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A universalidade dos direitos humanos

Luciano Oliveira - Abril 2008
 

Vez por outra aflora o debate sobre a falsa universalidade dos direitos humanos, acusados de serem um cavalo de tróia ideológico dos países ocidentais para aniquilar modos de vida diferentes. Uma resposta jurídica a essa questão, no sentido da universalidade, baseia-se no fato de que, atualmente, os Direitos Humanos contam com a adesão de praticamente todos os países do globo, num movimento de expansão contínua: da Declaração Francesa de 1789, passando pela Declaração da ONU de 1948 e chegando até a Declaração de Viena de 1993, que a confirma.

É verdade que em 1789 era uma assembléia de "representantes do povo francês" quem falava, sem mandato para se exprimir em nome do gênero humano. Em 1948, a Assembléia da ONU proclamou-a universal. Essa universalidade é discutível. Boa parte da humanidade, afinal, vivia sob regime colonial e as Nações Unidas compreendiam apenas 56 países. Já na Conferência de Viena, em 1993, praticamente todos os povos do mundo estavam representados. Mas esse argumento padece de um certo jurisdicismo, podendo se revelar frágil de um ponto de vista geopolítico. Afinal, pode-se argumentar que os países presentes à Conferência estavam se dobrando às injunções das potências ocidentais desejosas de formatar um mundo à sua imagem e semelhança, com o que se volta à questão do imperialismo ocidental. Como sair desse dilema?

Duas ordens de consideração podem ser exploradas. Uma delas parte de uma singela constatação: o mundo, efetivamente, tem sido submetido nos últimos séculos a um processo de "ocidentalização" de suas estruturas sociais, econômicas e culturais. Para o bem e para o mal, para o bom e para o mau gosto, é assim. É o que tem sido chamado de globalização. O rótulo é novo, mas o processo já tinha sido percebido por autores como Marx, que no Manifesto comunista analisou-o em termos da expansão capitalista, cujas "mercadorias - diz ele numa imagem surpreendentemente atual - são a artilharia pesada com que derruba todas as muralhas chinesas".

Reencontramos aqui um dos princípios elementares da antiqüíssima ciência do direito: ubi societas, ibi jus - onde existe sociedade, existe direito. Ora, se é um fato a constituição cada vez mais intensa de um tipo sui generis de sociedade global, segue-se a necessidade de que um conjunto de princípios ordene o funcionamento desse formidável aparato de seres humanos, inédito no mundo. Nesse caso, por que os direitos humanos não seriam esses princípios?

É claro que não podemos nos entregar perigosamente a um puro realismo do tipo: o que existe, existe! Não é pelo fato de ter sido gestado no Ocidente que os direitos humanos ostentam uma vocação universal. O nazismo foi também gestado nessa banda do mundo, e não a possui. Ao contrário, cataloga as pessoas em superiores e inferiores, e considera que aquelas, desde que tenham o poder, têm o direito de dispor destas como bem entenderem. Não é o caso. Estamos tratando de um código da humanidade segundo o qual todos os seres humanos - homens e mulheres, pretos e brancos, etc. - são considerados iguais.

Mas outra questão se coloca: auto-evidentes para os que os aceitam, esses princípios não o são para todo mundo. Algumas culturas (ou aqueles que, no interior delas, disso se beneficiam... ) teimam em recebê-los com reservas. É o que ocorre com a ressurgência do fundamentalismo islâmico, por exemplo, que não aceita o mesmo patamar de igualdade para homens e mulheres, valendo-se de argumentos ancorados na tradição. Os direitos humanos, evidentemente, não podem se impor sem se opor a essa visão. Como fica então sua pretensa universalidade?

É aqui onde entra a segunda consideração: a igual historicidade de ambas as tradições! A defesa de certas ordens desigualitárias não pode se sustentar à base do argumento de que, sendo parte de uma cultura tradicional, têm por isso de ser respeitadas. O argumento repousa sobre o pressuposto, mesmo que implícito, de que essas culturas seriam naturais, e a "ocidental", não! O argumento é falacioso. Nenhuma cultura, na verdade, é natural. Todas são construídas mediante a sua imposição frente a outras. A cultura dos direitos humanos, que tolera muitas coisas, mas interdita outras, é tão "natural" quanto qualquer cultura "autêntica" de qualquer canto do mundo - que também se edificou destruindo outras. Logo, não são naturais!

Não se deduza disso que estou absolvendo e, pior, recomendando a metodologia dos bombardeios americanos para impor a "democracia" nos quatro cantos do globo. A exigüidade do espaço não permitiria desenvolver todas as implicações do que escrevi. Lembraria apenas, para concluir, que foi em nome dos Direitos Humanos que a opinião pública mundial condenou os horrores perpetrados pelos americanos na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá. Para os Direitos Humanos, afinal, ocidentais e orientais são igualmente seres humanos...

A tortura do Sr. Bush

Um dos subprodutos mais perversos do terrorismo à solta no mundo é o fato de que uma prática abominável como a tortura, mesmo permanecendo camuflada por eufemismos, foi adotada e chegou a ser oficializada pelos Estados Unidos. Recentemente o presidente Bush vetou uma lei que proibia certas técnicas de interrogatório como a "simulação de afogamento", hoje praticada pelas forças de segurança daquele país contra suspeitos de terrorismo. Berço e por momentos refúgio da democracia no mundo, os EUA são hoje em dia um Estado-torturador!

Quando o mundo descobriu, em maio de 2004, fotos de prisioneiros na prisão de Abu Ghraib em Bagdá com fios elétricos conectados aos dedos, os mais atentos já sabiam que coisas desse tipo andavam se passando nas prisões americanas. Hoje se sabe que aquilo não era simples iniciativa local de incompetentes com vocação exibicionista.

Há pouco tempo o The New York Times publicou um "parecer secreto" do Departamento de Justiça dos EUA permitindo o uso de técnicas de interrogatório "duras" contra suspeitos de terrorismo. O documento rejeita o qualificativo de tortura para tais técnicas, argumentando que elas seriam dosadas para não causar mal excessivo. Para o seu autor, "a tortura contra um suspeito em interrogatório" só se configura quando ocorrem "danos permanentes à integridade física do acusado" (Veja, 05.09.07). Que bom!

O que dizer? A primeira reação do humanista tende a ser a recusa de sequer discutir o assunto, receoso de que, ao discuti-lo, esteja legitimando-o. Mas ao analista, pondo entre parêntesis o horror que tal idéia inspira, cabe, sim, a tarefa de discuti-la, fazendo um esforço para ir além da simples indignação que pode se tornar um lugar comum inócuo. Há no fenômeno do retorno da tortura questões altamente embaraçosas que nos interpelam - e que, aliás, os seus teóricos não perdem a oportunidade de pôr na mesa.

Eis a mais terrível: "Um terrorista colocou uma bomba: deve-se torturá-lo para saber onde ela está?" A pergunta, para nosso desconforto, não é de nenhum panfleto da extrema-direita americana. Foi extraída de um livro (Utopia e liberdade) do argentino Miguel Benasayag, torturado pela ditadura militar do seu país. Ele mesmo, sem dar nenhuma resposta, reconhece que "ninguém gostaria de ser confrontado com essa questão".

Há coragem em colocar a pergunta. Ela implica reconhecer que qualquer um de nós pode ser confrontado com a tentação de ser seduzido pela diabólica eficácia da tortura. E a experiência histórica mostra que, em tais casos, a tentação de sucumbir ao seu poder de extrair informações é quase irresistível. Mesmo as mais sólidas democracias, como o exemplo americano demonstra, podem cair na tentação. Basta que alguém lá em cima, sem precisar sujar pessoalmente as mãos, dê o sinal verde...

Existe um célebre experimento sobre obediência à autoridade feito pelo psicólogo Stanley Milgram sugerindo que, em situações de submissão a uma estrutura de comando, haverá sempre quem se disponha a fazer o trabalho sujo. Milgram recrutou voluntários que deveriam, supostamente, participar de um estudo sobre aprendizagem e punição. Eles eram colocados diante de um homem amarrado a uma cadeira, tendo um fio elétrico conectado ao corpo. Tudo era fingimento, mas os participantes nada sabiam e eram levados a acreditar que se tratava de uma cobaia de verdade. Eles tinham à sua disposição uma série de botões indicando voltagens elétricas, e eram instruídos a administrar um choque de 15 volts para cada resposta errada. À medida que os choques iam aumentando, o homem se contorcia de dor. Em que pese isso, 71% dos voluntários se mostraram prontos a administrar choques de mais de 280 volts, embora os botões estivessem marcando "choque intenso"!

Espero que o leitor não tenha lido isso como uma justificação da tortura. Ela é e será sempre uma abominação. Sabem disso, aliás, os próprios torturadores, que agem sempre nos porões, e seus doutrinadores, que escondem o seu nome verdadeiro atrás de eufemismos. Trata-se apenas, num exercício da chamada "sociologia compreensiva" (e compreensão, aqui, tem uma conotação meramente técnica, nunca moral!), de alertar para o fato de que, nesse como noutros casos de violação dos direitos humanos, mais vale prevenir suas causas do que tentar evitar seus efeitos. Como diz um ditado, não se deve tentar o diabo...

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Luciano Oliveira é professor da UFPE.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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