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Os cadernos de um revolucionário

Ivete Simionatto - 2001
 

Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002. 6v.

Americanismo e fordismo, um dos mais instigantes textos da obra de Antonio Gramsci, publicado pela primeira vez no Brasil na década de 1960, chega novamente até nós com o quarto volume da nova edição dos Cadernos do cárcere. Esse tema contempla uma das mais brilhantes análises sobre o fenômeno americano como forma extrema de "revolução passiva" e de regulação das relações humanas e sociais. Como processo de organização do trabalho, o americanismo não busca rearticular apenas o mundo da produção. Imbrica-se, também, na esfera da reprodução da vida social, já que o controle do capital não incide somente na extração da mais-valia, mas implica, ainda, o consentimento e a adesão das classes à nova ideologia. A hegemonia que "nasce da fábrica", escreve Gramsci, é acompanhada por uma "moral dos produtores" e por uma "ética do trabalho", destinadas a produzir formas de passividade e adaptação das classes trabalhadoras às estratégias de dominação capitalistas [1].

Escrito por Gramsci em 1934, Americanismo e fordismo aparece originalmente no caderno número 22 e integra a produção do último período em que permaneceu no cárcere. Durante os anos de reclusão, Gramsci preencheu 33 cadernos escolares, dos quais 29 compõem a primeira edição de sua obra publicada na Itália, entre 1948 e 1951. O responsável pela organização do material desta edição inaugural foi Palmiro Togliatti, companheiro de Gramsci na batalha contra o fascismo. Togliatti agrupou os escritos carcerários por temas, a partir dos seguintes títulos: Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce; Gli intellettuali e l’organizzazione della cultura; Il Risorgimento; Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo Stato moderno; Letteratura e vita nazionale e Passato e presente.

Essa primeira tentativa de organização dos textos de Gramsci, conforme observa Carlos Nelson Coutinho, professor titular de teoria política da UFRJ e tradutor das obras de Gramsci no Brasil, mesmo com todas as indicações e advertências contidas nos prefácios e nas apresentações, induz à falsa noção de que Gramsci, ao longo do período em que passou no cárcere, tenha se dedicado a escrever sobre temas variados em seis diferentes livros [2].

Essa chave de leitura somente será superada a partir de 1975, quando os escritos carcerários de Gramsci foram publicados na Itália em sua integralidade, pelo Instituto Gramsci, com a edição crítica dos Cadernos do cárcere, em quatro volumes. Organizada por Valentino Gerratana, essa edição apresenta a produção gramsciana na forma como foi exposta nos cadernos. Foram excluídas as traduções, os apontamentos, as minutas de cartas e todo o material não relacionado ao trabalho teórico.

No Brasil, a primeira tradução da obra gramsciana ocorreu na década de 1960, por iniciativa de Coutinho, Leandro Konder e Luiz Mário Gazzaneo. A decisiva coragem de Ênio Silveira proporcionou, entre 1966 e 1968, a publicação, pela Editora Civilização Brasileira, de parte dos títulos da edição temática togliattiana, paralisada pela radicalização do regime militar.

Em 1966, foram publicados Concepção dialética da história (que por problemas de censura não manteve o título original: II materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce) e um volume das Cartas do cárcere, que continha parte da edição de Sergio Caprioglio e Elza Fubini, publicadas na Itália em 1965. Em 1968, é a vez de Os Intelectuais e a organização da cultura, Literatura e vida nacional e Maquiavel, a política e o Estado moderno. Constava ainda do projeto original de divulgação das obras de Gramsci no Brasil a publicação dos textos II Risorgimento e Passato e presente, não traduzidos devido ao recrudescimento da censura após a promulgação do AI-5.

A reedição dos volumes desse projeto editorial só irá ocorrer na segunda metade da década de 1970, quando se começa a discutir no país o chamado processo de "distensão" e, posteriormente, de "abertura" político-democrática. Nesse contexto, os textos de Gramsci contribuíram de forma decisiva na análise do quadro sociopolítico que se delineava com a crise da ditadura militar, a tensão entre a ordem estabelecida e a luta pela democracia, a reinserção dos movimentos da sociedade civil na arena política, bem como a introdução de uma inovadora concepção de socialismo junto aos segmentos de esquerda.

Assim, se na década de 1960, período de sua primeira tradução, as idéias de Gramsci não tiveram grande repercussão no Brasil, entre os anos de 1970 e 1980, quando a crise do regime autoritário e do modelo econômico-social por ele imposto começa a explicitar-se abertamente, sua obra passa a receber um tratamento mais coerente e sistemático, tanto no âmbito acadêmico quanto na esfera da política.

Desvendado no texto e no contexto, autores de diversos campos do conhecimento elegeram Gramsci como o pensador privilegiado na revisão de aportes teóricos e no rompimento com matrizes conservadoras que ganharam força nos tempos da ditadura. Tornou-se referencial singular e fonte inspiradora de trabalhos nas áreas de educação, sociologia, ciência política, antropologia, serviço social, direito, ciências da religião, entre outras, que buscaram, em seu contexto particular, articular a fecundidade e a universalidade das categorias gramscianas, seja na prática investigativa, seja na transformação dos processos sociais.

Essa ascensão meteórica, contudo, não impediu que tanto a primeira edição italiana quanto a brasileira sempre suscitassem calorosos embates, semeando controvérsias e indagações, desconsiderando-se, muitas vezes, as circunstâncias e as condições históricas no momento em que foram projetadas. Seria esse o verdadeiro Gramsci? Hoje, passados mais de meio século de sua publicação na Itália e quase quarenta anos no Brasil, pode-se reafirmar, ainda que se reconheçam seus limites, a inquestionável importância dessa edição togliattiana, seu inegável valor histórico, teórico e político, imprescindível na organização das edições posteriores.

A edição completa dos Cadernos do cárcere começou a ser publicada pela primeira vez no Brasil em 1999, organizada por Carlos Nelson Coutinho, incansável e persistente divulgador da obra de Gramsci, com a colaboração de Marco Aurélio Nogueira, professor livre-docente da Unesp, e Luiz Sérgio Henriques, editor da revista eletrônica Gramsci e o Brasil. Considerado hoje o maior especialista em Gramsci no Brasil, Coutinho consolida, nesta edição, a vitalidade de um pensamento que sobreviveu a diferentes conjunturas e continua sendo referência para os segmentos de esquerda do mundo todo, empenhados na construção de um outro projeto civilizatório.

A nova tradução brasileira dos Cadernos pode ser considerada um projeto inédito, uma vez que articula tanto elementos da edição temática togliattiana quanto da edição crítica de Gerratana. Esses dois critérios de organização dos escritos carcerários de Gramsci, que tornaram possível a divulgação de seu pensamento em diversos continentes, fornecendo caminhos fecundos no repensar do debate marxista e das estratégias políticas da esquerda, vêm sendo acrescidos de novos elementos por intérpretes do pensamento gramsciano. O filólogo italiano Gianni Francioni sugere uma edição dos Cadernos do cárcere em que sejam agrupados separadamente os "cadernos miscelâneos" - sobre temas variados, cujos títulos aparecem repetidamente em vários cadernos - e os "cadernos especiais" - referem-se à reelaboração de apontamentos presentes nos "cadernos miscelâneos" [3]. Vale lembrar que essa metodologia já havia sido adotada na edição crítica de Gerratana, segundo as indicações do próprio Gramsci, mas em Gerratana os cadernos "miscelâneos" aparecem intercaladamente, respeitando a ordem em que foram escritos.

A presente edição brasileira optou por outra alternativa metodológica: reproduz os "cadernos especiais", tais como se encontram na edição Gerratana. As notas "miscelâneas", no entanto, são agrupadas após cada "caderno especial", de acordo com o tema tratado, conservando a ordem cronológica e a numeração utilizadas na edição italiana. Este critério, conforme esclarece Coutinho, "oferece ao leitor de língua portuguesa a junção dos elementos positivos das duas edições italianas: da velha edição temática, conserva as vantagens de uma maior acessibilidade imediata aos textos gramscianos; mas, ao mesmo tempo, coloca à sua disposição os instrumentos que lhe permitem desfrutar do rigor filológico próprio da edição de Gerratana" [4].

Em seu conjunto, o projeto brasileiro apresenta a obra de Gramsci em dez volumes. Os Cadernos do cárcere, especificamente, compreendem seis volumes: 1) Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce; 2) Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo; 3) Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política; 4) Temas de cultura. Ação católica. Americanismo e fordismo; 5) O Risorgimento italiano. Notas sobre a história da Itália; 6) Literatura. Folclore. Gramática. Abrange, ainda, dois volumes sobre os Escritos políticos, de 1910 a 1920 e de 1921 a 1926, e dois volumes das Cartas do cárcere. Além da diferente organização do material, esta nova edição contém inúmeros textos ainda não publicados no Brasil.

O primeiro volume, publicado em dezembro de 1999, contém os cadernos 10 e 11. O caderno 10, dedicado à Filosofia de Benedetto Croce, traz à cena o diálogo de Gramsci com um dos maiores representantes do liberalismo italiano. Estrutura, superestrutura, ideologia, filosofia, hegemonia, intelectuais, história e política, objetividade e subjetividade, individual e coletivo, necessidade e liberdade são categorias presentes nesta interlocução com o napolitano Croce, reafirmando o esforço de Gramsci em recuperar a teoria social de Marx e traduzi-la como filosofia da práxis.

No caderno 11, o autor desenvolve uma longa polêmica com Bukharin, a partir da obra intitulada A teoria do materialismo histórico - manual popular de sociologia marxista, chamada por Gramsci de "Ensaio popular de sociologia". Neste debate, desencadeia uma pesada crítica ao economicismo e ao marxismo vulgar decorrentes da Segunda Internacional, bem como à sociologia, nascida no berço do positivismo. Gramsci defende o marxismo como uma filosofia da história, um pensamento aberto, não determinado a priori. "A filosofia da práxis - escreve ele - é o historicismo absoluto, a mundialização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história [5]." Vários cadernos miscelâneos complementam este volume, trazendo temas fundamentais que revelam ser a história "um contínuo e progressivo fazer-se" [6].

O volume 2, lançado em 2000, versa sobre os intelectuais, o princípio educativo e o jornalismo. Congrega os cadernos 12, 24 e 28, nos quais Gramsci apresenta uma nova concepção de intelectual, a partir do lugar e da função que este desempenha num determinado processo histórico, propondo que seu "modo de ser não pode mais consistir na eloqüência, força motriz exterior e momentânea dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, persuasor permanente" [7]. O papel revolucionário dos intelectuais, no diálogo com as camadas populares e na função da cultura como forjadora da liberdade, constitui o cerne das reflexões destes cadernos.

Os cadernos 13 e 18 integram o volume 3, também publicado em 2000, apresentando uma contribuição fundamental à teorização do partido político - o "moderno príncipe", o condottiero, expressão da vontade coletiva - e uma análise da política a partir da interlocução com a obra de Maquiavel. Encontramos ainda, neste volume, a brilhante análise do pensador sobre a correlação de forças, novas reflexões sobre Estado e hegemonia, Oriente e Ocidente, guerra de movimento, guerra de posição e revolução passiva, categorias que se configuram no epicentro das reflexões gramscianas de todo o período carcerário.

Além do caderno 22, que trata de Americanismo e fordismo, conforme já se indicou, o volume 4, publicado em 2001, congrega também os cadernos 16, 20 e 26, que abordam temas relativos à esfera da cultura, condição necessária ao processo revolucionário, à Ação Católica e ao peso secular da Igreja na determinação da visão de mundo e do modo de pensar das massas populares.

O volume 5, por meio do caderno 19, aborda o Risorgimento italiano, clássico exemplo de revolução passiva. O volume 6, a ser publicado em 2002, tratará dos temas relativos ao folclore, à literatura e à gramática, incluindo, ainda, a apresentação de um índice analítico dos principais conceitos gramscianos e um sumário detalhado de todos os cadernos.

Os dois volumes sobre os Escritos políticos, de 1910 a 1920 e de 1921 a 1926, previstos para publicação em 2003, tornarão possível o acesso às principais elaborações do jovem Gramsci: são textos de extrema riqueza e documentos excepcionais, que traçam um itinerário político e intelectual decisivo não apenas da história da Itália, mas também da realidade européia. A militância política, as reflexões sobre o papel dos partidos, dos sindicatos, do movimento operário em geral aparecem aqui como temas centrais para pensar a revolução socialista.

As Cartas do cárcere completarão, ainda em 2003, o projeto editorial por meio de dois volumes. Contrapondo-se à velha edição brasileira, que contém apenas 223 cartas, a nova edição incluirá todas as cartas carcerárias de Gramsci descobertas até o momento (cerca de 500). Além disso, mesmo as já publicadas em português serão novamente traduzidas e anotadas. As cartas constituem uma preciosa chave para a leitura dos Cadernos, oferecida por Gramsci sem intenção; trata-se de ferramenta metodológica fundamental à compreensão do caminho percorrido ao longo das reflexões carcerárias. Num diálogo mais consigo mesmo do que com seus interlocutores diretos, o pensador vai, dialeticamente, descrevendo a sua trajetória e traçando a sua autobiografia política, intelectual e moral.

Este magnífico projeto editorial dos Cadernos do cárcere, resultado de um rigoroso trabalho de pesquisa, aliado a uma tradução impecável, representa, sem dúvida, um marco no pensamento social brasileiro. A reedição da obra de Gramsci, reafirmando seu aporte categorial rigorosamente dialético-marxista e seu projeto revolucionário de sociedade, constitui uma contribuição inestimável, não apenas no plano das idéias, mas também no plano da ação política; e, sobretudo, constitui referência obrigatória para aqueles que buscam a construção de uma sociedade radicalmente democrática.

Pensador comunista, o autor dos Cadernos espalhou por todos os continentes a idéia de revolução contra o status quo, não pautada em sonhos e ideais, mas na construção paciente, ação tenaz e combativa, processo contínuo que necessariamente se renova e se transforma [8]. Sua profunda reflexão sobre o capitalismo, o poder político e a opressão nos instiga a permanecer abertos ao novo, que, de maneira contínua, irrompe na história, voltando brutalmente nossa atenção para o presente tal como é, se se quer transformá-lo. Seu pensamento não se dirige, apenas, aos homens do século XX, mas continuará - como era seu desejo - für ewig, ou seja, para sempre. Eternizado em sua obra, permanecerá como um importante e imprescindível referencial, pelas luzes que lança sobre a discussão da política e das instituições, num momento em que se esfumam as crenças no Estado, na política e na própria esquerda. Enfim, quando carecemos, mais do que nunca, de uma verdadeira "reforma intelectual e moral".

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Ivete Simionatto é professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Notas

[1] Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. Ed. Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 4. 

[2] Id., v. 1, 1999.

[3] Id., ib., p. 12.

[4] Id., ib., p. 44.

[5] Id., ib., p. 155.

[6] Id., ib., p. 256.

[7] Id., ib., p. 53.

[8] V. Gerratana. "A reforma gramsciana da política". Presença. Rio de Janeiro, n. 17, nov. 1991, p. 57-63.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil

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