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O "momento Allende": entre reforma e revolução

Alberto Aggio - Junho 2008
 

Compañeros, qué fácil es gritar, qué sencillo es decir ‘hay que armar al pueblo’. Que me costaría a mi decirlo si me dejara arrastrar? Pero, compañeros, piensen ustedes, mediten la historia y piensen que las revoluciones no se hacen en función de un verbalismo que no tenga como arraigo la fuerza consciente, la voluntad disciplinada.

Salvador Allende (jan. 1972)

O que aqui chamamos de "momento Allende" visa a demarcar e enfatizar os aspectos de originalidade e ineditismo, além dos elementos de difusa insuficiência e limites, que estiveram presentes na prática e na formulação política de Salvador Allende, especialmente no contexto em que ele se tornou personagem emblemático e central do que ficou historicamente conhecido como "a experiência chilena", o processo histórico que expressou concretamente a perspectiva de se construir o socialismo por meio da democracia num país latino-americano como o Chile do início da década de 1970, e que, como sabemos, terminou no cruento golpe militar de 11 de setembro de 1973.

O processo tinha como referência principal o conhecido projeto da "via chilena ao socialismo", formulação específica que acabou conciliando inapelavelmente uma nova concepção da relação entre democracia e socialismo com a retórica convencional do discurso tradicionalmente vocalizado pela esquerda chilena agrupada na Unidade Popular (Aggio, 2002). O "momento Allende" deve ser compreendido como a expressão máxima - porque teórica e prática - da perspectiva de construir o socialismo pelo caminho democrático. Concebê-lo como um lugar histórico não apenas faz justiça a Allende, como também nos permite exercitar olhar o passado a partir de uma perspectiva justificadamente crítica.

Salvador Allende foi, sem dúvida, a liderança política que mais abraçou aquele projeto e que mais se amparou nele como sustentáculo de suas convicções mais profundas, bem como de sua prática política como presidente da República do Chile. Socialista por opção pessoal desde jovem, Allende sempre se caracterizou por ser mais uma liderança do socialismo chileno do que um dirigente partidário de perfil operativo. Sua identidade política é mais a de um político de convicção em torno de um ideário de caráter universal e civilizatório do que a de um operador ou burocrata partidário.

Allende manifestava essencialmente uma luminosa vocação no sentido de dedicar suas ações e sobretudo sua energia à construção de um novo projeto de sociedade. Isso fez com que ele pudesse ser tomado por seus contemporâneos e partidários como uma liderança que apontava para o futuro numa época de sonhos libertários e revolucionaristas. Um homem do século XX e um pai do século XXI, como ele gostava de se referir a si mesmo, o líder socialista e presidente da República aparecerá na imaginação expressa por um cartaz de Roberto Matta, em 1972, nos seguintes termos: "Allende quiere decir ir sempre más allá. La tradición del futuro" (Moulian, 1993). Vinculado a esse universo e aos sistemas ideológicos que estruturavam a cultura política da esquerda mundial naquela quadra histórica, ao contrário do que se afirma comumente, Allende tinha efetivamente suas convicções teóricas e as viveu de maneira profunda, buscando colocá-las em prática, a despeito de todas as suas insuficiências e debilidades que a retórica de crenças da década de sessenta se encarregava de encobrir.

Allende foi geralmente qualificado como um político "realista e pragmático", qualidades apreciadas nos políticos de hoje, mas vistas como flagrantemente negativas pelas lideranças da esquerda latino-americana dos anos sessenta. Contudo, essa imagem nem sempre corresponde à verdade. No contexto da presidência da República, Allende foi simultaneamente realista e temerário. Foi realista em muitos momentos, no intuito de preservar as instituições que davam sustentação política ao seu governo. Mas também foi temerário em muitas de suas declarações, como a de "ser presidente de uma parte dos chilenos", e não de todos, ou ao se vincular a alguns "miristas" ou insurrecionalistas do Partido Socialista, ao montar, no inicio do governo, uma guarda pessoal da presidência da República - para mencionar brevemente alguns dos aspectos de condutas temerárias de Allende no plano político e pessoal (Labarca, 2007).

De toda forma, àqueles dois qualificativos se agregava, como acima mencionamos, a avaliação também depreciativa de que Allende era desprovido de qualquer visão teórica a respeito do socialismo e, mais ainda, de uma teoria que alicerçasse sua perspectiva de construção do socialismo pela democracia. Lamentavelmente, essas visões, muito influenciadas pela crença dos protagonistas da época, especialmente aqueles vinculados às principais correntes ideológicas que dominavam a esquerda chilena, impedem que se busque compreender mais profundamente as idéias políticas de Allende a partir da trajetória de sua elaboração e, especialmente, do contexto dramático de suas proposições finais, visando alocá-las num determinado lugar da cultura política de esquerda daquele contexto.

Allende efetivamente não foi um teórico como se pode dizer que alguns líderes políticos do socialismo internacional acabaram se tornando. Entretanto, não há muita dúvida de que, de forma geral, o seu discurso estava inserido e expressava, ainda que tangencialmente, as formulações ideológicas e políticas que marcaram o chamado "teoricismo" marxista da década de 1960. Todavia, há que se chamar atenção para o fato de que ele também ocupou uma posição especial nesse cenário e, mais do que isso, postulou a realização prática de uma das formulações que marcaram aquele momento histórico, a saber, a perspectiva de realizar a revolução por meio de reformas estruturais de caráter radical.

Acertadamente, Tomás Moulian registra que "Allende era un político que concebía la revolución como un momento culminante en la aplicación de sucesivos programas realistas, pero a quien le tocó gobernar en otro escenario, el de una revolución sin el poder necesario pero en acto, desplegada, a la cual trató vanamente de moderar" (1998:119).

O "momento Allende" configura-se efetivamente como uma simbiose entre revolução e reforma, nos termos nos quais essas duas proposições encontravam os seus limites no final da década de sessenta e início da década de setenta. É em torno dessa avaliação ou desse diagnóstico que essa exposição vai se pautar.

Entretanto, antes de avançarmos, penso que seria importante um comentário prévio. Retomar uma reflexão sobre Allende hoje não é, de nenhuma maneira, um ato intelectual ocioso e desprovido de consequências. Em relação ao período e ao personagem, essa operação intelectual se vê perigosamente ameaçada pelo anacronismo. Nesse sentido, gostaria de afirmar que, se há algo que a figura de Allende não merece, é a sua exumação política orientada por um mimetismo sem sentido para os dias que correm. É o caso de muitos daqueles que criticaram duramente o projeto liderado por Allende e hoje se apressam em afirmar que aquele projeto não fora bem compreendido no seu tempo e que o programa que lhe dava sustentação ainda expressa sua validade para uma América Latina invadida pela perspectiva neoliberal.

Essa forma de trabalhar com o passado massacra a história e, pior, impede uma reflexão mais fecunda e inventiva sobre o presente. Ela, contudo, procura manter a sua roupagem retórica de outros tempos. Hoje se fala de um "reformismo revolucionário", do qual o allendismo seria uma espécie de floração histórica e, por via dessa operação, resgata-se o personagem por meio de uma mitologia às avessas: de um bastardo reformista na época, Allende é transformado num revolucionário digno de ser resgatado.

De modo similar a essa proposição, há também outras perspectivas analíticas que pensam em apresentar Allende como um ator externo ao desafio do governo. É algo difícil de compreender. Dizem essas formulações que "o reformismo revolucionário de Allende fracassou no passado, mas é o mais lúcido caminho de uma esquerda crítica nos dias de hoje"; por isso, "os seguidores de Allende não deveriam buscar o governo, mas sim um espaço de ação critica na sociedade" (Moulian, 1998). Há seguramente um reducionismo nessa visão: Allende é visto como um político cuja missão maior foi a de unificar a esquerda a partir de um "trabalho de formiga" em relação aos setores populares. Essa visão, a nosso ver, reduz o nosso olhar em relação ao lugar maior que alcançou Allende em sua trajetória: a presidência da República. E, por meio desse lugar, ter proposto e se esforçado até o limite para implementar algo inédito: a construção do socialismo por meio da democracia. Não o ter alcançado não diminui em nada a sua grandeza como líder e dirigente político.

Por outro lado, a ausência de desenvolvimento ulterior da via chilena ao socialismo deve ser creditada muito mais às vicissitudes do governo da UP e às próprias limitações de Allende, mas também às de alguns intelectuais bastante ligados a ele, que o influenciaram política e teoricamente nos anos da presidência. Todavia, o mais importante é que se deve encarar Allende a partir desse lugar, isto é, do ponto culminante de sua trajetória, e enfrentar o desafio historiográfico, teórico e político de compreender seus próprios limites. De qualquer forma, o que queremos enfatizar nesse comentário é que o que estamos chamando aqui de "momento Allende" deve ser entendido como o núcleo da herança de Allende, formado pelos sentidos e significados produzidos a partir do ponto máximo a que ele chegou como líder e dirigente político.

Como protagonista central, Allende levou a UP até ao limite máximo que um ator político de esquerda poderia chegar dentro dos marcos de uma democracia representativa e constitucional. A posição de vanguarda de Allende era claríssima, ainda que ele fizesse parte daquilo que Tomás Moulian (1988:43) chamou de "realidade híbrida" da esquerda chilena. Para ele, o desafio da UP como ator político era o de construir um discurso a partir do Estado, dando e assegurando-lhe legitimidade perante a sociedade como um todo. A partir desse momento, a questão da democracia não poderia mais ser trabalhada como se a esquerda fosse um ator externo à ordem política e institucional. Nesse sentido, a diferença com o processo revolucionário cubano é cabal. No Chile de Allende, os combates se travariam em outro terreno, mas é clara a intenção em desconsiderar esse aspecto. De acordo com o relato de Alejandra Rojas:

Cuando el Che saluda a Allende ‘que por distintos medios trata de obtener lo mismo’, claramente no aplica criterios literarios. [...] Lo que vemos durante la Unidad Popular son, en su mayoría, combates administrativos, campañas larvadas en las oficinas ministeriales, con teléfonos, ventiladores, secretarias. Y donde queda el necesario dramatismo? El ejército revolucionario de Allende es un equipo funcionario de terno y corbata; sus armas, los estrechos poderes que le presta la Constituición. Como comparar el impacto emotivo de la granada vietnamita con el Decreto de ley 520 o un acápite herrumbroso del Código del Trabajo? Todo es tan distinto. Ésta es la historia de un elaborado enfrentamiento legal, un combate inteligente que buscó crear nuevas relaciones de producción. [...] Mobilizaciones populares para acelerar el proceso de cambios, para forzar el avance más allá de lo discursivo, para hacerlo ‘irreversible’. Pero, en esencia, esta revolución en democracia tuvo mucho más de ejedrez que de Sierra Maestra. Épica de notarios. Una lenta batalla de papel (Diego García, F. & Sola, O., 1998:93-5).

Desta forma, tornar-se governo e continuar perseguindo a construção socialista como uma ruptura revolucionária foi o que definiu todas as contradições vividas no governo Allende. Atestando essa ambigüidade, Tomás Moulian (1988:45) enfatiza: "el ‘alma’ de la Unidad Popular [...] estaba escindida, desde su formación, entre los que se aferraban a los caminos tradicionales, muchos de ellos sin esperanzas reales, y los que intuían la necesidad de nuevas opciones que cambiarían profundamente la escena de la política chilena". Em nosso entendimento, Allende fez parte do segundo grupo, e essa opção definiu sua grandeza e sua sorte.

É no governo que a estratégia que Allende perseguiu desde a década de 1950 - qual seja, a unidade entre socialistas e comunistas - assume um lugar cada vez mais autônomo, identificando-se com o próprio projeto da via chilena ao socialismo. Tal projeto e a cultura política que o informava garantiam a autonomia de Allende e definiam a sua liderança como um elemento de equilíbrio e afirmação do eixo comunista-socialista. Assim, a autonomia de Allende era uma autonomia relativa. Por essa razão, sua estratégia não se afirmou política e teoricamente por meio de uma qualificação própria, nos termos de uma "via allendista ao socialismo". Tal formulação, além de compreender a autonomia de Allende como integral, toma como referência muito mais os elementos de comportamento político e de horizonte estratégico (um socialismo democrático muito rarefeito no seio da própria esquerda chilena da época) do que propriamente as elaborações de Allende atinentes à problemática das vias de transição (Aggio, 2002).

Atuando objetivamente como expressão e equilíbrio do eixo comunista-socialista, a estratégia política de Allende rejeitava tanto a noção de revolução por etapas (comunista) quanto a idéia de um "Estado Paralelo" (socialista), alocando o tema da transição pela via socialista no interior da legalidade existente. O distintivo na via socialista de Allende era a sua defesa de uma transição que aprofundasse e concretizasse o conteúdo democrático e formal do Estado burguês e fosse sustentada pela mobilização de massas e pelos institutos legais do Estado.

Como processo, Allende supunha que esta transição se encaminharia para uma situação de ruptura, transformando o Estado vigente em Estado antagônico ao capitalismo. Na sua visão, portanto, a resolução do problema do poder não era anterior à construção socialista, mas sim uma questão de simultaneidade no interior da via socialista. Poder político dos trabalhadores e criação socialista eram abordados por Allende como processos construtivos e não destrutivos, como processos de desarticulação da dominação capitalista (Aggio, 2002).

Para Allende, legitimar a via chilena no campo teórico do socialismo não implicava submeter aquela proposição às determinações estritamente partidárias. Ao postular um "segundo caminho para o socialismo", Allende enfatizou com freqüência a necessidade da criação teórica, e esta - ao ser elaborada no decurso de um processo inédito - responderia, por sua vez, como a realização da própria teoria (Cox, 1977).

Para Allende, as circunstâncias de um processo tão original como o chileno não encontrariam respostas prontas na teoria, sendo que seus apelos no sentido de se buscarem soluções concretas a partir dos problemas concretos que se apresentavam contrastavam com a vocalização abstrata e, no mais das vezes, retórica dos setores mais significativos da esquerda. Allende intuía, de acordo com Tomás Moulian (1988:52), que a esquerda chilena não havia desenvolvido uma perspectiva cultural que pudesse superar o imaginário redentorista das revoluções e, por conseguinte, discutir com profundidade "os problemas teóricos e históricos das revoluções e de sua trajetória posterior", aquilo que o mesmo autor qualifica como "el peso de la fatalidad, la tragedia de las revoluciones" (Moulian, 1988:52).

Olhando este mesmo problema por outro ângulo, entende-se que é possível questionar aquelas interpretações da trajetória política de Allende que procuram afirmar que as debilidades da sua estratégia encontravam-se, precisamente, na ausência de teoria ou na sua histórica postura mais prática do que teórica. Como já enfatizamos acima, tais interpretações - de resto, informadas pelos referenciais ideológicos que marcaram a esquerda no período - operam uma fratura entre teoria e política difícil de ser aceita. É certo que Allende não ocupou um lugar destacado como teórico, e, quando assumiu a presidência, a sua identidade como homem de ação e de vocação estatal era o seu traço essencial.

Uma análise mais aprofundada dos trabalhos produzidos por alguns intelectuais, que assessoraram ou influenciaram Allende no período, indica que o problema não esteve na ausência de teoria, mas sim numa determinada abordagem desta ou, mais precisamente ainda, nos limites de tal abordagem, quando levada à prática no contexto particular do processo chileno. É o que se depreende especificamente dos trabalhos de Joan Garcés (1972; 1976) e das contribuições que foram assimiladas do "socialismo de esquerda" europeu, posto em permanente debate entre as estratégias revolucionárias e reformistas da época.

Joan Garcés, cientista político valenciano e assessor direto da presidência, era o responsável pelas análises da conjuntura política, e é dele a formulação da "via político-institucional" como a "tática revolucionária" mais adequada para o Chile. Esta tática mostrava-se coerente, segundo Garcés, com o desenvolvimento político chileno e com a idéia de revolução como conquista do aparelho de Estado. Através dela se sustentaria a forma política da vontade geral que caracterizava o ordenamento constitucional, preenchendo-lhe o conteúdo com os valores de uma nova classe social.

Portanto, de acordo com Garcés, tratava-se de configurar, mediante a intervenção dos atores políticos vinculados aos trabalhadores, um conteúdo proletário e popular às avançadas instituições da democracia política vigente no Chile. Porém, era de fundamental importância dar sustentação ao governo da UP através da iniciativa política constante, o que deveria culminar na conquista da hegemonia no interior do aparelho estatal. Importava fundamentalmente à esquerda, então, saber utilizar os recursos operativos que lhe fornecia o Estado, para trabalhar favoravelmente as situações políticas com vistas a um fim bastante determinado: manter funcionando o governo para que este ganhasse, cada vez mais, força política e legitimidade social, e pudesse promover as mudanças constitucionais que dariam suporte à institucionalidade da transição socialista.

Pode-se dizer que Garcés concebia a revolução socialista como uma espécie de "revolução processual", concentrada em vitórias táticas. Se a sua "via político-institucional" não se encontrava integralmente fundada na ortodoxia marxista-leninista, guardava dela o elemento forte de intervenção tática, ativa e rupturista. Nela, o tempo político da tática não podia sofrer reveses de qualquer natureza, sob o risco de emergir no cenário o tempo da estratégia, onde, segundo o próprio Garcés, forçosamente a "via político-institucional" cederia lugar à "via insurrecional". O tempo da tática aprisionava, assim, o tempo da estratégia. O seu elemento de previsão era apenas defensivo e, por isso, centrava-se fortemente na análise conjuntural. Por essa razão, a "via chilena" de Garcés não conseguiu configurar-se como um novo "programa", afirmando-se tão-somente como uma espécie de realização operacional da via chilena defendida por Allende.

Percebe-se nas formulações de Garcés, com muita nitidez, o que Gramsci (2000) chamou de um amesquinhamento ou banalização da "dupla perspectiva" na ação política e na vida estatal, no qual estratégia e tática não são mais que "formas de ‘imediatismo’ que se sucedem no tempo com maior ou menor ‘proximidade’". Esta postura crítica de Gramsci sugere, portanto, que uma vitória eleitoral de forças partidárias do socialismo por si só não pode ser concebida como um tempo que distancie ou aproxime o tempo da construção do socialismo. O imediato na ação política pode e deve estar presente num ou noutro tempo, isto é, no tático e no estratégico.

Contrario sensu, quanto mais imperiosas forem as necessidades de defesa de um governo de tal natureza, mais deverá fazer parte do cenário político a perspectiva estratégica, isto é, o socialismo, não como uma operação de conquista total do poder, mas como uma perspectiva de construção de uma vontade coletiva, de um "princípio dirigente" que possa soldar e solidificar a vontade geral manifestada e formalizada em instituições democráticas e representativas. Nesta construção, emerge com clareza que a dimensão da vontade geral é passível de ser abordada politicamente através de operações táticas, enquanto a dimensão da vontade coletiva não pode ser reduzida a esse tipo de abordagem, já que não se encontra circunscrita apenas à "sociedade política"; e, na perspectiva de uma estratégia voltada concretamente para o socialismo, apontaria ainda para um "Estado integral" e para uma "sociedade regulada".

No projeto de Garcés, a hipertrofia do tempo da tática frente ao tempo da estratégia inviabilizava um nexo mais liberador entre ambos, não possibilitando a construção de uma nova noção de tempo na ação política, concebido como superação dialética, em que estratégia e tática conformassem uma relação tensionada, na qual a primeira se exercitasse como forma complexa e superior, "distante", em certo sentido, da segunda. Daí a centralidade do tema da democracia como decisivo - num outro sentido, "estratégico" -, e não a ênfase em operações táticas com vistas à conquista imediata de uma institucionalidade de transição ao socialismo.

Paradoxalmente, a previsão defensiva de Garcés não foi mais do que uma manifestação passiva que se expressava ativamente: parecia ver muito da conjuntura política, mas compreendia pouco da própria particularidade chilena. Ela se mostrou consoante, porém, com o processo de "anti-revolução passiva" que a esquerda havia desencadeado visando a superar rapidamente o que ela entendia como seu elemento histórico antagônico, isto é, a modalidade específica de "revolução passiva" que esteve na base da trajetória do país rumo ao capitalismo, especialmente a partir do final da década de 1930 (Aggio, 1999).

Entretanto, Allende apresentava também elementos bastante fortes de proximidade com a problemática do "socialismo de esquerda europeu" [1]. Das referências desta corrente política e intelectual, o trabalho do teórico socialista italiano Lelio Basso (1972) parece ter sido o de maior relevância para Allende, com a apresentação de um texto de debate num seminário em Santiago, em 1971. Quais teriam sido, então, os elementos de reflexão teórica presentes no "socialismo de esquerda europeu" acerca dos processos revolucionários que se apresentaram com vigor na sua estratégia?

Em primeiro lugar, a rejeição da noção de que qualquer processo revolucionário definia-se pela conquista violenta do poder. Lelio Basso afirmava que a manutenção desta concepção no interior do movimento operário contraditava o desenvolvimento histórico posterior ao tempo em que esta teria sido originalmente formulada, isto é, os séculos XVIII e XIX. Haveria, para Basso, a necessidade de pensar dialeticamente o processo revolucionário como parte inseparável do desenvolvimento capitalista. O processo revolucionário não se iniciava, portanto, com a tomada do poder, mas culminaria com ela, após instalar no seio da velha sociedade os elementos sociais, econômicos e culturais da nova sociedade.

Basso enfatizava que, para Marx, a revolução era entendida como um longo processo, diferenciando-se, assim, da noção de insurreição e do ato da tomada do poder. Esta concepção de revolução assentava-se na contradição fundamental entre "o caráter social das forças produtivas e as relações de produção baseadas no lucro privado". Nesta leitura, o agente revolucionário não era o proletariado tomado isoladamente, mas "o conjunto das forças produtivas, ou seja, a classe operária em primeiro lugar, mas em conexão com o desenvolvimento dos instrumentos de produção, da ciência, das formas organizativas, etc."

A noção de revolução deveria, então, ser formulada a partir do próprio desenvolvimento histórico suscitado pelo capitalismo. O caráter social da produção capitalista, de acordo com Basso, gerava uma tendência socializadora que lhe era inerente. A ação revolucionária do movimento operário seria aquela que penetrasse e interferisse neste processo de socialização, dominando gradativamente as leis de desenvolvimento do capitalismo, introduzindo os elementos da nova sociedade e preparando a crise revolucionária que iria explodir as relações capitalistas de produção.

O conflito derivado da luta operária havia implicado, na história da sociedade capitalista, a aceitação de reformas por parte das classes dominantes, o que fez com que se acentuasse ainda mais o caráter social e coletivo na dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas. Entre as reformas mais significativas, Basso citava a legislação social, a universalização do sufrágio e a crescente intervenção do Estado na economia, com as nacionalizações e as diversas formas de planificação.

Haveria, então, em toda a dinâmica de reformas suscitada pelo desenvolvimento das forças produtivas, um aspecto favorável à perspectiva de revolução do movimento operário. Se ele rejeitasse as reformas - e este é o segundo aspecto significativo para que se pretende chamar a atenção -, estaria recusando uma tendência do desenvolvimento das forças produtivas que lhe era favorável, deixando que a lógica interna do sistema retirasse todo o caráter revolucionário do seu movimento e ganhasse um novo equilíbrio, ao reabsorver para o velho ordenamento tal tendência. Porém, se, ao contrário, o movimento operário tivesse uma visão clara das possibilidades objetivas e interviesse conscientemente, orientando, a cada momento, o processo em direção a uma lógica antagônica de socialização, então esta última se converteria, pouco a pouco, no eixo de cristalização de um novo sistema, articulando, em torno de si e coerentemente, todos os elementos da futura sociedade capazes de superar a lógica do antigo sistema.

A revolução seria, então, o que Basso, citando freqüentemente passagens de Marx, chamava de um "conflito dialético" entre duas "lógicas antagônicas": a do sistema e a socializante. A revolução, como um processo em curso já instaurado pela dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas, dependeria da intervenção ativa do movimento operário para fazer com que a sua lógica prevalecesse.

O "núcleo profundo do processo revolucionário", de acordo com Basso, não era a preparação da insurreição, "a tomada violenta do poder, desligada do processo de transformações da sociedade e dos homens". A questão da tomada do poder deveria ser considerada, do ponto de vista político, ou como o resultado final do choque de "lógicas antagônicas", ou como decorrência do conflito nascido deste antagonismo, o que poderia gerar situações de crise política "suscetíveis de se concluírem com a tomada do poder por parte do proletariado". Entretanto, nenhuma das duas circunstâncias apareceria, de acordo com Basso, se não fossem preparadas ativamente as condições para isso, através da preconstituição dos elementos da sociedade futura, organicamente articulados pela lógica antagônica ao sistema.

O terceiro aspecto que se quer ressaltar refere-se às raízes históricas particulares de cada país, que articulariam e regulariam toda a estratégia revolucionária proposta por Basso. A necessidade de transformação radical do ordenamento jurídico, político e social, visando à transição ao socialismo, exigia, segundo Basso, que não se perdessem de vista os elementos culturais de uma formação social. Nesse sentido, a lógica antagonista ao capitalismo teria de trabalhar, necessária e simultaneamente, com as noções de continuidade e ruptura, isto é, o seu antagonismo não significava imposição de rupturas, mais ainda se estas estivessem desligadas do caráter cultural afirmado nas instituições políticas de cada país. Basso não pensava, portanto, que uma transição socialista pudesse ser feita através de "vazios históricos".

Assentado nas raízes históricas e culturais de cada país, o elemento rupturista nesta estratégia estaria na direção política implementadora das reformas. Se tais reformas fossem pensadas e executadas de forma desligada da lógica antagonista - a lógica socialista -, o processo redundaria em reformismo ou no compromisso socialdemocrata entre capitalismo e classe operária.

Uma intervenção política consciente supunha, então, a subordinação dos elementos táticos e parciais das reformas a uma visão de totalidade, que deveria criar ou reforçar no interior da sociedade capitalista "uma lógica integradora e coordenadora de todas as tendências e de todos os elementos socialistas", lógica que poderia, a partir de certo momento, "operar automaticamente". A força do eixo comunista-socialista na sociedade chilena pareceu ser e evidenciar a lógica antagonista, de que falava Basso, e criou a ilusão de que esta, por sua pura e simples existência, seria capaz de conduzir uma revolução concebida nestes moldes.

Neste ponto concentrava-se a definição da ação e do comportamento que deveria ter a direção política no processo de transição socialista, contrastando com uma conceituação que supunha a existência ou a criação de um poder emanado e, em geral, mantido pela força das armas. A adoção de um caminho político não seria, portanto, uma escolha de natureza abstrata. Esta dizia respeito às possibilidades maiores ou menores de afirmação da lógica antagônica no curso da revolução. Porém, caminho político não significava passividade e ausência de confrontos, tornando-se decisiva a afirmação permanente, por parte da direção política e de suas bases sociais, da vontade socialista na condução do processo de transição, que, por sua vez, não poderia deixar de afirmar o desenvolvimento das forças produtivas, a intervenção do Estado para atender as demandas de bem-estar das classes trabalhadoras, bem como novas orientações culturais e novas formas de participação. O que implicava, em todas as dimensões sociais, a busca de um equilíbrio entre centralização e autonomia.

Fazer convergir para a meta socialista todas as forças que brotavam no interior da sociedade capitalista, utilizando-se os instrumentos legais para isso, seria, portanto, a grande tarefa da direção política. Residiu neste ponto, precisamente, o essencial do problema, que nem as reflexões de Basso nem a estratégia levada à prática por Allende conseguiram equacionar: como relacionar a ativação de massas, que a estratégia supunha, e a estrutura política do regime liberal-democrático existente no Chile, assentada em partidos e num Parlamento forte?

As reflexões de Basso e a estratégia adotada por Allende supunham uma "transferência de poderes" na sociedade chilena. A afirmação e a prevalência da lógica antagônica admitiam a criação de novos organismos de poder popular, sendo que o maior problema não era a sua criação, mas sim o seu sentido e a sua função no interior da institucionalidade. A confrontação com o Parlamento existente, não se definindo muito claramente este aspecto, mostrou-se inevitável, assim como o envolvimento do Executivo neste confronto.

A ênfase da argumentação de Basso, no que se refere à dimensão política, procurando "salvar" a estratégia do reformismo e colocá-la no campo da revolução, configurou-se na utilização da legalidade como instrumento para afirmar a lógica antagônica no interior da sociedade - a institucionalidade colocada a serviço dos trabalhadores e do socialismo, como diria Allende - e na mobilização de massas conduzida pelo movimento operário, única garantia para a continuidade e o êxito do processo de transição ao socialismo.

Aparece aqui, claramente, uma linha intermediária entre avançar ou consolidar, tendências praticamente opostas no interior da Unidade Popular. "Avançar continuamente", dizia Basso, "para que não caia a pressão popular, mas, ao mesmo tempo, reforçar e consolidar cada conquista". Em termos sintéticos: movimento versus passividade, tendo exclusivamente como eixo e fator de sustentação a mobilização de massas. Movimento que, segundo Basso, dirigido pelas classes populares e nelas fundado, com sensibilidade para suas demandas, teria capacidade de alterar profundamente a correlação de forças no espectro político, ao ponto de as maiorias parlamentares perderem "todo significado". A utilização da legalidade estava colocada em termos claros: "[...] uma permanente colaboração entre o Executivo, que promove as reformas, e a massa popular que as respalda", submetendo "a resistência parlamentar a uma dupla pressão".

Não eram integralmente distintas as formulações de Allende, a despeito da sua ardorosa defesa do pluralismo e das instituições democráticas. A duplicidade, para se situar como ator político na Unidade Popular e garantir-lhe equilíbrio, foi sempre a tônica da sua política. Tudo se justificava, porque a procura de um caminho democrático ao socialismo configurava-se, de fato, como uma busca incerta e tateante. Uma coisa encontrava-se, porém, bastante definida: este caminho seria, certamente, trilhado pela crescente e ativa participação política de massas, mas isso mostrou-se inteiramente insuficiente.

Conclusivamente, pode-se dizer que entre a ativação de massas e a preservação da ordem democrática residiu, efetivamente, o enigma da transição democrática ao socialismo proposto na via chilena. No cenário real das "alternativas globais", que se estruturaram no interior das elites políticas chilenas a partir dos anos 60, o desencadeamento pela esquerda de um processo de "anti-revolução passiva" acabou por afirmar-se como antagônico ao "arreglo democrático" chileno (Tironi, 1986), que havia sido construído desde o final da década de 1930 e que, naquele momento, vivia uma aguda contestação em virtude da emergência de massas na vida política do país. Ao ser concebido como uma via socialista isto é, uma "alternativa global", uma "lógica antagônica", tal processo favoreceu, contra todas as intenções democráticas esposadas na via chilena, o cancelamento da ordem democrática vigente no país, contribuindo para o seu colapso.

Processo radical de democratização incapaz de sustentar a democracia política, a "anti-revolução passiva" - levada à prática pela esquerda e suposta, como vimos, na estratégia democrática ao socialismo defendida por Allende - não conseguiu captar em toda a sua plenitude a dupla face da modalidade específica de revolução passiva que havia sido responsável pela trajetória de modernização do país. Modalidade específica que, expressa num "compromisso tácito" que permeava fundamentalmente a sociedade politicamente organizada - daí a expressão "arreglo democrático" -, havia possibilitado industrialização e desenvolvimento, bem como democracia política e participação, ou seja, tudo aquilo que estava na base daquela ativação de massas que sustentou o governo da Unidade Popular até o seu término. Enfim, o nexo entre consenso y cambio, essencial na particularidade chilena, estava a exigir, antes que uma revolução, uma renovação histórica da vida nacional.

Mergulhada nesses dilemas, a esquerda chilena não conseguiu traduzir o seu projeto numa grande criação em que o novo fosse fecundado e nascesse realmente da particularidade chilena, que havia possibilitado a existência daquela experiência. Sem formular uma nova noção de tempo político na construção do socialismo - o que implicava uma nova noção de ruptura: pactuada e reformadora, como diríamos hoje -, a via chilena apenas conseguiu anunciar-se como uma via democrática. Porém, devido ao fato de ter enfrentado uma situação limite, constituiu-se no ponto e no posto mais avançado que a cultura política da esquerda, não apenas latino-americana, conseguiu atingir a respeito do que se concebia, àquela altura, como uma via democrática ao socialismo. Por isso, o seu valor como experiência histórica é incomparável. Em nosso entendimento, esse se configuraria, em sua inteireza e essencialidade, como o "momento Allende" na história da esquerda mundial.

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Alberto Aggio é professor livre-docente de História da América da Unesp, campus de Franca, e autor/organizador, entre outros, de Gramsci: a vitalidade de um pensamento (Unesp, 1998), Democracia e socialismo: a experiência chilena (Annablume, 2002, 2. ed.) e Uma nova cultura política (Fundação Astrojildo Pereira, 2008). Esse texto é a base da comunicação apresentada na mesa-redonda "Allende y la izquierda mundial" como parte da programação da Universidad de Verano de Rancagua, em janeiro de 2008.

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Nota

[1] O "socialismo de esquerda europeu" questionava tanto o modelo soviético quanto a socialdemocracia. Embora Garcés se situasse como analista da conjuntura, teoricamente também compartilhava as noções básicas desta corrente.

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Referências Bibliográficas

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AGGIO. Alberto. Frente popular, radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999.

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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