Ana Rosa Picanço Moreira* 16/05/2015


Brincar e desenvolvimento infantil: uma relação potente

E a história da brincadeira daquelas crianças, contada pelo poeta da infância Manoel de Barros em seu livro Exercícios de ser criança, começava assim: "Meu irmão pregava no caixote duas rodas de lata de goiabada. A gente ia viajar." Esse era o início da brincadeira de duas crianças que iam viajar para a cidade num carro de boi, puxado por Maravilha e Redomão. A construção criativa do carro de boi pelo irmão mais velho da menina já era a própria brincadeira, que se desdobrava num percurso aventureiro no quintal da casa das crianças. Para chegar à cidade era preciso atravessar um rio. Mas na travessia, o carro afundou e os bois morreram. As crianças só não morreram, explicou a menina, porque o rio era inventado. E aí, a brincadeira acabou. Vejam só a potência de um caixote, duas latas de goiabada e muita imaginação!

As brincadeiras infantis geralmente começam assim: objetos aparentemente despropositados, como dizia Manoel de Barros, são encantados pelo desejo e imaginação das crianças e ganham novos formatos, transformando o mundo real em mundo imaginário, um mundo onde os desejos são realizados por meio da imaginação.

Para a maioria dos adultos as crianças estão apenas brincando, isto é, elas estão passando o tempo e se distraindo, descompromissadas e alheias ao mundo real. Não estão fazendo absolutamente nada. Infelizmente há desvalorização da brincadeira por parte de muitos adultos desavisados.

Na contramão desta ideia, a psicologia tem chamado atenção para a importância do brincar no desenvolvimento infantil. A abordagem histórico-cultural da psicologia, representada pelo pensamento do teórico russo Lev Vigotski (1896-1934), nos inspira a defender que a brincadeira de faz de conta contribui significativamente para o desenvolvimento da esfera intelectual e afetiva da criança porque ela abre portas para o desenvolvimento de uma importante função psicológica superior tipicamente humana: a imaginação.

A imaginação é a gênese de toda atividade criadora humana. A base da atividade criadora é a capacidade de fazer uma construção de elementos, combinando aquilo que já existe de maneiras novas. Nesse sentido, a atividade criadora mantém uma relação estreita com a realidade vivenciada, na medida em que combina elementos de experiências anteriores dando-lhes um novo sentido àquilo que já existe. A imaginação se apoia na experiência e a experiência se apoia na imaginação. Portanto, o processo criativo não é uma faculdade exclusiva dos artistas, mas, ao contrário, é uma atividade inerente à condição humana. Podemos identificar a emergência dos primeiros processos de criação quando as crianças montam as suas brincadeiras. Ao construírem o enredo, as personagens e o cenário, as crianças introduzem elementos novos, que não estavam presentes nas experiências passadas, reinventando a realidade para dela se apropriarem.

Assim, brincadeira, longe de ser um mero passatempo, é fonte de desenvolvimento da criança a partir de dois anos de idade. Por isso, ela é considerada uma atividade guia. É ela que é a responsável por guiar o desenvolvimento psicológico da criança, pois que carrega elementos estruturais que impulsionam o desenvolvimento gerando neoformações.

Se nos dois primeiros anos de vida da criança há uma tendência para a satisfação imediata de seus desejos e impulsos, no momento posterior, mediante o uso da linguagem, que permite o amadurecimento das necessidades não realizáveis de forma imediata, a criança começa a postergar a realização de seus desejos, agindo no plano simbólico. É, portanto, a linguagem que torna possível a brincadeira de faz de conta, a criação da situação imaginária. A criança muito pequena não consegue distinguir a situação imaginária da situação real porque a imaginação está ausente na sua consciência. Isso faz com que ela aja em função daquilo que vê. Ao passo que na criança pré-escolar, o exercício de brincar possibilita a emergência da imaginação, reinventando a realidade e se libertando dos significados do mundo apresentados pelos adultos. Combinando situações vividas ou histórias ouvidas, a criança começa a tomar consciência das relações que existem no mundo. Estamos falando da capacidade de criação que a criança desenvolve nessa etapa da vida. Ao desejar manipular os objetos com autonomia, a criança começa a dissociar a palavra do objeto, fazendo com que um simples caixote se transforme num carro de boi, como na história inventada por Barros.

Na brincadeira uma ação substitui outra ação, assim como um objeto substitui outro objeto, não no campo visual, mas, agora, no campo semântico. Isto quer dizer que a criança não atua sobre a forma do objeto, mas sim sobre o significado do objeto, atribuindo-lhe um novo sentido que atenda às suas necessidades.

Separar o significado da palavra do objeto não é tarefa fácil para a criança. A brincadeira cria um contexto de possibilidades para a realização desse feito tão complexo, que exige da criança a tomada de consciência de experiências passadas e das regras de comportamento – que na vida real, muitas vezes, passam despercebidas –, a composição estética e lógica do enredo, personagem, cenário, falas, gestos e movimentos, entre outros aspectos. Para Vigotski (2008), a brincadeira cria uma zona de desenvolvimento proximal na criança, isto é, ela possibilita que a criança dê um salto acima do seu comportamento atual. Desse modo, a criança age num nível de desenvolvimento mais elevado do que o habitual.

A brincadeira vai ganhando novos contornos na medida em que a criança vai se desenvolvendo. Inicialmente, a criança cria uma situação imaginária muito parecida com a situação real (vivenciada ou observada). Por exemplo, a criança segura a boneca, tal como a mãe faz com ela; a criança coloca a colher na boca da boneca, assim como a mãe faz quando a alimenta etc. Nesse caso, a brincadeira se refere mais a uma recordação do que uma imaginação. Mesmo assim, a criança nunca reproduz exatamente a situação como ocorreu na realidade. Essa recordação traz marcas do processo criativo na medida em que a lembrança é uma interpretação da situação vivida ou observada. Nas palavras de Vigotski (2009, p. 17), trata-se de "uma reelaboração criativa de impressões vivenciadas."

A vontade de fazer o que os adultos fazem leva a criança a inventar situações imaginárias que lhe permita fazer e ser tudo o que imaginar. Assim, para brincar a criança precisa de liberdade para escolher os elementos que vão compor a cena: o enredo, a personagem, o cenário etc. No entanto, como adverte o psicólogo russo, essa liberdade é ilusória, pois toda brincadeira tem regra. A criança se baseia nas regras que existem no mundo real, e as recria. Para que a brincadeira aconteça, é preciso que a criança siga as regras da brincadeira. O cumprimento da regra é fonte de satisfação da atividade de brincar.

A brincadeira de faz de conta é uma atividade séria na qual a criança aprende e se desenvolve: ela desenvolve o pensamento abstrato, aprende as regras sociais, aprende a controlar as suas vontades e aprende uma nova forma de desejar.

Enfim, quando brincam, as crianças dão um salto fenomenal no seu desenvolvimento. Por isso, é preciso respeitar os tempos e os espaços do brincar e disponibilizar à criança objetos diversificados de modo que ela possa criativamente construir conhecimento de si e do mundo e dar sentido à sua vida.


Professora Adjunta da Faculdade de Educação/UFJF

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