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Astrojildo Pereira, o revolucionário cordial

Marisa Lajolo - Outubro 2002
 

Martin Cezar Feijó. O revolucionário cordial. Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural. São Paulo: Boitempo, 2001. 243p.

O revolucionário cordial é um belo livro, elegante e apaixonado, mas que a cada linha parece brigar com a própria paixão, ficando para o leitor o direito de escolha a qual das duas vozes aderir: à voz das entrelinhas que manifestam admiração grande e generosa por Astrojildo Pereira, ou à voz das outras tantas linhas (sobretudo as com letras miudinhas nos rodapés) que ficam policiando a paixão, relativizando a solidariedade, polemizando consigo mesma?

Ao longo de todo o livro, encontramos um autor lutando para conter seu envolvimento, para deixar à tona apenas o rigor da pesquisa que reconstrói vida e obra de Astrojildo Pereira, figura gauche na história brasileira. Quem lucra é o leitor, que tem em mãos um ensaio que expõe, nesta fratura coração/razão, as melhores marcas do gênero.

MCF acompanha de forma meticulosa a trajetória de Astrojildo Pereira na vida brasileira. Nasce daí sua tese maior, que inclusive dá nome ao livro: definir Astrojildo pelo atributo da cordialidade, tal como a concebe Sérgio Buarque de Holanda, cujas relações com Astrojildo Pereira, aliás, MCF registra.

Não é a primeira vez que este pesquisador debruça-se sobre Astrojildo. Em 1985 é de sua lavra a Formação política de Astrojildo Pereira (SP-RJ: Novos Rumos/Instituto Astrojildo Pereira), obra sisuda, amarrada e compacta, mas que já prenuncia o trabalho mais recente. De lá para cá, MCF temperou a mão. Liberado das pesadas amarras de um texto ideologicamente preso, como era o que se ocupava da formação política de Astrojildo, no ensaio de agora, o autor traça um retrato com muito mais perspectiva deste comunista que nasceu em Rio Bonito, morreu no Rio de Janeiro e que não deixou filhos: deixou lições importantíssimas para a cultura e a política brasileira.

É esta herança que MCF debulha, resgata e discute em O revolucionário cordial, pisando em ovos talvez por serem ainda muito mal-assombrados certos bastidores da história do Partido Comunista Brasileiro, partido que Astrojildo ajudou a criar e com o qual parece ter vivido sempre às turras.

Buscando em A rosa do povo (Drummond de Andrade) versos com os quais abre seu livro, MCF tem como objetivo estabelecer uma ponte para o diálogo com homens de tempos partidos,sem julgá-los,mas tentando compreendê-los no tempo que lhes foi dado para viverem (p. 13).

Na esteira do amargo trocadilho do poeta, que embaralha leitores entre diferentes sentidos da palavra partido, este livro realiza e mesmo ultrapassa seu projeto original: ao dar prosseguimento aos múltiplos significados da metáfora drummondiana homens partidos, MCF encontra aí antídoto seguro para o engessamento que poderia representar a transformação de Astrojildo em paradigma do intelectual às voltas com as exigências da militância partidária.

O revolucionário cordial organiza-se em torno de duas vertentes, cada uma refletindo especularmente a outra: "O discurso da ação" e "A ação do discurso". Antecede-as uma introdução ("Tempo de homens partidos"), e segue-se a elas a conclusão ("O revolucionário cordial"), no mais perfeito quod erat demonstrandum que se possa imaginar.

A primeira parte da obra (p. 17 a 110) ocupa-se, com fôlego largo, da formação de Astrojildo Pereira. Começa por uma cuidadosa e exemplar apresentação da cidade onde ele nasceu, e vai acompanhando sua progressiva conversão primeiro a idéias antimilitaristas, depois ao anarquismo e, mais posteriormente ainda, ao Partido Comunista, que Astrojildo ajudou a criar e em nome do qual esteve por diversas vezes na União Soviética. A dedicação à causa custou-lhe não poucas prisões e outros tantos dissabores.

Nesta parte do livro, os vários episódios da vida de Astrojildo são laboriosamente entretecidos a fatos da política mundial contemporânea dele, bem como ao surgimento e encorpamento no Brasil do pensamento - digamos - antiburguês, que vai expressar-se através de diversas matrizes ideológicas e partidárias, mas que, a partir de 1917/1918, passa a ter como interlocução obrigatória a Revolução Russa e seus resultados.

Nesses arredores dos anos vinte do século passado, a modernidade intelectual de Astrojildo Pereira, no retrato que dele traça MCF, manifesta-se pela aguda e correta percepção da imprensa burguesa como produtora de realidades mais do que como difusora de notícias. A consciência que Astrojildo tem deste caráter fundante das linguagens e das mídias, ao lado de seus continuados e às vezes heróicos esforços para o que hoje se chamaria de desconstrução do discurso jornalístico hegemônico, já manifesta o intelectual muito atento às linguagens.

É por esta mesma época que ele escreve um punhado de crônicas - algumas transcritas por MCF - que já o revelam sujeito de uma linguagem desataviada, que sabe inscrever problemas sociais no registro do cotidiano da cidade. Nestes textos, o estilo de Astrojildo fica a (louváveis) quilômetros daquilo que, um pouquinho mais tarde, vai ser chamado de realismo socialista e ser proclamado estilo oficial dos que queriam a revolução proletária.

Ao acompanhar tanto o rompimento de Astrojildo Pereira com o anarquismo quanto sua adesão ao comunismo, o leitor se surpreende pela fidelidade dele à sua vocação de escritor e de homem da cultura. A mudança de uniforme partidário pode ser acompanhada com nitidez na malha de jornais e periódicos - nanicos e alternativos, claro - fundados por Astrojildo ou nos quais ele colaborou .

"O discurso da ação", primeira parte do livro, encerra-se com o capítulo "O intelectual e o partido", onde MCF rastreia o duro jogo de braço entre Astrojildo e o PCB, que não tolerava o que chamava de intelectual pequeno-burguês, penalizando, no caso de Astrojildo, suas conversas com Di Cavalcanti (seu vizinho de pensão em São Paulo) ou sua colaboração em jornais não alinhados com a causa comunista, como O homem do povo.

Este capítulo é cuidadoso ao articular o endurecimento do PCB à ascensão do stalinismo na União Soviética e vai buscar na voz sempre afinada de poetas, testemunhos deste doloroso processo. Com bom gosto, recorre aqui a Brecht, como antes recorrera a Drummond de Andrade.

Como registra o livro, apanhado nas malhas deste processo, Astrojildo irmana-se a Malraux, Paul Nizan e Arthur Koestler. Ao estabelecer o parentesco entre eles, ficam bem visíveis os malabarismos de MCF para não ferir susceptibilidades históricas, eventualmente ainda doloridas. Afastado do PCB, é a partir do começo dos anos 30 que Astrojildo - por razões inteiramente alheias à sua vontade - investe em sua formação intelectual através de um aturado regime de leituras e começa a produção intelectualmente mais representativa de sua carreira.

As derradeiras linhas da primeira parte de O revolucionário cordial estabeleçem uma comparação o seu tantinho desairosa entre Astrojildo, Gramsci e Lukács. Segundo MCF, Astrojildo não teve condição de elaborar de forma mais cuidada - como o fizeram os outros dois - sua reflexão sobre as relações entre intelectuais e partidos, literatura e revolução. A aproximação entre estas três figuras, a tantos títulos emblemáticas do breve século XX, vale pelo que sugere em termos de um estudo que compare a perspectiva dos três face à literatura e à produção cultural. Parece muito sedutora, por exemplo, a aproximação possível entre o italiano e o brasileiro - talvez não por acaso ambos latinos - no que respeita à inclusão, na reflexão sobre literatura, de textos e autores que hoje chamaríamos de não canônicos.

O livro infantil de Gramsci, L’albero del riccio, as desventuras dos que postumamente lutaram para publicá-lo, ao lado da preocupação que ele demonstra nas cartas da prisão pelas leituras de seus filhos, são sugestivas da ampla gama de discursos culturais que atraíam a atenção de Gramsci.

Também Astrojildo surpreende: um pouco conhecido texto seu alinhava um rápido esboço de uma história da literatura brasileira, que resgata desconhecidos e, sem papas na língua, comete irreverências críticas que talvez só hoje encontrem ouvidos que as possam levar adiante [1].

A segunda parte do livro, "A ação do discurso" (p. 113-214), se tece em torno à questão das teses e das posições de Astrojildo no cenário da cultura brasileira a partir, basicamente, do que deste tema ensina seu livro Interpretações, publicado em 1944.

O Astrojildo desta segunda parte é marcado por três signos: a percepção da importância da cidade (particularmente do Rio de Janeiro) na constituição do romance brasileiro, a importância de Machado de Assis na nossa literatura e o papel, nela, do modernismo. Percorrendo a análise que Astrojildo faz dos romances de Manuel Antonio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo e Lima Barreto, MCF aponta o pioneirismo com que o crítico percebe a importância da paisagem urbana para que a literatura cumpra sua função de fornecedora e difusora de conteúdos do imaginário.

No capítulo sobre Machado, além de rastrear a interpretação da obra machadiana na obra de Astrojildo, MCF, com argúcia e originalidade, sugere também a importância da cidade como única sede possível para as instituições das quais depende a existência da literatura.

No ensaio "Machado de Assis, o romancista do segundo reinado", longo e respeitado texto de Astrojildo Pereira sobre o autor de D. Casmurro, o ensaísta, além de articular de forma peculiar a obra de Machado à história brasileira de seu (= de Machado) tempo, mostra também a cidade na constituição do sistema literário, para falar agora como mestre Antonio Candido.

A relação que Astrojildo estabelece entre o ensaio "Instinto da nacionalidade", de Machado, publicado em 1873, e suas campanhas em prol da criação da Academia Brasileira de Letras, toca no que parece ser a mais inovadora leitura que se possa fazer de Machado pós Schwarz e pós Gledson, bibliografia citada por MCF. Muito embora MCF não aprofunde a questão e também descontando que sua análise da Academia é temperada de um certo idealismo, seu livro parece tocar num ponto nevrálgico da literatura, qual seja, as várias malhas da rede institucional pelas quais ela se constitui e se expressa. É aí que se abre caminho para pensar-se a crítica literária, da qual o machadiano "Instinto de nacionalidade" é um bom exemplo, como contraponto discursivo da instituição, com sede e estatutos, que foi (e que continua sendo) a Academia Brasileira de Letras.

Registrar os desencontros entre Octavio Brandão e Astrojildo Pereira, como MCF registra, é o pedágio para a discussão dos desencontros habituais entre vanguardas estéticas e vanguardas políticas.

Mas será que esta discussão já não tem agora alguns fios de cabelo branco e um andar quase trôpego? Não fica um pouco difícil, neste começo de século XXI, continuar considerando como vanguarda aquela seqüência de ismos (como Futurismo, Surrealismo e Dadaísmo, para mencionar apenas três dos movimentos que MCF comenta), que pretenderam romper com o caráter figurativo (no caso das artes visuais) ou linear (no caso da literatura) que os precedeu? Num certo sentido, vários destes traços proclamadamente rompidos naqueles esfuziantes tempos modernos continuam saudáveis e férteis neste terceiro milênio, para além (é claro) de bienais e da crítica universitária.

A partir da já bastante conhecida excomunhão das então chamadas estéticas de vanguarda do paraíso-comunista-em-construção, o texto aponta a indesejável instrumentalização da arte, proposta em nome da qual AP sofreu puxões de orelha e recebeu cartão vermelho de seus superiores.

Com isso, o livro de MCF se encaminha para o epílogo, analisando o ainda atualíssimo texto de Astrojildo, também de 1944, "Posições e tarefas da inteligência", que encerra o livro Interpretações. Texto sem dúvida programático e pragmático, é ele que inspira os últimos retoques no perfil de Astrojildo.

Se o discurso da ação, na primeira parte do livro e nos primeiros anos de Astrojildo, levou-o para fora dos quadros do PCB, a ação do discurso, na tese de MCF, o traz para dentro da história, naquela esquina onde história, política e cultura confundem seus fios.

Assim como estão longe de terminarem as discussões do desencontro entre vanguardas políticas e vanguardas estéticas, estão também longe de terminarem as tergiversações relativas às contradições entre militância política e militância cultural. Saramago, para ficarmos num vernáculo contemporâneo, bem antes de ser prêmio Nobel e unanimidade ocidental, sofreu cotoveladas abaixo da cintura.

De qualquer maneira, é no despretensioso texto de Astrojildo, "Posições e tarefas da inteligência", que o leitor de nosso tempo - e com mais razão o leitor que chega a Astrojildo através de MCF - encontra uma agenda até hoje atual.

Se, textualmente, este ensaio é ponto de chegada, a participação de AP no I Congresso Brasileiro de Escritores, em 1945, é sua contrapartida institucional. Representa o reconhecimento da liderança intelectual de Astrojildo, um dos redatores, ao lado de Caio Prado Jr. e de Alberto Passos Guimarães, da "Declaração de princípios" do Congresso.

Relacionando as idéias que nortearam a redação deste documento com as idéias expressas por Astrojildo em seu texto "Posições e tarefas da inteligência", o livro de MCF termina fazendo uma leitura de movimentos culturais dos inícios dos anos sessenta (Cinema Novo, Arena, Oficina, Paulo Freire) como a concretização daquilo que AP havia traçado como agenda de uma inteligência de esquerda, e acreditando - a meu ver, um pouquinho exageradamente - nas vantagens da universitarização da crítica literária.

É nessa incruenta militância cultural de Astrojildo que MCF se inspira para considerá-lo um revolucionário cordial, numa acepção talvez pouco rigorosa do conceito que Sérgio Buarque de Holanda põe em circulação.

Se, num certo sentido, podem ser inócuas (porque sempre passíveis de retomada e de desconstrução) tentativas muito empenhadas em definir palavras (o que é "revolucionário"? o que é "cordial"?), parece ser mesmo esta - a redefinição de conceitos - uma das arenas de luta e de trabalho do intelectual, para quem fica, não obstante, o alerta de Drummond: "Lutar com palavras / é luta mais vã ..."

Resumindo e concluindo: um dos valores maiores deste livro de MCF é tanto o rigor e a exaustividade com as quais ao longo de seu texto ele vai esculpindo um Astrojildo inteiro e sedutor, quanto o muito que ele revela da concretude institucional da cultura brasileira, no que esta cultura se gestava e era gerida nos desvãos e recantos de movimentos políticos até agora pouco conhecidos .

Ou seja: se é próprio ou impróprio chamar AP de revolucionário, e mais especificamente ainda de revolucionário cordial, é de somenos. De mais, e muito demais, são os caminhos que MCF ilumina para, com bastante verossimilhança, defender sua tese e dar seu recado.

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Nota

[1] Este texto encontra-se transcrito em Idéias. Campinas 2 (1), jan.-jul. 1995.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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