questões que levanto. No entanto, pareceu-me útil fazê-lo por uma razão muito simples. Estamos diantes não só do problema de elaborar um programa. Veltroni já apresentou um programa bastante sério. Outros se seguirão. Aquilo que se faz agudamente necessário é a elaboração de uma cultura política, isto é, de algumas idéias mais fundamentais que nos tornem capazes de enfrentar os desafios do mundo novo, com base numa visão compartilhada do futuro da nação. Afinal de contas, é isso que legitima o Partido Democrático. Ele se candidata como guia do país na medida em que assume o papel de força nacional que não conseguem desempenhar outras forças ligadas a esquemas interpretativos de uma Itália que não mais existe.

Sei muito bem que o que decide o sucesso de qualquer operação política é a concretude das escolhas e a capacidade de enfrentar o "aqui e agora". Mas esta não é uma operação política normal. Nós dizemos que queremos fazer - e na realidade estamos fazendo - uma coisa inteiramente inédita: estamos fundando um partido. O que significa que estamos fazendo uma operação essencialmente ideal e cultural, sob o risco do seu fracasso. Ademais, este novo sujeito deve nascer da fusão não só de organizações e nomenclaturas diversas, mas de estruturas mentais que por longo tempo se encarnaram em "povos" diversos, os quais se consideraram até ontem como inimigos. Este é o desafio. É de uma dificuldade imensa. A condição do seu sucesso é, precisamente, a elaboração de uma cultura política, a qual se afirme como comum na medida em que, cotejada com as novas realidades da Itália e do mundo, revele seja o anacronismo das velhas idéias, seja a necessidade e a força de novas sínteses.

Neste terreno, há muito o que fazer, combatendo até mesmo arrogâncias de variada natureza e pretensões de verdades exclusivas. Não é fácil, porque o passado não é um peso a lançar ao mar. Criar um novo partido não é como escrever numa página em branco. E precisamente quem pensou muito sobre a necessidade desta escolha crucial não pode deixar de sentir toda a responsabilidade que assume. Estamos acertando as contas com a história da Itália republicana e dos partidos que a edificaram. É claro que se trata de história encerrada. Mas aqueles partidos, mesmo que lutando duramente entre si, escreveram juntos uma Constituição e conjugaram grandes lutas políticas e sociais com a formação de um povo-nação. Construíram um caminho.

Conscientes deste caminho é que nos perguntamos se se esgotaram a específica forma partido e a cultura política que caracterizaram a esquerda do século XX. Penso que sim. E penso que devíamos registrar o fato. Mas não em nome deste infinito arrependimento pelo passado, e sim pela própria idéia historicista e laica que o melhor do PCI nos ensinou: de acordo com ela, um partido não é uma "categoria do espírito" e sua identidade é, sobretudo, sua função histórica. No entanto, não me nego a ver, de modo algum, o problema posto por esta expressão: "função histórica". Qual foi, ou pensamos ter sido, aquela função em razão da qual nos tornamos um grande partido do povo e empenhamos nossas vidas? É a pergunta nos propôs Vittorio Foa: vocês acreditavam na revolução? Decerto, não acreditávamos no assalto ao Palácio do Poder, mas num mundo diferente certamente sim. E é por isso que sinto todo o peso e o significado de ruptura das decisões que estamos tomando.

Mas também sinto que não devo aceitar a redução da política à gestão de um eterno presente. Afinal de contas, o que se abre diante de nós é um mundo novo. E os problemas e as interrogações que ele apresenta, acredito, não se referem apenas a alguns ex-comunistas que não se envergonham de tê-lo sido, mas sobretudo aos mais jovens, aos que virão: sejam laicos, sejam católicos, sem carregarem nas costas a história dos partidos. Deste modo, o único modo pelo qual o melhor desta força pode reviver, não como simples nome, mas como fator político e cultural determinante, é ficar no centro da luta real de hoje entre progresso e reação. Esta é a questão. Não reduzir-se a uma pequena seita de nostálgicos, mas recolocar-se numa formação política mais ampla, capaz de representar a Itália moderna e de manter aberta a perspectiva de governo.

Eis a razão destas notas. Elas querem ser uma contribuição ao surgimento do Partido Democrático por parte de quem busca raciocinar não sobre uma anexação, mas sobre uma nova síntese. E nesta lógica perguntamo-nos se as "coisas", as grandes "coisas" nos induzem, ou não, a recuarmos, resignados, no sentido de uma força moderada. Acredito que não. E por uma razão essencial, que, afinal, é a própria função do Partido Democrático, o seu papel, a razão da sua existência: enfrentar a transição a que chegamos, isto é, o fato de que chegamos ao ponto em que, para evitar uma inflexão autoritária, é preciso pôr os italianos em condições de fazer face a problemas que afetam todo o corpo social e o tecido da nação.

A Itália não terá êxito se a política não readquirir aos olhos das pessoas o sentido de uma missão civil. Este é o dado. O país só pode ter futuro se uma nova classe dirigente se erguer diante da tentativa de enlamear tudo e todos, apoiando-se nas energias e nos recursos profundos do povo, no acervo de valores que ainda existe (não só à esquerda), no tecido identitário da nação. Mas esta tarefa é impossível se as forças democráticas não se reorganizarem e não se unirem, saindo do círculo de histórias divididas e que até hoje ainda não se legitimaram verdadeiramente umas às outras. Porque, afinal, esta é a maior fraqueza dos italianos: falta-lhes o sentimento e o orgulho de uma história comum.

O momento é muito delicado. O novo partido não pode nascer de arrependimentos ou de abjurações que ninguém pode pedir a ninguém. Mas sua formação e sua capacidade de reencontrar um "povo" dependem muito de uma releitura da história do país que desate este nó. Creio que seria preciso dar um relevo maior não só à história dos "dominantes", mas à dos "dominados" e à sua dura luta para sair de uma situação de atraso até há pouco semifeudal e de uma situação de miséria extrema. De outro modo não conseguiremos nunca compreender por que as vicissitudes da democracia italiana foram, e continuam a ser, as de uma democracia difícil.

E sejamos claros: por culpa essencialmente do PCI, na medida em que teria sido sua grande força o que impediu a afirmação de um partido reformista de governo, potencialmente majoritário, comparável às grandes socialdemocracias européias? Existe alguma verdade nisso, naturalmente, e os ex-comunistas podem refletir o quanto quiserem sobre o grande e terrível contexto histórico que se abriu com a Revolução de Outubro, no âmbito do qual se soldou a "ligação de ferro" com a URSS. Resta o fato de que o caminho do governo, para a maior parte das forças populares e democráticas, permaneceu bloqueado em nome de visões palingenéticas ilusórias. É com esta história que se devem acertar as contas. Mas a condição para acertá-las integralmente é que o advento de uma classe dirigente nova torne finalmente possível realizar aquele passo fundamental que consiste em sair das velhas disputas ideológicas (em grande parte superadas) até o terreno da análise factual, histórica e política, para responder à grande pergunta sobre por que, mesmo na Itália de hoje, certos problemas continuam sem solução. E, então, a pergunta verdadeira diz respeito, inclusive e sobretudo, à natureza e às responsabilidades das classes dirigentes.

Não é um problema dos historiadores, mas dos políticos atuais, compreender as razões de fundo pelas quais o modelo socialdemocrata não se firmou na Itália. Houve o peso do mundo católico. E, quanto ao PCI, acredito que compreenderíamos melhor muitas coisas se partíssemos de uma pergunta elementar: é o PCI que explica a história da Itália (incluindo a fraqueza do reformismo), ou é a história da Itália que explica o PCI? Togliatti era ainda um menino, quando os generais do Rei dispararam tiros de canhão sobre os operários de Milão e prenderam Turati. E não preciso recordar os estados de sítio, o regicídio, os massacres de camponeses. E a Igreja dominada pela preocupação de uma convergência entre as massas católicas e socialistas, a ponto de impor o exílio a Dom Sturzo.

É verdade que a história do pós-guerra conheceu grandes e até extraordinárias reformas: a Constituição republicana e a transformação de um país pobre, camponês, amplamente analfabeto, numa grande potência industrial. Mas a questão é que a democracia permaneceu pela metade, "difícil", "não completa", para citar Moro. Não houve a grande e recíproca legitimação política. Depois do colapso do comunismo e do fim do PCI, houve a alternância no governo entre direita e esquerda, mas ela também teve os traços de deslegitimação recíproca que sabemos. Quanto aos herdeiros do PCI, fizeram muitos "mea culpa" e se converteram ao reformismo. Mas isso não tornou a esquerda capaz de expressar uma hegemonia. Ao contrário, dividiu-se em seis ou sete partidos, entre socialistas, comunistas e "revolucionários" de variada extração.

São coisas sabidas. Se as lembrei, é porque só neste quadro (o quadro da história, não da politologia) se compreende melhor a opção do Partido Democrático. No fundo, como lucidamente sustentou Pietro Scoppola, ele representa o esforço de sair da "democracia difícil", reunindo as forças de esquerda e democráticas que têm bases populares, históricas. E é um absurdo que os herdeiros do PSI, fortalecidos também com suas razões, não empunhem nas mãos esta bandeira.

Tomemos cuidado para não fracassar. A democracia italiana corre riscos porque se criou um vazio que o reformismo fraco destes anos não preencheu. Certas conquistas não devem ser subestimadas (a moeda única, o governo, os prefeitos). Mas, substancialmente, o que assistimos nestes anos não foi a vitória do reformismo, mas uma brutal e profunda redistribuição do trabalho e da riqueza que há tempos não acontecia assim tão ampla. Basta pensar na alteração dos preços relativos. Estes foram os anos em que se consumou uma grande derrota cultural e ético-política da esquerda democrática. O berlusconismo não foi um parêntese e por pouco não permeou o sentimento da maioria do país. A esquerda governou muito, freqüentemente com bons resultados. Os DS [Democratas de Esquerda] foram os verdadeiros fiadores da manutenção do regime democrático, e seus dirigentes se empenharam com muita generosidade por um novo e grande projeto reformista. Mas não conseguimos reunir os recursos mais profundos dos italianos, recursos de inteligência, de solidariedade diante dos infortúnios, de coragem para empreender, de confiança no futuro, que estiveram na base da reconstrução após a guerra e do "milagre econômico", que entre os anos 1950 e 1970 criou a Itália moderna.

Este é o grande tema que temos diante de nós e que justifica as esperanças no Partido Democrático. É verdade que as velhas narrativas históricas não servem mais. Mas resta o fato de que a política não é nada se se reduzir a uma profissão e se não se fizer acompanhar de um impulso ideal que conquiste também as mentes. De resto, se examinarmos aqueles anos e nos perguntarmos o que salvou a Itália do declínio, por qual razão se deflagrou um autêntico milagre econômico e quais fatores nos levaram ao mundo dos ricos e ao grupo de ponta dos países avançados, seria muito útil reler a explicação dada àquele "milagre" pelo economista Giacomo Becattini.

As razões são muitas, mas a que, para ele, foi essencial consistiu no fato de que "a guerra perdida, com os exércitos estrangeiros ocupando nosso solo, foi sentida por amplos estratos de população do centro-norte como um providencial ‘empurrão’ naquela estrutura social opressiva que foi o fascismo, e esta foi a premissa de uma libertação que, a partir do terreno político inicial, se estenderia em seguida ao social e ao econômico. Para mim - diz o economista toscano -, é certo que a compreensão do início do milagre não pode deixar de explorar aquele complexo movimento de rebelião de baixo para cima que assumiu formas progressivamente diferentes: o antifascismo, a resistência, a volta do engajamento político de massa, o despertar inicialmente lento e subterrâneo, mas progressivo, das reivindicações femininas - em parte causa, em parte efeito da mudança - e, por fim, quando e onde se criaram as condições, a passagem para o trabalho autônomo e a aventura da pequena empresa. E junto disso o fato de que também os partidos de oposição e os sindicatos, ainda que bem cedo afastados (os primeiros) das responsabilidades de governo, deram sua contribuição à decolagem, contendo entre outras coisas - não sem tormentos e contradições, como é lógico - os filões mais espontaneístas do protesto, cortando pela raiz a tendência fragmentadora do anticlericalismo, educando as massas para o conflito democrático, mas sobretudo trazendo razoável honestidade e eficiência à administração do governo local".

***

A Itália de que fala Becattini não existe mais. Os italianos mudaram muito e se tornaram europeus. Para levá-los a se empenharem novamente, o Partido Democrático deve ter muito claro o contexto novo em que nos movemos e qual é a questão em jogo. De fato, não servem mais as velhas disputas ideológicas sobre o que é o reformismo. O problema dominante (que, de resto, é aquele indicado por Veltroni, e para cujo enfrentamento ele propôs sua candidatura) é como evitar o risco de que o país se desarticule. Tenhamos cuidado. Não se trata só do fato de que a distância entre Norte e Sul está se tornando abissal. É o equipamento global da Itália (a chamada competitividade total dos fatores) que se debilita em relação aos países mais modernos. Este é o dado. É o capital social, físico e humano da Itália que está se empobrecendo. Parecemos ricos porque uma sociedade de velhos defende corporativismos, rendas e privilégios, pondo nas costas das novas gerações o pagamento de uma dívida imensa (a segunda do mundo), que se acumulou para gerar renda e não para construir escolas, laboratórios científicos, serviços modernos, ferrovias velozes, intervenções para salvaguardar o ambiente e valorizar a cultura e a beleza do país.

A razão principal pela qual a Itália se acomodou e se dividiu é esta. É o potencial produtivo (incluído o conjunto de conhecimentos) que foi atingido, e nisto consiste a verdade do protesto de um certo mundo do trabalho moderno e da empresa. São, pois, as forças produtivas modernas, tanto o trabalho quanto a empresa, a inteligência, a criatividade e a cultura, que é preciso tornar a pôr em movimento. São evidentes as responsabilidades das classes dirigentes e daquele mundo vulgar e enriquecido cujos fastos são narrados pela TV. Mas a esquerda não é inocente. E, se quiser retomar a iniciativa e sair desta mesquinha e surrada rixa entre falsos reformistas e falsos revolucionários, deve assumir, ela mesma, a tarefa (que, aliás, só ela pode assumir, e não a direita) de criar as condições políticas (democracia, direitos, regras) e sociais (justiça, participação) para repor em ação o desenvolvimento das forças produtivas. De outro modo, o Partido Democrático fracassará, dado que nestas condições corre-se o risco de um verdadeiro colapso do sistema democrático.

Não acredito que esteja exagerando. A chamada questão setentrional é uma coisa terrivelmente séria, não redutível ao velho leghismo [Lega Nord], porque não é um problema territorial e não pode ser delegada aos prefeitos. Ela revela um problema que não é só italiano. Trata-se da crise das velhas formas da democracia moderna garantidas pela soberania dos velhos Estados nacionais. Estas formas não são mais capazes de acompanhar a velocidade das transformações do mundo. Não garantem o conjunto de soberania, proteções, direitos iguais para os próprios cidadãos, agora às voltas com os problemas de competir na economia das redes, dos mercados globais e dos países em que o trabalho não custa nada. Também isso são coisas sabidas e já ditas, mas a novidade é que este problema, na Itália, está se agravando a um ponto tal que deveríamos nos perguntar se, por trás do protesto da parte produtiva do país, não está o fato de que não se sustenta mais o Estado unitário nas suas formas atuais.

Não temos muito tempo. Nos últimos anos descemos de um nível de renda per capita 10% superior ao nível europeu para um nível que já está bastante aquém da média. Não nos demos conta, mas nosso espírito de litígio, sempre a culpar os outros, esconde o fato de que já empobrecemos. A Espanha está prestes a nos superar. A França, a Inglaterra e a Alemanha se afastam cada vez mais de nós. Portanto, a recuperação em curso não é suficiente. Nosso crescimento continua a ser inferior ao daqueles países. O que significa que, para alcançá-los de novo, deveríamos produzir (segundo os cálculos de Deaglio) pelo menos meio ponto além da média européia por vinte anos consecutivos. E isto se quiséssemos voltar ao padrão de há dez anos. São cálculos abstratos, mas que dão uma idéia da dimensão do problema. A conclusão é que não é de modo algum inevitável, mas se tornou muito sério o risco de viver mediocremente, decaindo progressivamente até uma condição de exclusão dos grandes circuitos do desenvolvimento moderno. Que futuro terão os jovens? Coloquemo-nos apenas esta questão. Já agora os melhores tendem a estudar no exterior e buscam afirmar-se em outros lugares.

Estamos diante, pois, de uma questão crucial, e para enfrentá-la é preciso a coragem política de uma virada. E esta virada deve consistir em enfrentar o que de fato bloqueia o futuro da Itália. Falo daquele emaranhado de compromissos sociais, e mesmo políticos e sindicais, cujo resultado é este conjunto de rendas e corporações, de trabalho ilegal e de exclusão relativa das mulheres e dos jovens das atividades produtivas, de excessivos ganhos especulativos e de atraso da rede de serviços modernos, da escola, da pesquisa, da justiça, da administração pública. Precisamente estes compromissos é que tornam vazias e abstratas as ilusões de certos professores sobre os milagres do mercado e sobre a necessidade de evitar toda e qualquer intervenção pública. E que, ao mesmo tempo, tornam inúteis muitos discursos sobre a justiça social e sobre a redistribuição de renda, se estas questões não forem enfrentadas. Nisto consiste a radicalidade do reformismo necessário. Bem ou mal, trata-se - digamos claramente - de acertar as contas com a composição social e demográfica deste país. Não é pouca coisa. E esta é uma escolha política muito mais avançada e muito mais de esquerda do que a de redistribuir os recursos poupados.

O embate refere-se muito mais à estrutura dos poderes do que à redistribuição dos recursos. E, se observarmos bem, o que surge não é sequer um problema de recursos. O que se entende por recursos? Se for verdade que a Itália é - como diz Padoa-Schippa - uma empresa ao mesmo tempo endividada e subcapitalizada, é verdade que é preciso criar novos recursos para repô-la em movimento. E no entanto, na falta das condições essenciais, que são a legalidade, a justiça fiscal, a boa administração, a formação do capital humano, a redistribuição de renda, o reconhecimento do mérito, toda e qualquer injeção financeira continuará a ser desperdiçada.

De tudo isso deriva a necessidade de colocar sobre novas bases a construção do Estado, o qual não pode deixar de ser um Estado federal. O que significa que precisamos de um partido certamente articulado, mas que seja um partido verdadeiro. Com uma direção que expresse uma vontade e uma estratégia, não um movimento confuso. Um partido implantado na sociedade e capaz de dar a ela uma nova "forma".

Qual forma? É de todo evidente que o desequilíbrio crescente entre o "cosmopolitismo" da economia e o "localismo" da política desmantelou as bases do velho compromisso socialdemocrata. E é também verdade que o neoliberalismo não só venceu mas também se tornou há anos a ideologia dominante. Mas acredito que devemos começar a nos perguntar se as novas características do capitalismo financeiro, baseado no imenso poder de uma oligarquia muito restrita, não devem nos levar a refletir sem tabus inclusive sobre a relação entre mercado e esfera pública e social. Não sobre o mercado como instrumento essencial da relação econômica, evidentemente, mas como pretensão de ser o pressuposto de todo sistema social e de representar a única resposta a demandas que são também de sentido e de novas razões para estar juntos, diante, sobretudo, do desaparecimento de velhas identidades.

Já sublinhei a necessidade vital, para a Itália, de criar novos recursos, se quisermos produzir capital social (a verdadeira pobreza italiana). Não é o Estado que produz estes recursos e, por isso, torna-se sacrossanta a luta contra as rendas, os parasitismos, os protecionismos. E está correto liberalizar. Mas tudo isso deve ser colocado num quadro mais amplo e mais moderno. A Itália não conseguirá nunca dar o salto necessário, se não se somar ao mercado a criação de novas instituições (políticas, sociais, novas relações sociais, capital social) capazes de permitir que os indivíduos desta sociedade se tornem não só cidadãos, mas também pessoas capazes de criarem a si mesmas, no sentido de expressarem novas capacidades.

A idéia básica é muito simples. A cultura econômica do novo partido será tanto mais aberta ao mercado e à livre empresa quanto mais se apoiar no fato de que o advento da chamada economia pós-industrial e da sociedade da informação requer e ao mesmo tempo enfatiza recursos de tipo novo, não só materiais: recursos humanos, saber fazer, cultura, criatividade, sem os quais a tecnologia serve para pouca coisa. Em suma, deixar emergir a outra possibilidade implícita no pós-industrial, ou seja, o fato de que uma nova coesão social pode se tornar o instrumento mais eficaz para competir.

A razão básica de um novo Estado social (sobre o qual não me detenho) é esta: sua missão é permitir esta nova relação. Algo muito considerável está mudando. Problemas que o mercado não vê. Não se pode imaginar que um grande partido não considere o uso cada vez mais problemático de "bens públicos globais", como a água, a salvaguarda do ecossistema, a luta contra a criminalidade internacional; e também a dimensão das novas demandas sociais: o saneamento, a instrução, a necessidade de novos serviços. Isto não anula a função crucial dos mercados financeiros, mas é um fato que eles não são capazes de "ver" a complexidade política e humana destes problemas.

Não tenho os conhecimentos necessários para ir além. Mas me parece que posso ver os problemas políticos que estão em jogo. Tudo bem com as liberalizações e as privatizações, se necessárias. Mas pode a política desinteressar-se do fato de que, por causa do progressivo deslocamento do processo de acumulação - da exploração no interior da fábrica para um terreno mais amplo -, a conseqüência é que não só a propriedade dos meios de produção mas também universos sociais mais amplos, e até mesmo as mais diferentes associações e lobbies, entram diretamente na arena do conflito pela apropriação do excedente? Isto, no entanto, significa que o desfecho do conflito social está cada vez menos entregue a lógicas impessoais de mercado e que os poderes reais superam os velhos atores.

Muitas coisas mudam. Por um lado, a política não pode deixar de se propor o problema da compatibilidade do desenvolvimento com as razões de um mundo sob risco. Por outro, muda também a relação entre a esquerda e a empresa. Cada vez mais interessa à esquerda perguntar o que resta não só dos direitos do trabalho mas também da empresa, se a fábrica e os próprios dirigentes podem ser adquiridos, retalhados, revendidos, de acordo com o andamento deste tipo de mercado especulativo. Aonde vão parar os recursos da empresa, invisíveis mas fundamentais, que são a criação de novas tecnologias, a cultura industrial, sua incidência no território, a confiança e as solidariedades entre empresas?

No fundo, a grande pergunta que deveríamos nos pôr é sobre o que se torna a política quando o peso da capital humano e do capital social se torna tão grande, e um trabalho cada vez mais criativo produz não só lucro para o empresário, mas cria novas relações sociais. Esta é a grande novidade. Um trabalho que tende cada vez mais a produzir não só mercadorias, mas serviços, relações, a entrar em redes mais complexas, a relacionar-se de modo ativo com tudo o que representa o ambiente social e cultural que circunda o capital físico. Mas a contradição política é gritante. Porque, na realidade, o fato dominante destes anos foi o fim da grande conquista do século XX que chamamos de "civilização do trabalho". Falo daquele conjunto de direitos, mas, sobretudo, do reconhecimento, ainda que em termos de princípio (mas não só), de uma igual dignidade entre o trabalho e a empresa. Terminava, de fato, a relação secular entre patrão e servo, e era isto que dava à democracia política seu fundamento.

Por isso, penso que se decide aqui, no direito do trabalho, uma questão decisiva não só para a esquerda, mas para a democracia. Com a condição de saber qual é a nova Itália do trabalho que está diante de nós. É uma Itália de jovens que não encontram mais postos estáveis, mas mesmo assim continuam a trabalhar de modo novo, aumentando as filas do trabalho autônomo, para-subordinado, ou se estabelecem como artesãos ou pequenos empresários. Uma Itália de novos poderes mas também de operários mais qualificados. De trabalhadores autônomos, entre os quais cresce o componente dos novos ofícios. De 3,5 milhões de empresas que empregam quase 14 milhões de pessoas.

Um mundo que tem vínculos menores, mas também pouquíssimas proteções, que vive de modo intenso a necessidade de afirmar uma identidade profissional e que, portanto, tem uma exigência dramática de formação, para reproduzir precisamente a condição profissional. Um mundo que se separa da política e dos partidos, não porque não tenha necessidade do Estado, mas, ao contrário, porque este não responde às suas demandas. Um mundo que, no entanto, também expressa grandes impulsos de solidariedade (muitos milhões de pessoas fazem trabalho voluntário) e uma nova consciência civil; um mundo cujo rol de profissões e de funções típicas de managers é o que mais cresce, e em que, ao mesmo tempo, entram, vivem e trabalham massas crescentes de mulheres e homens de outras raças e outras religiões. Sem uma nova direção e sem uma idéia quanto ao "estar juntos", estas forças não virão espontaneamente até nós.

A verdade é que estamos diante de uma transição muito difícil. Tive ocasião de discutir muitas vezes com Bruno Trentin o fato de que este extraordinário entrelaçamento entre trabalho e conhecimento é o que, objetivamente, aumenta a capacidade de escolha e, portanto, a criatividade e a liberdade, e de que aqui reside o grande recurso sobre o qual nos apoiarmos. Mas esta é só uma potencialidade, um resultado possível mas de modo algum inevitável das transformações em curso na economia e na sociedade contemporâneas. Mas este é o desafio. É verdade que, nas sociedades modernas, o trabalho não é tudo. Mas o empresário também não é tudo. O homem, o indivíduo moderno, que pensa e quer se afirmar a si mesmo e ao seu papel na sociedade - este, sim, parece-me cada vez mais o ator central, o protagonista.

Por isso, também penso que a palavra "esquerda" deverá viver no Partido Democrático. Mas desde que se acrescente que ela só pode se redefinir se se relacionar à novidade do embate moderno entre progresso e reação, recolocando-se no centro deste embate. E este centro supera velhas fronteiras e até mesmo territórios. A nova missão da esquerda, portanto, é diferente mas não é menos elevada do que aquela que, no século XX, a opôs à direita (os direitos do trabalhador, uma distribuição de renda mais justa, a extensão da democracia política até incluir novos direitos sociais, a difusão do bem-estar). Agora, o cerne da questão é a criação de novos atores políticos, inclusive no plano supranacional, capazes de fazer face ao movimento catastrófico que pode ser deflagrado se não se der uma resposta às novas exigências de liberdade e, ao mesmo tempo, de segurança e de democracia, se não se impuser uma outra distribuição de riqueza e de oportunidades de vida entre as pessoas e entre os povos.

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Alfredo Reichlin foi membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do "governo sombra" daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recentemente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da "Carta de valores" do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe - Centro Studi di Politica Economica, em Roma.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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