Entrevista com Roberto Menescal

Daniela Aragão Daniela Aragão 9/11/2018

Daniela Aragão: Como começou a descoberta do som em sua vida?

Roberto Menescal: Quando eu tinha cerca de onze anos, meu pai me deu uma gaitinha de plástico chamada Dó ré mi e outra para o meu irmão, que tinha uns oito anos. Meu pai chegou à noite em casa e eu lhe mostrei (cantarola) “Oh Suzana”. Ele falou: “- quem te ensinou isso?” Respondi : -ninguém, não era para tocar?  Ele falou: “- é, mas quem te ensinou?”. Então chamei meu irmão Renato, para pegar também sua gaitinha. Papai comentou que eu levava jeito para música ao ver que eu peguei sozinho um instrumento e saí tocando.

Pouco tempo depois do acontecimento da gaitinha, nós nos mudamos para Copacabana e no mesmo prédio morava uma tia minha, que era professora de piano. Papai me colocou para estudar piano e assim começou tudo.

Daniela Aragão: Você participou da gênese da Bossa Nova e frequentou o apartamento de Nara leão. Como se deu todo o percurso?

Roberto Menescal: Eu estava prestes à completar quinze anos. Meus pais não eram de dar festas de aniversário. Havia uma vedete de teatro, Mara Rúbia, que era mãe de três amigos meus. Ela tinha um apartamento enorme em Copacabana, uma espécie de cobertura, composta por um salão que estava totalmente vazio. Mara falou para mim “-Pode pegar o salão, convide todas as pessoas, que vamos fazer uma festa pra você”. Tínhamos como convidados, por volta de uns vinte e três meninos e apenas três meninas. Saí então convidando as meninas que eu via passar ali na minha rua. Uma delas era a Nara Leão. Falei: - olha, você sabe quem eu sou? Nara disse que não sabia. Eu achava que todo mundo me conhecia em Copacabana. Comentei com Nara sobre a minha festa e a convidei. Ela disse que iria e de fato apareceu. Eu antes a via passar pela rua, com aquele uniformezinho de colégio, sainha azul, blusa branca e uma gravatinha. De repente, aparece aquela menina toda vestida de festa, já uma moça. Fui saber logo depois, que ela tinha apenas doze anos de idade, mas sempre foi muito evoluída culturalmente e fisicamente .

Perguntei a ela o que fazia na vida e Nara me disse que além do colégio era estudante de piano há três anos. Então eu pensei, oba, doze anos mais três de cultura, somam 15. Assim eu justificava a idade que eu tinha. Dançamos a noite toda. Daí para frente comecei a frequentar a casa dela. Nara me ensinou as primeiras coisas de jazz. Ouvíamos discos das bandas de jazz.

Daniela Aragão: Uma amizade que foi se fortalecendo, certamente com uma forte admiração mútua.

Roberto Menescal: Com certeza. Ficamos muito amigos, quando eu tinha dezessete anos e ela quatorze, nós saímos de férias. Eu viajei para Vitória, cidade em que nasci, e ela para Campos do Jordão, em São Paulo. Assim que retornamos eu falei – Nara estou tocando violão, ela falou “- eu também”. Mais uma razão que encontramos, para prosseguirmos com nossos encontros.  Começamos a nos frequentar, então chama um, chama outro que toca violão e a roda foi crescendo. Conheci Carlinhos Lyra e no contexto fui também apresentado ao Ronaldo Bôscoli, meu futuro parceiro. Fomos fazendo aquela turminha, que dois anos mais tarde foi chamada de “Turma da Bossa Nova”.

Daniela Aragão: Certamente você deve se recordar de momentos singulares na partilha da criação ao lado de Tom Jobim, Carlos Lyra e Vinícius de Moraes.

Roberto Menescal: Realmente eu tive muita sorte de estar junto dessa turma toda naquele começo da gente. Muito tempo depois, tivemos vários tipos de contatos, profissionais ou não. O Tom sempre foi minha grande paixão e eu sonhava em conhecê-lo. Por volta dos meus dezoito, dezenove anos, eu procurava ir a todos os lugares em que o Tom poderia estar. Eu ía pra lá e pra cá e ficava assim tão extasiado, que acabava tomando uma Cuba Libre, bebida bem comum da época.  Quando o Tom chegava, eu já tinha sido levado para casa bebinho. Até que um dia, eu e o Carlinhos Lyra abrimos uma escolinha de música, nós ensinávamos violão para as mocinhas todas da Zona Sul.

Tom certa vez apareceu à noite em nossa escola e me chamou para gravar com ele a trilha do “Orfeu do Carnaval”. Eu fui, mas super com medo, nervoso mesmo. Foi muito bacana, pois Tom no final disse: “- Vamos até ali que eu quero conversar com você”. Eu falei: - algum problema Tom? Ele disse : “Não, quero acertar com você o cachê”.  -Tom, você acha que eu iria aceitar algum cachê seu pra tocar? Ele falou: “- mas foi trabalho”. Eu disse: - Tom, não foi trabalho, mas um dos maiores prazeres da minha vida. Eu acho que vou te perguntar quanto você quer de cachê. Então ele falou: “- tudo bem, você vai jantar comigo”.

Tom me convidou para um restaurante em Copacabana e logo veio me perguntando sobre o que eu fazia na vida. Contei-lhe que eu iria fazer vestibular para arquitetura, ou tentar uma carreira no Banco do Brasil ou Marinha. Meu pai me dizia, que era preciso eu tentar alguma dessas opções, para garantir minha vida.

Tom me perguntou se eu queria ser músico, e eu de imediato respondi que sim. Daí ele veio com sua frase, que foi definitiva para minha decisão: “- Larga tudo e vai ser músico”. Tom é meu herói e é a ele que eu peço perdão pelos meus pecados até hoje.

Daniela Aragão: Um de seus constantes parceiros foi Ronaldo Bôscoli. Como se formou essa parceria?

Roberto Menescal: O Bôscoli foi o meu parceiro mais constante, devemos ter perto de umas duzentas composições juntos. Não tenho noção precisa do número de canções que temos em parceria. Conheci o Bôscoli numa reunião de violões, eu estava começando a tocar e o convidei para ir à casa de Nara. Ele falou que iria, mas não apareceu. Passou-se um ano, eu estava na praia e topei ao acaso com Bôscoli. Perguntei : - lembra de mim? Ele respondeu : “- Lembro, você me convidou para ir na casa da menina”.

Eu lhe disse que o convite estava de pé. Bôscoli então finalmente compareceu e passou a frequentar a turminha da gente. Começou a fazer música com o Carlos Lyra. Era impressionante, pois saía uma música por noite. Toda noite nascia uma coisa nova, uma música fresquinha. Foi assim durante um tempo, até que o Carlos Lyra deu um bolo nele. Falei: - Cara, tenho uma música aqui. Fizemos uma música fraquinha que se chamava “Zoeira de Pombo”. Depois fizemos outra, também bonita, mas bem fraquinha chamada “Luluzinha Bossa Nova”. Na terceira, a gente acertou o passo. Fizemos “Errinho à toa”, daí em diante eu roubei o Bôscoli do Carlinhos Lyra e começamos a fazer música.

Daniela Aragão: Um traço destacável em sua rica trajetória é o seu notável talento e maestria para acompanhar cantoras. Sempre com sua sensibilidade peculiar, para captar as nuances únicas de cada uma. Você trabalhou com Nara Leão, Elis Regina, Wanda Sá, Leila Pinheiro, Fernanda Takai...

Roberto Menescal: Nara foi a irmã que eu não tive. Estávamos todos os dias juntos naquela época. Depois ela viajou, foi para a Europa, casou com o Cacá Diegues. Eu passei a ser diretor artístico da Polygram, onde ela era artista também. A gente se falava muito por cartas, até que ela voltou ao Brasil e a gente começou a tocar juntos. Eu não tocava, passei quinze anos na Polygram, sem tocar, sem compor, só cuidando da carreira dos outros. Somente em 85 resolvi sair da Polygram, mas ainda sem Nara saber. Ela pediu para eu ajudá-la a fazer um disco só de violão e voz, que acabou se chamando “Um cantinho, um violão” e acabei fazendo com ela. Eu tinha falado que eu ia arranjar um violonista bom pra ela. No entanto fomos armando o disco, escolhendo os tons, as introduções. Quando estava tudo pronto eu falei – Agora vou chamar o violonista. Nara falou: “- Roberto, quem vai fazer isso melhor que nós dois?”

Eu e Nara fizemos juntos esse disco. Viajamos para o Japão, fizemos uma excursão, depois voltamos. Eu senti que ela estava com problema, fomos ao médico e soubemos da situação. Aí tem uma história muito longa e muito bacana, eu sei que Nara que teria três meses de vida, viveu mais quatro anos. Fizemos mais quatro discos e mais de cinquenta, sessenta shows. Até que ela resolveu partir. 

Daniela Aragão: Suas composições para o cinema são belíssimas e se tornaram antológicas, a exemplo das trilhas compostas para os filmes de Cacá Diegues, “Joana Francesa” e “Bye Bye Brasil”. Poderia falar especialmente sobre “Bye Bye Brasil”?

Roberto Menescal: Numa época eu fiz várias trilhas de filmes “Vai trabalhar vagabundo”, “Joana Francesa”, cuja música tema era de Chico Buarque. Eu fiz a trilha toda, inclusive o arranjo de Joana Francesa. Fiz também Chica da Silva, peguei a música do Jorge Ben, botei na trilha e compus o restante todo da trilha. “Bye Bye Brasil” foi um convite do Cacá Diegues, para que eu criasse uma trilha junto com Chico Buarque. Não sei porque ele escolheu nós dois, nunca tínhamos feito nada juntos. Eu estava na Polygram e já tinha dez anos que eu não fazia música. Cacá convidou a mim e o Chico Buarque para um jantar e na conversa nos encomendou a trilha.

No dia seguinte eu já tinha feito a música e mandei para o Chico. Chico falou: “- Ah bacana”. A letra era complicada, pois não podia falar de um lugar ou estado do Brasil. Era na verdade uma viagem. Era uma Caravana pelo Brasil. Cacá me encomendou então um arranjo orquestral, para cordas e metais. Quando estávamos mixando, o Chico entrou no estúdio com dezessete folhas tipo A4, tudo escrito de uma hora para outra. Foi cortado mais ou menos um metro de letra e gravamos tudo ali mesmo. Era o último dia possível para podermos gravar. A música deu muito certo. Daí em diante, eu estava na Polygram e não pude mais fazer trilha, embora eu gostasse muito de fazer.

Daniela Aragão: Você, Marcos Valle, João Donato e Carlos Lyra se reuniram para a gravação e apresentação do disco “Os Bossa Nova”. Um time peso pesado. Como é trabalhar com essa turma?

Roberto Menescal: Um produtor nos convidou para fazer um disco. Seria a turma Donato, Lyra, Marcos Valle e eu. Até brinco que chama “Os quatro tenores”. Foi muito legal, fizemos shows em São Paulo, no Rio. Vamos fazer entre o Natal e o Réveillon vários shows no Blue Note. É um pouco difícil organizar tudo, pois cada um de nós tem uma agenda. Então, reunir nós quatro é difícil, tem que ser uma hora que ninguém tenha marcado show. É muito legal, a gente se diverte muito. São companheiros de tantos anos e de tantas histórias.

Daniela Aragão: Como você vê hoje a recepção da Bossa Nova no Brasil?

Roberto Menescal: É estranho porque o Brasil tem a famosa Música Popular do Brasil. É essa que toca, essa a realidade do Brasil, porque o Brasil é mais isso, o sertanejo, o sambão, o funk. Ao invés de atrapalhar a gente, isso ajuda. Nunca trabalhei tanto na minha vida. Também vejo os outros, Carlos, Marquinhos, Donato, Wanda, todo mundo trabalhando muito. São vários Brasis. Esse pedaço do Brasil que sobrou pra gente é muito fiel a tudo que a gente faz e está sempre cheio. Você pode fazer um levantamento de como tem sido os shows da gente. Aí mesmo em Juiz de Fora, a gente fez com a Fernanda Takai e ficou lotado. Só tenho a agradecer a Deus, assim por essa fase da minha vida. Fiz 81 anos semana passada e estar assim, bom demais.

Daniela Aragão: O que é a música para a sua vida?

Roberto Menescal: A música é a minha vida. Quando eu entrei pra música, com dezessete anos em diante, eu achei que se durasse um ano, estaria bom demais. Depois se durar dois, vai ser fantástico. Eu estou aí. Durou sessenta anos. Se durar mais um, vai ser bom demais e está durando, durando um tempo bom. Eu fui muito feliz com tudo o que eu fiz na vida. Tocar com grandes cantoras: Elis, Maysa, Wanda Sá, Fernanda Takai. Tanta gente que trabalhei e trabalho. Cris Delanno, que eu adoro também. Bendito é o fruto entre as mulheres. Elas me acolheram e fico muito feliz. Trabalhei com alguns homens, mas prefiro as mulheres. Elas são muito queridas, eu fiz muita coisa com elas e continuo fazendo. O passado foi muito bom, e até me perguntam se eu tenho saudade do passado. Eu tenho saudade é do futuro, pois sei que vem muita coisa bacana pela frente.

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