Busca:     


O Brasil dos mais iguais

José de Souza Martins - Março 2008
 

Numa sociedade, como a brasileira, que foi formada sobre duas escravidões, a indígena e a negra, e que, até os dias atuais, não conseguiu erradicar a servidão por dívida, a desigualdade social profunda acaba sendo a base do contra-senso da desigualdade eleitoral e política. A representação política fica mutilada. A sociedade parece igualitária e democrática na superfície, mas substantivamente não o é.

Durante muito tempo, o sistema eleitoral brasileiro foi constituído por um reduzido elenco de eleitores, segundo os bens que possuíam, excluídos os escravos, as mulheres, os pobres, os mendigos, os que faziam o serviço militar obrigatório, os analfabetos, todos aqueles que, de alguma forma, dependiam de terceiros, ou eram por eles tutelados. Ou seja, a imensa maioria. Eram os que não podiam ser considerados senhores da própria vontade, os que deviam obediência. Quem não é senhor da própria vontade, dono de si mesmo, não entra na política senão como anomalia porque sempre haverá de fato quem, de algum modo, mande nele.

Em outras sociedades, a concepção é a de que, sendo elas prósperas, livres e democráticas, a simples condição de pessoa já se traduz na figura do cidadão, porque nem pessoa nem cidadão podem existir em estado de privação. Aqui, ao contrário, não se viu contradição entre cidadania e privação. Quando muito, as políticas sociais compensatórias, como o Bolsa-Família e o regime de cotas raciais nas universidades, já seriam suficientes para anular a perversidade da privação e seus efeitos sociais contrários à cidadania e à consciência cidadã. No entanto, a bolsa e a cota instituem uma relação de favor político, o que na cultura brasileira significa débito moral do favorecido em favor do governante.

A dependência pessoal tolhe a liberdade individual e impede o desenvolvimento e a realização do verdadeiro cidadão, pois quem depende do outro depende, também, de sua vontade, privando-se de vontade própria. Na prática, através do voto de terceiros, dos pobres, dos que não têm, os que muito têm votam várias vezes numa mesma eleição, multiplicam os votos que potencializam politicamente seu mando, sua vontade, sua riqueza. Alienadamente, os pobres e os desinformados estariam votando como ricos que não são, trocando pela dádiva do paternalismo populista sua potencial cidadania. Assim, todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais.

Onde, nas relações políticas, há o favor e a caridade não há o cidadão. O que nos põe num beco sem saída até hoje. Sem a caridade esta sociedade não funciona. Com a caridade, não se emancipa, não se liberta da dependência pessoal e do favor. É nessa contradição política que o Brasil se move sem sair do lugar.

----------

José de Souza Martins é professor de Sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Este texto foi originalmente publicado em O São Paulo (semanário da Arquidiocese de São Paulo), ano 53, n. 2.689, 18 mar. 2008.



Fonte: O São Paulo & Gramsci e o Brasil.

  •