Busca:     


A classe média na política brasileira

Luiz Werneck Vianna - Agosto 2008
 

Para o professor Luiz Werneck Vianna, a expansão do que se chama "classe média" deriva do "novo papel do setor de serviços no Brasil, da ampliação do sistema universitário, das novas oportunidades educacionais oferecidas à população e mesmo de um aumento da riqueza nacional". Ele não tem dúvidas de que estamos diante de uma classe média que se expande no país. No entanto, alerta: "Este conceito de classe média é muito complexo". Na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, o professor do IUPERJ acrescenta que "o fato de que tenha havido melhoras nos indicadores sociais não quer dizer que a população tenha sucumbido à mesmice ou perdido a capacidade de inquietação. Não é bem por aí. A sociedade está, sim, não por razões sociológicas, apenas, mas políticas, prisioneira de uma circunstância em que tudo o que se mexe, tudo o que é vivo na sociedade, é trazido para dentro do Estado". 

Werneck Vianna é professor pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Doutor em Sociologia, pela Universidade de São Paulo, é autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). (Graziela Wolfart)

Podemos identificar realmente uma nova classe média? O que poderia ser caracterizado como essa nova classe social?  

A classe média brasileira tem se expandido, sim. Mas não creio que seja pelas razões argumentadas a partir das pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Fundação Getúlio Vargas. A expansão deriva do novo papel do setor de serviços no Brasil, da ampliação do sistema universitário, das novas oportunidades educacionais oferecidas à população e mesmo de um aumento da riqueza nacional. Não há dúvidas de que estamos diante de uma classe média que se expande no país. No entanto, este conceito de classe média é muito complexo. Ele não deriva apenas de variáveis referidas à renda das pessoas, embora a renda seja importante, mas não determinante. Educação, ocupação, lugar de moradia, além de outras variáveis que dizem respeito à cultura, a atitudes, comportamentos, expectativas, também configuram esse estrato. Tenho a impressão de que há uma grande confusão a partir dessas duas pesquisas do IPEA e da FGV a respeito desse conceito, muito difícil de precisar, de classe média. Mas é fato que ela vem se ampliando e é uma presença forte hoje na sociedade e na política brasileira.  

Qual a contribuição do crescimento econômico do Brasil e das políticas sociais de erradicação da pobreza e da fome para o aumento da renda e de pessoas pertencentes à chamada "classe média"?

Essas são duas questões que não guardam relação entre si. A ampliação da riqueza e das oportunidades de vida, especialmente nos centros urbanos, tem feito com que a classe média se expanda. No entanto, os programas de distribuição de renda, como o Bolsa Família, certamente não guardam nenhum vínculo com a formação da classe média. Trata-se de uma estratégia orientada para extrair da zona de pobreza extrema setores imensos da população, através de programas orientados para a melhoria das condições de vida. Mas isso não forma classe média, nem aqui nem na China. 

O crescimento estatístico da chamada classe média pode apontar um novo conformismo social e político?

Essas tentativas de tradução do plano da sociologia diretamente para o campo da política não dão, em geral, certo. Há, na passagem de uma dimensão para outra, muitas modulações, interações, intermediações. Entender que, cruamente, um indicador sociológico vai se pronunciar na cena da política de forma decisiva é algo de que eu descreio muito. O fato de ter havido melhoras nos indicadores sociais não significa que a população tenha sucumbido à mesmice ou perdido a capacidade de inquietação. Não é bem por aí. A sociedade está, sim, não por razões sociológicas, apenas, mas políticas, prisioneira de uma circunstância em que tudo o que se mexe, tudo o que é vivo na sociedade, é trazido para dentro do Estado. Os movimentos sociais estão completamente "estatalizados". A UNE agora terá sua sede financiada pelo Estado. As centrais estão todas dentro do governo, envolvidas na malha estatal. Como eu afirmei, o que vem ocorrendo hoje é que tudo o que é vivo na sociedade foi trazido para o interior do Estado. Isso fez com que a capacidade de movimento livre e autônomo dos movimentos sociais tenha perdido muito da sua força. Não creio que a sociedade esteja acachapada. Creio que ela está cooptada, e, nesse processo de cooptação, há ganhos para ela. Os trabalhadores do campo, seus movimentos são cooptados pelo Estado e têm ganhos com isso. Essa perda de liberdade e de movimento não tem significado privação do ponto de vista material, ao contrário.  

Então, não chegamos ao fim da era das demandas radicais e socialmente transformadoras?

Não! Ao contrário. Elas estão abafadas, controladas, jurisdicionadas por uma política de Estado que se antecipa a tudo e que traz todos os conflitos para dentro de si. Por exemplo, onde estão as lideranças intelectuais do MST? Onde estão as lideranças do capitalismo agrário brasileiro? Onde estão os grandes interesses empresariais? Onde estão os grandes interesses dos trabalhadores? Estão no governo. O governo trouxe todas as contradições para dentro de si e lá ele as arbitra. Com isso, cada movimento perde seu caráter mais incisivo. Esse processo domestica os movimentos, o que não quer dizer que as tensões e contradições inexistam. Elas estão todas aí. A oportunidade de elas se manifestarem de maneira mais dura vai estar exatamente no momento em que essa rede de articulação entre Estado e sociedade, que o governo Lula vem montando, for destituída. E esse momento vai ser o da sucessão, porque somente o presidente Lula é capaz de manter essa rede composta por contrários, por antagonismos. Isso tem os dias contados. Por exemplo, um tema que sempre inflamou a sociedade é a questão nacional. Ela está aí, mascarada pela política externa presidencial e por uma série de recursos que o governo usa para, mantendo uma fachada nacional, fazer a política de sempre. A questão agrária é outra questão que sempre importou uma expressão radical no Brasil. Ela continua presente. Foi afastada, eliminada, cancelada? Não, ela foi abafada. De vez em quando, alguns movimentos rompem a barreira do silêncio e mostram sua capacidade explosiva, como esses do centro-oeste do país. Não creio que as linhas mais convulsivas, mais tensas da sociedade brasileira, tenham sido erradicadas pelo fato de que setores que viviam numa linha abaixo da pobreza tenham sido beneficiados por políticas sociais. Não creio que essa relação possa ser feita, abstraindo-se da construção política.

O entusiasmo com os números de que a classe média cresceu pode ser verificado na realidade, nas ruas e nas vidas das famílias brasileiras?

A classe média brasileira cresceu, mas esta é uma questão para uma pesquisa científica própria. Impressionisticamente e com indicações de algumas pesquisas, é inegável que este estrato social vem se expandindo. É claro que, ao se expandir, dá maior peso a este ator, que é decisivo na vida das democracias modernas. A classe média é central nas democracias modernas.

Como entender tamanha euforia com o aumento do número de beneficiários da classe média em uma sociedade que sempre condenou o neoliberalismo econômico?

A classe média ganhou presença forte no mundo na passagem do século XIX para o século XX, por força da expansão dos centros urbanos, das novas ocupações, inclusive na indústria, com o aumento dos serviços estatais e das profissões liberais. Ela deu uma nova densidade para a vida democrática. Não se pode pensar a classe média apenas na linha produtivista, ou seja, de quem está ligado à produção. Trata-se de um estilo de vida, de uma forma de ser, no mundo, que depende de educação, de renda, de sedimentação, de práticas. Não vejo a classe média como uma presença assustadora, que, por si só, espanta a imaginação utópica, a imaginação criadora. Maio de 68 é um movimento de classe média. A passeata dos cem mil é um movimento de classe média aqui no Brasil. O impeachment do Collor também foi um movimento de classe média. Na passeata dos cem mil, qual era a presença operária, sindical, dos trabalhadores urbanos e do campo? Zero! No impeachment do Collor, igualmente. O movimento operário foi contra Maio de 68. A classe média não está necessariamente associada a uma ausência de imaginação, ao conservantismo. Isso depende. Querer pensar o comportamento das classes e dos estratos sociais apenas a partir da sua forma de existência sociológica é muito pobre, leva a um reducionismo muito forte. Na passagem desse mundo para o mundo da política há muitas mediações.   

Quais as possíveis conseqüências sociais de uma definição empobrecida da classe média, que não contempla elementos mais complexos no sentido de compreender as mudanças que estão acontecendo em nosso país?

Na verdade, está se manipulando e havendo um contorcionismo argumentativo, para dizer que houve melhoria de renda em setores que estavam muito desfavorecidos. Esses setores teriam engordado, pela agenda de consumo, o que nós entendemos como classe média. Daí se teria gerado um comportamento menos buliçoso, mais adaptado às circunstâncias, e a sociedade estaria inteiramente estabilizada, em harmonia, em paz, com seu caminho descoberto, sem imaginação. O que se tem pensado a partir dessas pesquisas do Ipea e da FGV me parece ser um contorcionismo puramente ideológico para dizer que os conflitos acabaram e a sociedade encontrou seu justo caminho. Não é bem assim. 

Quais são as diferenças entre quem sai da pobreza e quem entra na classe média?

Aqui é preciso passar pelo filtro da educação, pela autonomia. A relação de heteronomia, que é típica desses programas sociais, não libera acesso à classe média. Esta é composta por seres totalmente autônomos, e não seres submetidos a uma relação de dependência em relação ao Estado como, por definição, são essas políticas sociais. Isso não é garantia de trânsito de uma condição para outra.  

Quais seriam as referências de situação social, a visão de mundo e de comportamento da chamada "classe média"? Quais suas aspirações sociais e políticas?

Essa é uma questão que se reitera ao longo do tempo. Quando se fala hoje de classe média, não se está falando da pequena burguesia que antes foi central, por exemplo, na literatura marxista: o setor entre o capital e a classe operária, no campo e na cidade, que funcionaria de uma maneira oscilante entre os dois extremos do capital e do trabalho. Quando falamos do conceito de classe média, não retomamos o cenário do século XIX, nem do começo do século XX. Estamos falando de uma diferença social profunda, que gerou novas ocupações, novas atitudes, novos sistemas de orientação e valores. E tudo isso varia de contexto a contexto. Não há uma definição essencialista da classe média que tenha validade na Rússia, na Alemanha, na América do Norte e no mundo da periferia. Isso varia segundo, fundamentalmente, as opções políticas existentes. Na dúvida, onde existe uma classe média robusta, autônoma, as exigências com a vida institucionalizada, uma vida onde a democracia política tenha um certo vigor, tudo isso se fortalece.

Também não sei se podemos falar de classe média de forma homogênea... 

Eu creio que não. De qualquer forma, esse é um assunto que pode estimular uma forte agenda de uma pesquisa empírica. Não é o caso dessas pesquisas que estamos comentando. O objetivo delas foi limitado: perceber algumas melhorias em determinados setores da população em relação à renda. Está bem, isso ocorreu. Mas é legítimo falar que dessa melhoria de condições de renda houve uma ampliação da classe média? Acho que não. Quando se transita dessas questões para outras, é preciso levar em conta muitos outros fatores. Por exemplo, setores submetidos à heteronomia não podem participar da classe média. Setores dependentes de políticas sociais do Estado não fazem parte da classe média.  

Na última entrevista que nos concedeu, o senhor afirmou que identifica um forte moralismo na classe média brasileira, até uma "cultura do fascismo". Como associar essas características com os resultados recentes do aumento da classe média brasileira?

Uma parte do que eu disse na última entrevista  pode ser interpretado assim, mas não creio que seja uma boa interpretação. O tema da moralidade é próprio a essa classe média moderna. Esses setores que estão levantando essa bandeira da moralidade estão vindo de dentro do Estado (Polícia Federal, juízes de primeira instância, mídia, Ministério Público). O tema da moralidade, da ordem racional legal, é extraordinariamente relevante. Mas o seu limite está em desconsiderar outros aspectos envolvidos. Por exemplo, os princípios e os direitos fundamentais são desconsiderados. Em nome da luta pela moralidade, grampeiam-se telefones, as pessoas são "condenadas" em julgamentos relâmpagos, são presas em casa, nas primeiras horas da manhã, com execração pública, com a exposição na mídia, a ponto de não ser mais necessário nem um processo. Afinal, a pessoa já foi condenada e julgada. E a pena que lhe foi imposta é degradante, infamante, como um estigma que cola na sua pele. Importantes setores das classes médias legitimam isso; basta ver as cartas dos leitores nos grandes jornais. E legitimar isso tem a ver com a má tradução do tema da moralidade em moralismo. Como se essa linha de conduta fosse resolver os problemas da sociedade. Não irá. Pode, sim, eliminando-se a corrupção, criar condições para que a sociedade delibere de forma mais autônoma sobre si. A luta contra a corrupção é genuína, verdadeira. Mas, se ela se absolutiza, se perde a perspectiva da política, da democracia, ela se degrada. É disso que eu já falava na outra entrevista, e reafirmo agora.   

Em ano eleitoral, como a chamada classe média se comporta diante das discussões políticas e da democracia?

Ela se orienta no sentido de reforçar as instituições. No limite, esse moralismo estaria apontando para a direção do estado policial. O estado policial seria legitimado em razão da necessidade da sociedade debelar essa "hidra de sete cabeças", que seria a corrupção, que legitimaria o uso de todos os instrumentos: das algemas e grampos às denúncias sem prova, tudo em razão da causa maior: afastar o corrupto e as mazelas da corrupção da vida política brasileira. Para isso, não precisamos de política, nem de partido, nem de voto. Fazemos isso através de aparatos estatais, do executivo, do judiciário, e também de aparatos da sociedade civil, como a própria mídia. Para avançar na direção dos problemas substantivos, é preciso força da sociedade, dos movimentos sociais, dos partidos políticos, do parlamento, e uma ampla circulação de idéias, de debate público. Isso vai para uma outra direção. A política brasileira está amesquinhada, degradada, por uma política deliberada do governo em não estimular a organização, a mobilização social, o debate público. É ali, nas câmaras governamentais, que estão se discutindo as grandes controvérsias. Isso se resolve ali mesmo. Qual o papel dos partidos, do congresso e da opinião pública nisso? A política brasileira está degradada por isso. Só há um político no Brasil: o presidente da República.

Como o senhor se sente, nesse ano eleitoral, diante desse cenário? 

É um quadro difícil, de constrangimentos, mas minha aposta, minha percepção, é de que é muito difícil sustentar isso por mais tempo. As contradições entre os trabalhadores do campo e o agronegócio são reais. As contradições entre os trabalhadores e o capitalismo brasileiro, os empresários, são reais. Elas estão sendo abafadas, porque todos os seus principais representantes estão dentro do Estado. Com isso, parece que a sociedade está condenada à passividade, mas não está. De quando em quando, os conflitos rompem essa barreira do silêncio que se criou em torno deles por força dessa política de cooptação e vão às ruas, se manifestar em defesa dos seus interesses e objetivos, de modo que eu vejo como uma prática muito difícil a de manter ao longo do tempo essa política deliberada de abafamento dos conflitos por trazê-los ao interior do Estado. Todos estão lá. E, se ali há formas de garantir de algum modo seu interesse, por que virão para o teatro livre da sociedade civil, onde podem ganhar ou perder?         

O senhor pensa que essa foi uma estratégia planejada pelo governo, ou é algo que foi acontecendo? 

Foi acontecendo. Foi se descobrindo esse caminho na medida em que se andava. Esse caminho lembra muito o caminho getuliano. Há uma referência histórica que, num certo momento, foi identificada. Isso eu diria que foi identificado. Num certo momento, eles identificaram no período Vargas formas de agir que seriam passíveis de uso no momento atual. Sua pergunta é relevante. Não creio que isso foi preconcebido. Chegou-se a isso andando, mas, na medida em que se alcançou, a referência histórica também se manifestou. Tinha um caso pretérito que era possível consultar, para ver seus usos e seus limites. Patrus Ananias  podia ser perfeitamente ministro do governo Vargas.

----------

Entrevista originalmente publicada em IHU On-Line. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 25 ago. 2008, n. 270.



Fonte: IHU On-Line & Gramsci e o Brasil.

  •