Para pessoas que apresentam hipersensibilidade ao toque e/ou hipersensibilidade auditiva, como as pessoas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), atividades como um corte de cabelo podem se tornar eventos desafiadores, exaustivos e traumáticos. Partindo da escuta ativa das pessoas com TEA e seus familiares, contando com o amparo de informações embasadas pelo contato com profissionais da área da Saúde e com entidades como o Grupo de Apoio a Pais e Profissionais de Pessoas com Autismo (Gappa), que lidam com pacientes e terapias, o Salão Infantil e Barbearia Estação dos Barbeiros em Juiz de Fora, desenvolveu uma forma de atendimento especializado, que busca contemplar as especificidades e necessidades de cada indivíduo.
Para Marcos, que é uma criança com com TEA, o momento de cortar o cabelo, antes de conhecer o serviço especializado, exigia que os pais, literalmente, mantivessem o filho imobilizado. “A gente tinha que segurá-lo”, confidencia a mãe dele, a professora Carolina de Souza Oliveira Machado. A inclusão, segundo ela, consta na comunicação de muitos estabelecimentos, mas na prática, na maioria das vezes, não acontece. “A primeira vez que o meu filho foi no Estação dos Barbeiros, ele não queria nem entrar. O primeiro corte demorou, dois meses, a gente indo toda semana, uma vez por semana. E aí, no terceiro corte, o último que nós fizemos, o meu filho aceitou até usar a máquina, fazer o pezinho do cabelo. Então assim, é uma evolução que emociona”, relata.
Nesse contexto, há aspectos que fazem a diferença, além da paciência e do carinho com a pessoa, há também a preparação do ambiente em que o atendimento será realizado. “O salão é um lugar que a gente sabe que pode ir sem preocupação, porque eles recebem tanto famílias típicas quanto atípicas. A gente fica tranquilo, porque o meu filho vai poder ser ele mesmo. Se ele tiver que correr, ele vai poder correr. Se ele tiver que soltar os gritinhos deles, ele vai poder soltar. E não vai ter olhares de reprovação, porque ali nos recebem respeitando a individualidade de cada um”, detalha Carolina.
O tempo de adaptação também é algo que a mãe ressalta como fundamental para esse trabalho. “Respeitar o tempo do autista e fazer tudo de maneira lúdica, sem forçar nada, ou segurar em momento nenhum, é onde a inclusão acontece.” Para ela, essa forma de trabalhar é um exemplo do que deveria ser adotado em outros atendimentos, como o de dentistas, em restaurantes, professores, entre outros.
A abordagem é fruto de uma caminhada que começou em 2013, quando teve início o processo de capacitação da equipe do salão. Os profissionais se envolveram em palestras, entrevistas, cursos, para que fosse possível compreender todos os aspectos que envolvem os cuidados voltados para o público com TEA. “Aprendemos com cada pessoa que vem aqui”, ressalta Thamires Toledo, jornalista e uma das proprietárias do empreendimento, que explica que a preocupação, depois, se ampliou para pessoas com diferentes deficiências e demandas especiais. O que reforça, segundo ela, a necessidade de busca constante por atualização e aprimoramento do trabalho.
Depois de promover adaptações e adequações a partir dos apontamentos feitos por familiares e por profissionais, a equipe abriu uma segunda unidade em 2018, no Bairro São Mateus, em que o espaço foi montado para atender pessoas que convivem com vários tipos de deficiência, a partir das demandas de acessibilidade que apresentam. O que envolve desde as cores, brinquedos e todo o equipamento utilizado dentro do estabelecimento. “Isso aumentou muito a demanda de atendimentos de pessoas atípicas, tanto adultos quanto crianças. Toda pessoa possui ali as suas singularidades, as suas características próprias. A partir do momento que a gente respeita e compreende quais são as necessidades de cada pessoa, principalmente de cada autista, a gente começa a trabalhar em cima delas”, explica Thamires.
O atendimento começa com um cadastro com o levantamento das informações sobre a pessoa que vai ser atendida.
Na sequência, é o momento do contato do profissional com o cliente, onde todas as informações se unem com um momento de brincadeira, conhecimento e familiarização, onde há a criação de um vínculo de confiança. “É bem parecido com as terapias. Em alguns casos, às vezes o pai ou a mãe chega querendo que já corte, achando que o corte de cabelo vai ser de forma tradicional. Vai chegar, sentar na cadeira, cortar o cabelo e ir embora. E não é assim que funciona, principalmente com uma pessoa autista, particularmente para uma criança, que ainda está descobrindo e entendendo as emoções.“
Thamires detalha que as pessoas que chegam com traumas ao salão passam por essa adaptação que, em alguns casos, são divididas em sessões, onde o profissional vai trazer elementos como movimentos, ações, que vão criar esse sentimento de pertencimento, familiarização, para quebrar essas barreiras, conquistar a confiança e o indivíduo permitir esse contato.
“É proibido segurar”
Obrigar alguém que sente barulhos, estímulos sensoriais de maneira mais intensa e sensível a passar por experiências com toques e ruídos altos e ainda exigir que ela contenha suas reações e emoções é, como afirma Thamires, uma agressão. Por isso, o método desenvolvido no salão proíbe que as pessoas sejam seguradas.
Isso significa, em muitos momentos, cortar o cabelo em movimento, no chão, dentro de uma piscina de bolinhas. Para que o atendimento seja plenamente realizado, é preciso que o cliente esteja se sentindo à vontade. “Colocamos elementos da terapia cognitiva comportamental, que é algo que a gente vem aprendendo e estudando cada vez mais. Mostrar pra eles que a ideia do cortar cabelo, a gente sempre explica pros pais, vamos trocar a palavra cortar cabelo por cuidar do cabelo, fazer algumas mudanças no que diz respeito à cognição, ao entendimento, pra que ele possa entender que na vida ali, no dia-a-dia, na realidade, aquilo não dói. É legal, pode ser divertido sim, não precisa ser um momento traumático. E isso tudo faz parte desse momento de adaptação de quebra de traumas.”
Curso
O atendimento vai além da obrigação de corte de cabelo. De posse das informações que levantaram, os profissionais conseguem, até mesmo orientar pais que obtiveram o diagnóstico de TEA dos filhos recente. “Temos parceria com o Gappa, né, com algumas clínicas também, profissionais, para poder também ajudar esses pais a dar o suporte. A gente ajuda também, passando informações, a gente tem grupos, em nossas redes sociais também a gente dá dicas, a gente tem um canal do YouTube onde a gente também dá esse suporte com dicas”.
O salão está em desenvolvimento de um curso on-line para que profissionais, não só barbeiros e cabelereiros, mas também comerciantes e outros empreendedores possam realizar um atendimento especializado, será lançado no fim de outubro e terá, também, lições presenciais. “O intuito desse curso fazer com que mais profissionais possam adaptar esses atendimentos inclusivos em seus espaços e possam ter menos dificuldade para fazer isso do que a gente teve. Porque a gente precisou percorrer um longo caminho para poder chegar nesse atendimento”, afirma Thamires.
Por meio do curso, a equipe espera que a experiência adquirida no desenvolvimento dessa forma de atendimento possa ajudar outros empreendedores a modificar suas estruturas físicas e a melhorar o atendimento. Não só de pessoas com TEA, mas com outros tipos de transtornos e deficiências. Algumas sugestões e orientações nesse sentido já podem ser acessados nas redes sociais da iniciativa.
Outras iniciativas
Outras iniciativas como a sessão de cinema adaptada, que ocorreu neste sábado (21) no Shopping Jardim Norte, também buscam oferecer mais opções de lazer para o público TEA. O filme "Trolls 3 – Juntos Novamente”, foi apresentado dentro da ação que integra o projeto Cine+Azul”, que traz os filmes com o som mais baixo, iluminação especial aconchegante, temperatura amena e agradável e liberdade para que o público possa andar, dançar e se divertir como se sentir mais confortável. A iniciativa mantém os valores das entradas vigentes do dia. Um acompanhante da pessoa com autismo terá direito à meia-entrada. Os ingressos antecipados para as sessões adaptadas podem ser adquiridos presencialmente ou on-line, através do site.
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