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Adeus, Fidel!

Luciano Oliveira - Fevereiro 2008
 

Finalmente o Comandante, o Líder Máximo, o Compañero Fidel convenceu-se - ou foi convencido - de que não é Deus. De que não é sequer o papa ou algum monarca por direito divino, como sugere o desejo de cumprir sua tarefa até o "último suspiro", expressão que utilizou na carta dirigida ao povo cubano, mas com ares de proclamação urbi et orbi... Sem ironia.

Tudo em Fidel sempre foi desmedido. Do heroísmo de 1959, quando entrou em Havana liderando uma revolução de jovens barbudos que atraiu a simpatia do mundo todo, ao apego ao poder quase 50 anos depois, quando se tornou um ancião locomovendo-se com dificuldade, mas vestido pateticamente como um jogador de basquete! Ainda jovem, depois de condenado por uma primeira tentativa frustrada de derrubar o regime de Fulgêncio Batista, Fidel escreveu um texto que se tornou famoso: A história me absolverá! Será? A resposta vai exigir nuances.

Provavelmente a história o absolverá dos fuzilamentos sumários - no famoso paredón - dos primeiros anos do regime. Os tempos e os homens, inclusive os bons, eram outros. Havia uma crença sincera, da parte de revolucionários bem intencionados, na violência como a "parteira da história". De resto, os melhores valores da humanidade costumam escrever certo por linhas tortas. A Revolução Francesa de 1789, aquela mesma que proclamou os direitos do homem, cortou cerca de 20 mil cabeças só em Paris durante o período do Terror. Nos Estados Unidos, a escravidão só se resolveu depois de uma guerra civil que sangrou o país durante cinco anos. Se o comunismo tivesse dado certo e a humanidade vivesse num reino de justiça, liberdade e fartura, quem iria condenar Stalin pelos milhões de mortos que o seu regime produziu?

Numa perspectiva histórica, talvez seja mais difícil de aceitar as iniqüidades já sem sentido que o regime de Fidel continua praticando no varejo. Lembro o vergonhoso episódio de 2003, quando três desesperados seqüestraram um barco cheio de turistas para escapar da ilha. A gasolina não deu para chegar à Flórida e tiveram de voltar. Cometeram um crime grave, certo, e em qualquer país do mundo levariam pesadas penas. Mas, certamente, não a pena de morte, tanto mais que ninguém saiu ferido do episódio. Mas, julgados às pressas, foram rapidamente fuzilados.

Já em si, a morte para os seqüestradores trapalhões foi uma enormidade. Mas o mais chocante foi terem sido mortos por um crime provocado pelo próprio regime, que proíbe as pessoas de deixarem seu país! O que em qualquer lugar do mundo é um direito banal, em Cuba continua algo praticamente proibido, pois as viagens só são autorizadas, no conta-gotas, em circunstâncias especiais. É uma aberração: num mundo em que os países mais e mais reprimem imigrantes, Cuba reprime seus emigrantes! Seria até engraçado, se de vez em quando não terminasse em morte. Esse paredón não dá para esquecer!

Mas também não dá para desconsiderar as conquistas sociais da revolução. Cuba tem índices de mortalidade infantil, longevidade e educação de país rico. E é um país pobre, com uma população igualitariamente mantida num nível de consumo limitado ao necessário para viver. Mas isso todos têm. O que talvez explique o fato desconcertante de que o regime de Castro continua gozando da simpatia de boa parte da esquerda brasileira, malgrado o fato de ser uma ditadura quase cinqüentenária. Citando Frei Betto, um de seus entusiastas entre nós, o regime de Castro "traz vida a seu povo". Entenda-se: a vida no sentido mais elementar do termo, o milagre que se reproduz cotidianamente pelo simples efeito de se poder comer três vezes por dia, o que não é algo sem importância num país como o Brasil, onde a vizinhança da riqueza mais boçal com a miséria mais indecente é uma afronta à sensibilidade moderna.

Mas Cuba é um país preso no tempo, com uma população sem perspectivas de ascensão social. Com a abertura que virá, voltarão os exilados de Miami cheios de dólares. O PIB da Ilha vai subir, e as diferenças sociais vão começar a aparecer. Porque, se nivelamento por baixo é possível, nivelamento por cima ainda não se viu. A pobreza com dignidade da ilha não vai suportar a concorrência. O que qualquer pessoa decente espera é que a futura Cuba integrada à globalização - ou seja: capitalista! - consiga manter o padrão mínimo de estado social que, bem ou mal, foi construído. Isso já será muito, e já deveria ter ocorrido faz tempo. Nesse sentido, já vais tarde, Fidel!

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Luciano Oliveira é professor da UFPE.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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