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Um caderno de estudos sobre Gramsci

Maria do Carmo de Oliveira Vargas - Outubro 2008
 

Dore, Rosemary (Org.). Gramsci, intelectuais e educação. Cadernos Cedes, v. 26, n. 70. Campinas, 2006.

Os cinco ensaios reunidos neste volume apresentam uma correlação algo peculiar. É que, ao lê-los na ordem em que foram selecionados, deparamos com uma análise a um só tempo didática e pormenorizada do que significa o pensamento pedagógico-filosófico de Antonio Gramsci. Inicia-se pela sua genealogia intelectual, passa-se por questões ligadas à educação em sua obra e, finalmente, apresenta-se a repercussão de tais questões na realidade brasileira.

O ensaio inaugural, de autoria do professor italiano Domenico Losurdo ("Os primórdios de Gramsci: entre o Risorgimento e a I Guerra Mundial"), é o mais panorâmico de todos. Trata precisamente das origens idealistas e liberais do pensamento de Gramsci, devido à influência do pensamento hegeliano. Uma influência "filtrada" pelos dois maiores expoentes do neo-idealismo italiano: Benedetto Croce e Giovanni Gentile.

Nascido em 1891, Gramsci viveu numa época em que ainda se podiam sentir os resquícios do "Antigo Regime" italiano (o Risorgimento não era então algo remoto). Se levarmos em consideração o fato de ele ser originário do Sul da península, precisamente a região de economia mais atrasada e sociedade mais estratificada da Itália, não será difícil entender o encantamento do jovem intelectual pela filosofia idealista de Hegel. Este, ao modificar o sistema metafísico de Immanuel Kant, introduziu a dimensão da história no cerne da filosofia, reconhecendo o homem como o único agente construtor e transformador do Estado.

A adesão de Gramsci ao marxismo é interpretada por Losurdo mais como uma continuidade do que como uma ruptura de um pensamento originalmente idealista-liberal (fundado na tríade Hegel-Croce-Gentile). Ela se deu no contexto de acontecimentos históricos, tais como a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, que acabaram por antagonizar liberais e socialistas. E aí se explicaria por que a educação - um tema no âmbito da cultura e não da economia - desperta-lhe especial interesse, permitindo superar um dos principais limites do pensamento marxista então dominante: o "economicismo". Ao negar a prevalência e determinação da estrutura sobre a superestrutura, Gramsci percebeu a relevância da educação no processo de transformação social.

Fazendo uso dos argumentos de Losurdo, a importância que Gramsci deu à cultura deve-se ao seu passado idealista-liberal. Como Marx e Engels tinham feito com a filosofia clássica alemã, Gramsci soube herdar, incorporar e superar dialeticamente a influência que recebeu da filosofia de Croce e Gentile.

Já em "Gramsci e a educação do educador", de autoria do professor Marcos Del Roio, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a análise se concentra na teoria e na prática educativa de Gramsci, em relação às quais o autor distingue três fases. A primeira delas diz respeito à preocupação de Gramsci com a educação dos trabalhadores, por ele vista como um instrumento primordial em sua luta por emancipação. Por isso mesmo, a educação deveria preceder a revolução e implantar-se dentro do sistema capitalista, mais especificamente dentro das diferentes unidades de produção. Segundo o autor, Gramsci acreditava num ensino que congregasse uma vertente técnica e uma vertente humanista de conhecimento, ambas necessárias para que os trabalhadores pudessem não só gerenciar o processo produtivo, mas, para além disso, orientar a administração do novo Estado que surgiria após a tomada do poder. Como a classe burguesa detinha uma espécie de monopólio sobre as humanidades, urgia quebrá-lo.

Foi com esse objetivo que Gramsci fundou a revista L’Ordine Nuovo e atuou na organização de uma "escola do trabalho". Tais atividades foram interrompidas, como não poderia deixar de ser, pela ascensão de Mussolini ao governo da Itália (1922). Contudo, mais do que preparar o proletariado para a autogestão e para a magistratura, tanto L’Ordine Nuovo como a "escola do trabalho" objetivavam também a formação de intelectuais formados pela própria classe operária, capacitados para a criação de uma cultura oposta à da burguesia. Essa seria a segunda fase à qual se refere Marcos Del Roio, a saber, a educação do Partido Comunista, em especial sua elite dirigente. Ao tratar da "vanguarda revolucionária" como responsável pela educação dos trabalhadores, o autor delineia a terceira fase da teoria e da prática educacional de Gramsci: "a educação do educador". Trata-se do estabelecimento de alguns parâmetros a nortear a relação entre alunos e professores, ou, mais especificamente, entre proletariado e intelectuais.

Na medida em que a leitura avança para os ensaios posteriores, percebe-se que as temáticas vão ficando cada vez mais especializadas, num trabalho de organização competente que facilita a compreensão e faz com que cada texto se apresente como uma espécie de preâmbulo para o seguinte, do geral para o particular.

O terceiro ensaio, de autoria da organizadora do volume, Rosemary Dore, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), debruça-se sobre as controvérsias que marcaram a introdução do pensamento de Gramsci nos debates acerca do ensino público no Brasil. Chamado "Gramsci e o debate sobre a escola pública no Brasil", ele poderia ser dividido em, basicamente, duas partes: a primeira procura diferenciar a filosofia de Gramsci da filosofia marxista como um todo, mais especialmente do marxismo de Louis Althusser; já a segunda trata de examinar os percalços pelos quais passou a teoria de Gramsci ao ser divulgada no Brasil.

Mais ligado à ortodoxia marxista, Althusser propõe a noção de que a escola, assim como outras instituições, deve ser entendida como um "aparelho ideológico de Estado", isto é, como uma entidade reprodutora e divulgadora dos valores da classe política e economicamente dominante. Partidário do conceito de "materialismo histórico", Althusser considera a escola como instituição determinada ideologicamente pela estrutura capitalista, dando ênfase à economia. A síntese deste tipo de pensamento, já referido anteriormente, é uma só: a escola, assim como as leis e as demais instituições, só mudariam se houvesse uma mudança radical da estrutura da sociedade, isto é, a completa derrubada do capitalismo.

Desse modo, uma das grandes contribuições do pensamento gramsciano, que o transformou em referência obrigatória da chamada "nova esquerda" européia dos anos 60-70 do século XX, consiste em ter revelado uma relação dialética entre a "objetividade" e a "subjetividade", o material e o espiritual. É nessa perspectiva que Gramsci formulou o conceito de "hegemonia" e alargou a teoria de Estado apresentada por Marx e Engels. Além dos aparelhos coercitivos do Estado, a burguesia precisa obter o consentimento dos governados, para se garantir como hegemônica. E a formação do consenso dependeria da educação. Daí a ampliação sem precedentes dos mais diversificados meios de educação, desde a escola, um dos principais deles, até a imprensa e o rádio (Gramsci não conheceu a televisão). Foi nesse contexto, na virada do século XIX para o XX, que a escola pública e gratuita cresceu enormemente.

Chegando ao Brasil na década de 1980, as reflexões de Gramsci sobre a educação despertaram viva polêmica, que se tornaram ainda mais intensas devido ao momento político de transição política pelo qual o país passava à época (fim da ditadura militar e surgimento da chamada "Nova República"). Na segunda parte do ensaio, a autora esmiúça os meandros da teoria em questão, quase todos a girar em torno do malfadado conceito de escola politécnica, que, afinal, nada teria a ver com o conceito de escola unitária proposto por Gramsci. Muito menos com a concepção de escola esboçada por Marx.

No ensaio "Gramsci e a educação: a renovação de uma agenda esquecida", escrito por Eduardo Magrone, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), encontram-se bons indícios dos motivos que fizeram com que as intervenções gramscianas sobre educação caíssem numa espécie de atrofiamento. Partindo praticamente do mesmo ponto onde Rosemary Dore parou, Eduardo Magrone inicia sua contribuição especificando um pouco mais o pensamento de Gramsci acerca dos agentes componentes da superestrutura social: a sociedade civil e a sociedade política.

Corroborando os argumentos de Rosemary Dore, Eduardo Magrone afirma a tese gramsciana de que não basta o controle do Estado para que uma classe social garanta o poder político. Mais do que isso, é necessário obter o consenso dos governados e apresentar uma direção para a sociedade. É necessária a luta para a conquista da hegemonia.

Identificando alguns equívocos na análise existente no Brasil sobre o pensamento de Gramsci, entre os quais o de interpretar a sociedade civil e a sociedade política como entidades dicotômicas, Magrone chega ao seu propósito central: demonstrar como as idéias de Gramsci podem contribuir para elevar o nível do debate sobre a democratização e a autonomia da escola pública no Brasil.

O quinto e último ensaio da coletânea, cujo título é "Intelectuais ‘orgânicos’ em tempos de pós-modernidade", dá prosseguimento à reflexão de Magrone a respeito do conflito entre interesse público e privado no interior da sociedade civil, porém com um enfoque especial: o papel do intelectual nesse espaço. Nele, Giovanni Semeraro, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), aborda a formação do intelectual segundo Gramsci.

Semeraro destaca a importância de filósofos como Marx e Gramsci na reestruturação do papel social desempenhado pelo intelectual com o advento da idade contemporânea. O primeiro, com sua filosofia da práxis, "afastou" os intelectuais da biblioteca e os aproximou dos conflitos sociais e dos mecanismos de dominação do mundo concreto. O segundo, com sua teoria sobre o intelectual orgânico, contrapôs-se à tradição platônica do "filósofo-rei", que via no intelectual um ser privilegiado, literalmente "acima da manada". Suas idéias se distanciavam de posições como as de Max Weber e Nietzsche, que separavam política e ciência, como se estas fossem entidades estanques, ou desprezavam a democracia.

Todavia, para Semeraro, o conceito de intelectual desenvolvido por Gramsci estaria sofrendo uma espécie de esvaziamento. Em virtude de uma nova reconfiguração de seu papel social, o intelectual, na acepção gramsciana, estaria em vias de extinção. Ela seria motivada pela eclosão dos mass media, que marcaria o advento da chamada pós-modernidade. Nesse quadro, o novo intelectual se caracteriza por sua funcionalidade midiática. Notabiliza-se, em muitos casos, por seu descompromisso com o interesse público.

Tendo abdicado da luta por mudanças políticas, econômicas e sociais - conseqüência de sua inserção numa sociedade excessivamente "fragmentada" - o intelectual contemporâneo teria perdido significativamente seu caráter "popular" (no melhor sentido que a palavra comporta), para tornar-se (mais) uma "peça" da "engrenagem" capitalista-neoliberal. A ele competiria não mais educar e ser educado pelas massas, num processo dialético, e sim servir às (e ser servido pelas) mais diversas e dispersas corporações particulares. Como as demandas de tais corporações são hoje entremeadas por aquilo que Semeraro prefere chamar de "videoesfera", cabe ao intelectual contemporâneo elaborá-las, divulgá-las e perpetrá-las.

Finalizando seu ensaio, Semeraro dá algumas sugestões a respeito do lugar onde o intelectual "orgânico", pensado por Gramsci, poderia (ainda) se posicionar na atualidade. Mesmo ressaltando a exigência, posta para o intelectual, de se adaptar a uma realidade ultracomplexa, o que torna sua tarefa consideravelmente mais difícil, Semeraro não o vê de modo algum como obsoleto em face do intelectual funcional. Enfim, a dimensão "ético-política", em seu discurso e em sua prática, seria o único caminho capaz de fortalecer a "vontade coletiva" e transformar a sociedade.

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Maria do Carmo de Oliveira Vargas é historiadora, especialista em Políticas Públicas (DCP/UFMG) e mestre em Políticas Públicas Educacionais (FaE/UFMG).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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