Conto, em dois cap?tulos, baseado em fato real, acrescido de pitadas de fic??o
Cap?tulo 2
- Zezinho, vou te dar um conselho - Walmiro, o baixista que se tornara meu amigo e confidente, foi logo dizendo ao chegarmos para trabalhar, sem ao menos um pre?mbulo de boa noite ou algo assim: - Se eu fosse voc?, largava do p? da Charlene. Evitava at? olhar pra ela.
Foi no dia seguinte ao que Charlene, ou melhor, Regina e eu nos encontramos para o passeio no Parque Mariano Proc?pio, quando ela me revelou as dificuldades de sobreviv?ncia da fam?lia - m?e e irm?o menor - ap?s a morte do pai, e de como veio tentar a vida em JF, no rastro de uma amiga. Elas eram vizinhas, ?ntimas desde os tempos em que dividiam carteira no prim?rio. Os primeiros passos na vida dita f?cil foram dados em Copacabana, com essa mesma amiga, que lhe revelou a maneira de ganhar, num fim de semana, at? dez vezes mais o sal?rio como balconista da Loja Slopper, seu primeiro emprego, logo ap?s completar 18 anos. Quando ficou dif?cil esconder a desgastante vida dupla em casa, a forma mais segura foi largar o emprego na loja e se mudar para Juiz de Fora. Sempre orientada pela amiga, contratada pelo dono do Moulin Rouge para arregimentar as garotas da boate, Regina inventou a hist?ria do convite para ser estilista de uma malharia famosa em Juiz de Fora - a cidade tinha centenas delas -, que lhe daria um sal?rio muito maior do que o da Slopper. Dessa forma, obteve o consentimento da m?e, com o argumento refor?ado de que Juiz de Fora ? pertinho do Rio, o que facilitava a coisa.
Foram quatro horas em que a ouvi falar da inf?ncia, dos problemas e dramas familiares at? se decidir pelo sacrif?cio que era se entregar a quem pagasse o mich?, e o envolvimento com o cara, conhecido como Duque, dono de uma ag?ncia importadora de autom?veis, rico, casado, mas mulherengo e bo?mio como ele s?. Caiu de amores por Charlene logo que chegou ao Moulin Rouge e a viu, na sua primeira noite, express?o meiga e insinuante, corpinho bem torneado e, diferentemente das outras, discreta no vestir, na maquiagem, na abordagem e no tom de voz t?mido. Fora da boate, dificilmente algu?m adivinharia a sua profiss?o pela apar?ncia. Era esse o conjunto que atraia o desejo de todos. Duque exigiu exclusividade de Charlene a Castrinho, o dono da boate. Quando ele comparecesse - e isso era quase todas as noites - ningu?m mais deveria merecer a aten??o de Charlene.
Seguindo as normas da casa, eu e ela apenas nos cumpriment?vamos ao chegar para o trabalho ou ao fim das fun?es, como todos faziam. Exceto nos olhares furtivos entre n?s sinalizando a atra??o m?tua, em nada deix?vamos escapar que est?vamos quebrando ou poder?amos vir a quebrar as regras estabelecidas pelo exigente e rigoroso Castrinho: nenhum funcion?rio deveria se envolver com as garotas, sob pena de ambos serem postos no olho da rua. E como eu estava bastante satisfeito com a experi?ncia que ia adquirindo no Conjunto Rubi - fundamentais as li?es do pianista e nosso l?der L?cio e de Walmiro -, controlava o instinto, que alterava at? as batidas do cora??o ao v?-la como par constante de Duque em suas extravag?ncias na mesa ou saindo abra?ados, ap?s uma noite de bebedeiras.
At? que ocorreu a ousadia do bilhete convidando-a para o passeio, que ela aceitou, morrendo de medo - como me revelou depois. Por quatro horas, nos demos a conhecer melhor, mas sem outras intimidades - exceto o do beijinho discreto na despedida, no ponto do bonde, crescendo a ansiedade em rev?-la logo no dia seguinte no trabalho. E foi envolvido nesse estado de esp?rito que cheguei para o trabalho e ouvi o conselho alarmista de Walmiro.
- Eu posso saber a prop?sito de que nem devo olhar pra ela? - eu perguntei enquanto acertava o la?o da gravata diante do espelho, disfar?ando a expectativa pela resposta.
- H? um rumor por a? que a Charlene levou uma surra do Duque e que o motivo ? que ela foi vista ontem com algu?m l? pelos lados do Mariano... e que esse algu?m era muito parecido com voc?. A surra foi t?o brutal, que ela est? internada num hospital. E mais: ele vai tomar satisfa??o contigo.
- Alguma coisa me diz - interveio L?cio -, que breve terei de contratar novo baterista. Nessa briga, o Castrinho n?o vai pensar duas vezes para tomar um partido do Duque. A qualquer hora ele chega, e... Bem enquanto isso, vamos trabalhar, normalmente.
Uau! Era muita amea?a ao mesmo tempo! Estava na cara que por mais discreto a gente tivesse sido no passeio, algum passageiro no bonde, conhecido de Duque, nos viu, durante a despedida, botou a boca no trombone, e o resultado ? que Regina foi espancada ferozmente e l? estava eu amea?ado de perder o emprego e at? a pr?pria vida. Todos sabiam que Duque era perigoso, do tipo covarde, marcado por um assassinato nas costas, do qual conseguiu se livrar gra?as a um advogado esperto que convenceu ? Justi?a que fora leg?tima defesa.
A cabe?a estava em rodopio ao darmos in?cio ? noitada de sempre. A partir da?, os acontecimentos foram se desenrolando de maneira muito r?pida. Castrinho chegou e fez um sinal para L?cio ir falar com ele no pr?ximo intervalo. Em seguida, percebi que as pessoas da casa - gar?ons e as mulheres - cochichavam entre si e vez ou outra lan?avam olhares sobre mim, o que fez com que me desconcentrasse v?rias vezes, a ponto de quebrar o ritmo, o que me valeu censuras de Walmiro e de L?cio.
Por volta das oito e meia da noite, o ambiente j? estava mais movimentado do que o habitual. Ap?s a primeira rodada de m?sica, que durava cerca de uma hora, L?cio foi falar com Castrinho, e retornou com a not?cia esperada: aquela seria aminha ?ltima noite no Moulin Rouge. Ao fim da madrugada, acertaria minhas contas, e a partir da? estaria dispensado do Conjunto Rubi. Motivo: quebra da regra n?mero um, que era a proibi??o no relacionamento com as garotas. Decidi que, se era assim, me considerava despedido ali mesmo, n?o esperaria acabar a noite. O conjunto seguiria sem baterista, como n?o sei. Castrinho que arrumasse um substituto. Procurei saber de Regina, mas ningu?m soube informar onde ela fora internada.
A cabe?a estava em rodopio ao darmos in?cio ? noitada de sempre. A partir da?, os acontecimentos foram se desenrolando de maneira muito r?pida. Castrinho chegou e fez um sinal para L?cio ir falar com ele no pr?ximo intervalo. Em seguida, percebi que as pessoas da casa - gar?ons e as mulheres - cochichavam entre si e vez ou outra lan?avam olhares sobre mim, o que fez com que me desconcentrasse v?rias vezes, a ponto de quebrar o ritmo, o que me valeu censuras de Walmiro e de L?cio.
Por volta das oito e meia da noite, o ambiente j? estava mais movimentado do que o habitual. Ap?s a primeira rodada de m?sica, que durava cerca de uma hora, L?cio foi falar com Castrinho, e retornou com a not?cia esperada: aquela seria aminha ?ltima noite no Moulin Rouge. Ao fim da madrugada, acertaria minhas contas, e a partir da? estaria dispensado do Conjunto Rubi. Motivo: quebra da regra n?mero um, que era a proibi??o no relacionamento com as garotas. Decidi que, se era assim, me considerava despedido ali mesmo, n?o esperaria acabar a noite. O conjunto seguiria sem baterista, como n?o sei. Castrinho que arrumasse um substituto. Procurei saber de Regina, mas ningu?m soube informar onde ela fora internada.
Passei a noite no corredor, disposto a esperar pela alta e encaminh?-la ? casa de meus pais. Depois, procuraria L?cio para receber o que tinha direito. Ap?s a recupera??o dos hematomas, a acompanharia de volta ao Rio, ? casa da m?e.
Despertei com um cascudo na cabe?a. A claridade da manh? invadira o corredor e pude ver Duque ao lado de dois capangas e de dois policiais fardados. Fui erguido pelos bra?os e encaminhado at? uma r?dio-patrulha na entrada do hospital. Meus protestos e pedido de explica?es eram solenemente ignorados: "Mas ele disse que era irm?o dela". "Que irm?o nada! Isso ? um pilantra, vagabundo!" - foi tudo que eu ouvi antes de ser jogado nos fundos da viatura.
Na sala do delegado, este estudou-me da cabe?a aos p?s, antes de iniciar o interrogat?rio a partir de meu nome e endere?o.
- Jos? R. B., Zezinho do Tarol e agora Zezinho Batera, 19 anos, m?sico de zona, que mente pra entrar num hospital. Por que?
Antes que eu aprontasse a resposta, o delegado atendeu o telefone ao primeiro toque:
- OK, meu amigo, fique tranq?ilo. Ele vai ter o corretivo que merece. Est? bem. Um abra?o. - Desligou o telefone e ordenou ao guarda parado ao meu lado: - Leve-o para a sala 171.
De nada valeram novamente meus protestos e pedido para ligar para algu?m. Fui fechado numa sala sem janelas, iluminada por uma l?mpada pendendo do teto, uma cadeira e uma pequena mesa e duas camas com colch?es carcomidos - numa delas, um sujeito ressonava. Despertou com a minha chegada e foi logo perguntando qual a minha especialidade. N?o entendi e ele explicou: a sala ? chamada 171, porque ? o n?mero do C?digo Penal, que prev? puni?es aos estelionat?rios. Como eu expliquei a ele que n?o havia aplicado golpe em ningu?m, o cara me tranq?ilizou concluindo que fui levado para ali, apenas por pouco tempo.
Nada restando fazer, exausto, entreguei-me a um sono cheio de pesadelos. De fato, como o prisioneiro da 171 previra, por volta de meio-dia, fui encaminhado ? sala do delegado, onde se encontravam meus pais, Walmiro e L?cio. Minha m?e correu a abra?ar-me, enquanto meu pai se limitava a um olhar severo e abatido. O delegado fez um discurso calhorda, tentando se passar por boa gente, compreens?vel e devolveu-me ? liberdade, como um ato de generosidade.
Em casa de meus pais, ap?s o almo?o, durante o qual meu pai foi quem mais falou - "volte a estudar para ser algu?m na vida e n?o um m?sico sem futuro algum" -, para constrangimento de L?cio e Walmiro, que a tudo ouviram em sil?ncio respeitoso, recolhi-me ao meu quarto com os dois e comuniquei-lhes a decis?o: ir embora da merda desta cidade, no primeiro ?nibus, assim que fizesse a mala. Pra onde? O Rio, onde as coisas estavam acontecendo.
Walmiro anotou um bilhete de recomenda??o a um primo, tamb?m m?sico, e o endere?o aonde deveria procur?-lo: rua Barata Ribeiro 200.
Com a grana da ?ltima semana de trabalho, que L?cio me pagou, despedi-me de minha m?e aos prantos e de meu pai emburrado, e rumei para a rodovi?ria. Seis horas depois, por volta das dez da noite, l? estava eu batendo no apartamento do primo de Walmiro, que me recebeu com a maior simpatia, desculpou-se pelos espa?os m?nimos e do desconforto que seria ter de dormir num colchonete num canto. Depois, convidou-me a acompanh?-lo at? o Beco das Garrafas, a alguns quarteir?es dali, onde ele trabalhava como baixista. Era um local de dimens?es m?nimas, chamado Litlle Club, por onde passavam m?sicos de v?rias categorias, dando canjas a troco de uma dose de u?sque. Sentei-me espremido numa mesa onde estava um pianista de Niter?i, que tamb?m acabara de chegar. Meu amigo nos apresentou. Trocamos um aperto de m?o, ele murmurou "muito prazer, S?rgio Mendes" e lamentou que o baterista que o acompanhava nas esticadas pela noite resolvera ficar no outro inferninho, o Bottles, atr?s de um rabo-de-saia. Adquiri coragem, e propus-me a acompanh?-lo, se me permitisse, tremendo de medo e de emo??o pela minha primeira investida na noite carioca. O cara topou, e me sai muito bem nas tr?s m?sicas que ele atacou - Tristeza de n?s dois, Tender is the night e Dindi, Felizmente, por coincid?ncia, a primeira e a ?ltima faziam parte, do repert?rio do Rubi; e a segunda, num andamento jazz?stico, me sai bem e o cara aprovou, assim como os clientes.
Corta para seis anos depois: Los Angeles, Calif?rnia - o conjunto S?rgio Mendes e o Brasil 65 estourava na parada de sucesso norte-americana. Eu era o seu baterista. Mud?ramos para l? em 1964, quando eu j? me impunha como um nome respeitado entre os bossa-novistas/jazzistas cariocas. Algum tempo depois, tive um atrito com S?rgio Mendes, por causa de uma bebedeira minha, fora de hora, e me desliguei do Brasil 65. Fui convidado a trabalhar num conjunto de jazz, sob a lideran?a de Sonny Rollins, que encabe?ava a lista da Billboard como sax-tenor. Foi o primeiro de uma s?rie de contratos para atuar ao lado de m?sicos de jazz famosos - at? 18 de fevereiro de 1989, quando tive um enfarte fulminante, solitariamente, num quarto de hotel, em New Orleans, por excesso de bebidas alco?licas, cigarro e otras cositas m?s.
Morri exatamente 30 anos ap?s o affaire com Charlene ou Regina, na minha cidade natal, Juiz de Fora...
Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!