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Para onde vai a mundialização?

Marcos Costa Lima - Dezembro 2007
 

Em termos epistemológicos, e considerando abordagem interdisciplinar (política, sociológica, geo-histórica e econômica), pode-se estabelecer, para efeito analítico dos últimos 62 anos de história, uma divisão que, grosso modo, perfaz quatro momentos e que conforma algumas homogeneidades: i) a fase Bretton Woods, ou o período de ouro keynesiano-fordista; ii) a fase propriamente neoliberal, que começa com as eleições de Margareth Thatcher (1979-1990) e Ronald Reagan (1981-1989) [1]; iii) a fase da queda do Muro de Berlim, ou também o período de implementação da política do Consenso de Washington e de neoliberalismo exacerbado, até, digamos, 11 de setembro de 2001, data do ataque terrorista às torres gêmeas do World Trade Center em Nova York, cidade símbolo da opulência e do american way of life; e, finalmente, iv) a fase pós-Consenso de Washington, com o fracasso das medidas neoliberais, que tem como elemento central o deslocamento da fábrica do mundo para o continente asiático, em particular a China.

Por certo, este recorte temporal poderia ser precisado por um fio epistemológico mais economicista, quando a referência, então, seria muito mais a crise japonesa na abertura do novo milênio e não o ataque às torres.

A "mundialização" deve ser entendida como um regime institucional internacional específico, tanto econômico quanto político, em benefício do capital concentrado. Este regime, que exerce uma atividade propriamente planetária, é resultante de dois processos: o primeiro é o movimento interno do capital das economias centrais, que tem como um de seus traços específicos, hoje como ontem, buscar a superação dos limites à rentabilidade encontrados nos países que são sua base, através da expansão para o exterior.

O outro está relacionado à operação dos tratados multilaterais ou bilaterais, mas também à projeção internacional das posições de dominação econômica e política dos Estados membros do G-7, de políticas sistemáticas de liberalização e desregulamentação do comércio, de fluxos financeiros e de investimentos diretos e, ainda, de privatização das empresas públicas. Estas políticas foram preparadas, desde a metade dos anos 1970, pelos planos de ajuste estrutural do FMI, aplicados pela ditadura militar no Chile, mas também, de forma ainda mais significativa, pela ditadura argentina.

Contudo, foi necessário que Margareth Thatcher e Ronald Reagan chegassem ao poder para que começasse a ser introduzido o ideário do "Consenso de Washington", em ritmos bastante diferenciados, nos países capitalistas industriais e nos países em desenvolvimento, iniciando por aqueles mais abertos às pressões dos países do centro e das organizações internacionais.

Na virada dos anos 1990, o colapso da União Soviética e do "socialismo real" burocrático veio facilitar e acelerar este processo. A implosão do antigo bloco soviético dominou as últimas fases de negociação da Rodada Uruguai levadas a cabo pelo GATT e determinou o amplo mandato dado à OMC pelo Tratado de Marrakesh em 1993.

Articulado à "democracia", o neoliberalismo, ideologia do capitalismo desregulamentado, pode explorar a tomada de consciência do terrível balanço do stalinismo e dos impasses da planificação burocrática, para se investir de uma nova legitimidade e se apresentar como a última forma possível de organizar a economia em todos os cantos do mundo.

O regime institucional da mundialização é marcado, de forma central, pelo grau bastante elevado de liberdade de ação que garante às firmas multinacionais (FMN), aos bancos internacionais e às organizações capitalistas mais recentes e menos conhecidas, que são os investidores financeiros e "institucionais". Esta liberdade de ação lhes abriu possibilidades ampliadas e, muitas vezes, novas de apropriação do excedente produzido fora dos países centrais. Algumas transitam pelos mercados financeiros liberalizados, ao passo que outras repousam sobre mecanismos tais como o novo regime de propriedade intelectual instituído no contexto da OMC [2].

Os "mercados financeiros" são, de longe, o lugar onde a globalização teve maior alcance, o que implica um conjunto importante de medidas de desregulamentação. A globalização financeira não resulta, de nenhum modo, da concretização de processos econômicos inevitáveis, como tende a fazer crer a expressão "leis de mercado". A repetição encantatória desta fórmula, para justificar a aplicação de medidas governamentais ou de decisões gerenciais, se apóia em uma legitimidade "científica" vinda da Economia, ciência social que foi a rainha dos anos 1980 e 1990.

Esquece-se que os economistas produzem conhecimentos, mas esses conhecimentos não são "leis universais, válidas em qualquer e lugar", e negligencia-se o fato de que o caráter científico da Economia se depara com a "opacidade" radical da sociedade. As instituições e as organizações possuem, hoje, uma potência que não resulta de nenhum automatismo de mercado, mas de decisões tomadas por agentes e instituições que fazem prevalecer seus interesses.

Os Estados sul-americanos, no período pós-democratização dos anos 80, tentam formular uma nova estratégia de integração, cuja dinâmica chega aos nossos dias. A princípio, este processo lida sobretudo com os aspectos comerciais, mas lentamente as demais áreas de sociabilidade da política, da sociologia, da geografia e da cultura vêm se fazendo presentes. Há aqui uma vitória importante para a consolidação do processo, que foi a recusa ao processo correlato da Alca, intentado pelo governo dos Estados Unidos da América.

A partir de 2003, com a eleição de Lula no Brasil, vários países da região passam a referendar, em processo democrático, partidos com inclinações de centro-esquerda, como na Argentina e no Uruguai, havendo mesmo quem se reclame do socialismo, como foi o caso de Bolívia, Venezuela e Equador. A região ensaia novas tentativas de retomada de desenvolvimento, em busca de uma posição mais confortável de suas populações no cenário internacional.

Do ponto de vista da economia internacional, o novo grande ator é a China, que vem implementando, desde o final dos anos 1970, uma verdadeira revolução produtiva, articulando um modelo híbrido de governo comunista e economia capitalista. Este processo particular abre não apenas novas possibilidades de arranjos internacionais, mas também geopolíticos, de incerta tendência.

Do ponto de vista militar, o governo dos Estados Unidos tem aprofundado sua política de guerra permanente, o que tem, em grande medida, provocado uma corrida armamentista bastante pronunciada.

As incertezas são muitas e se iniciam pela instabilidade crescente provocada por alertas sobre a instabilidade ambiental, o que põe em jogo a própria dinâmica e o ritmo do capitalismo contemporâneo. Mas também não são poucos os alertas sobre a fragilidade instaurada por um capitalismo que cada vez mais se sustenta na especulação das private equities, dos fundos de pensão e das mergers and aquisitions protagonizadas pelo capital rentista. Tudo isso ameaça os pilares do sistema. Esta última fragilidade vem impactar ainda os níveis de empregabilidade internacional, gerando, por um lado, insatisfações coletivas e, por outro, o risco de deflação.

Tudo isto acaba por produzir uma grande instabilidade sistêmica, que pode, a qualquer momento, gerar perturbações de dimensões ainda insuspeitadas na atual ordem mundial. O recente impacto negativo das bolsas mundiais é sintoma, apontado há mais de um ano, da crise do sistema imobiliário dos EUA.

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Marcos Costa Lima é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE. Este texto consiste em notas redigidas para o Seminário CISO Norte/Nordeste de Ciências Sociais, Maceió, set. 2007.

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Notas

[1] Poucos sabem que Margareth Thatcher era formada em Química e menos ainda que, como ministra da Educação do governo conservador de Edward Heath, aboliu a normativa que ordenava a distribuição gratuita de leite nas escolas públicas inglesas. Já Ronald Reagan, como governador da Califórnia, em 1966 reprimiu duramente as manifestações estudantis contrárias à Guerra do Vietnã.

[2] François Chesnais. "Mondialisation du capital, nature et rôle de la finance et mécanismes de ‘balkanisation’ des pays aux ressources convoitées". In: Claude Serfati. Mondialisation et désequilibres Nord-Sud. Bruxelas: Peter Laang, 2006, p. 33-52.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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