O retorno de ?O Rei do Gado? e o saudosismo das novelas rurais

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O retorno de ?O Rei do Gado? e o saudosismo das novelas rurais
Paula Faria 22/10/2014

O retorno de “O Rei do Gado” e o saudosismo das novelas rurais

Para mim, em termos de telenovela, a grande notícia do mês de outubro foi a de que "O Rei do Gado" será reprisada novamente no "Vale a Pena Ver de Novo". A novela de Benedito Ruy Barbosa foi ao ar entre 1996 e 1997, no horário nobre da Rede Globo, sendo um dos maiores sucessos da década, tanto que, já em 1999, foi reprisada pela primeira vez nas tardes da emissora. Trata-se do que podemos chamar de uma telenovela rural, cujo conflito principal é a briga por um pedaço de terra situado entre as fazendas de duas famílias: os Mezenga e os Berdinazi. Todo o enredo se desenrola, é claro, em meio a romances, separações e intrigas, tão necessárias a qualquer boa obra de teleficção.

O anúncio da reprise da trama estrelada por Antônio Fagundes me fez recordar a trajetória das novelas rurais ao longo dos anos. Benedito Ruy Barbosa tem esta característica autoral: ele valoriza, em suas obras, a chamada cultura caipira e o espaço geográfico dos interiores de estados como São Paulo, Mato Grosso, Bahia e Minas Gerais. Depois do sucesso de "Pantanal", na TV Manchete em 1990, ele retornou à Rede Globo para levar o mundo interiorano à liderança de audiência no horário nobre, com sucessos como "Renascer", "Terra Nostra", e a própria "O Rei do Gado". Após esse boom da ruralidade na década de 1990, as novelas rurais voltaram a ocupar o velho posto das 18h, ao lado das obras de época. A partir de então tivemos mais sucessos escritos por Benedito, como os remakes de "Paraíso" e "Meu Pedacinho de Chão", esta última nem tão rural assim.

Porém, os interiores do Brasil nem sempre foram considerados relevantes em nossas telinhas. Na década de 1970, o professor Muniz Sodré, grande estudioso dos fenômenos televisivos, dizia, com razão, que a TV é um fenômeno definitivamente urbano. Basta pensar no contexto histórico em que a televisão chegou ao Brasil: industrialização, êxodo rural e novas massas urbanas se formando. Era mesmo um momento de decadência da ruralidade. Assim, naturalmente, a força e a predominância do ambiente urbano nas telenovelas se sobressaíram nas décadas de 1970 e 1980, consideradas a era de ouro deste gênero de ficção no Brasil, dando origem ao que chamamos de "cultura zona sul", ou seja, uma tendência, nas novelas, de retratação do cotidiano das classes médias dos grandes centros urbanos, cujo maior exemplo é a repetitiva ambientação nos bairros praianos do Rio de Janeiro.

Porém, desde 1971, quando foi ao ar pelas TVs Globo e Cultura a primeira versão de "Meu Pedacinho de Chão", de Benedito Ruy Barbosa, o universo rural marca sua presença na programação televisiva brasileira. Na década seguinte, o sucesso de "Roque Santeiro", de Dias Gomes e Aguinaldo Silva, no horário das 20h da Rede Globo, levou a uma relativização da suposta necessidade de retração do universo metropolitano nas novelas. A trama iria ao ar dez anos antes, mas foi censurada. Depois da enorme valorização dos espaços urbanos e da ideologia desenvolvimentista, o contexto histórico da abertura política na década de 1980 foi muito propício para o estabelecimento de uma telenovela rural de sucesso. Há quem diga que a fictícia cidade de Asa Branca, onde se desenvolve "Roque Santeiro", representa o sonho saudoso da cidade interiorana onde todos se conhecem e todos são alguém, onde imperam as normas do compadrio e da amizade, ao contrário do que ocorre nas grandes cidades, onde o anonimato dita as regras e a violência se faz constante. Obras como esta fazem sucesso devido, da mesma forma, ao bucolismo das fictícias cidadezinhas pacatas e às divertidas brigas entre personagens caricatos, também presentes, por exemplo, em "O Bem Amado" (Rede Globo, 1973), outra obra de Dias Gomes e primeira telenovela a ser transmitida em cores no Brasil.

No que se refere à ambientação interiorana, Aguinaldo Silva, nem tão especializado neste ramo quanto Benedito Ruy Barbosa, merece ser lembrado também por "Tieta" (1989), "Pedra sobre pedra" (1992), "Fera Ferida" (1993) e "A indomada" (1997), todas produzidas pela Rede Globo. Estas tramas revelam o sucesso das ambientações rurais na teledramaturgia da década de 1990. Vale ressaltar que a última delas se passava em uma fictícia cidade litorânea, mas é classificada como trama de ambientação interiorana em função da representação da pequena cidade fictícia como microcosmo do Brasil, característica que Aguinaldo Silva parece ter herdado de Dias Gomes. Mas, se existiu um ponto de partida para a contestação da ideia de que a representação da vida urbana merece sempre prioridade na TV, ele ocorreu em 1990, com a estreia de "Pantanal" às 21h30 na TV Manchete. Foi depois dos bons índices de audiência desta trama que a atenção da Rede Globo foi despertada para o potencial da teledramaturgia rural.

"Pantanal" fugiu aos padrões conhecidos e foi um marco da teledramaturgia devido a sua linguagem diferenciada, que privilegiava os cenários naturais e um ritmo mais lento. Com planos de longa duração, a presença marcante da música, a natureza como personagem principal, as tomadas externas, os personagens místicos e uma ambientação que foge totalmente ao eixo Rio-São Paulo, esta obra, através da demonstração do conflito entre o selvagem e o moderno, mostrou um Brasil rural com o qual os telespectadores não estavam acostumados. O enredo valorizava aspectos renegados no modelo de telenovela que buscava apresentar o Brasil como "país do futuro". Enfim, "Pantanal" teve como meta "mostrar o Brasil que o Brasil não conhecia" através do mito do paraíso perdido e das lendas interioranas, representadas por personagens como o Velho do Rio (espírito que se transformava em serpente) e Juma Marruá (a mulher-onça), que se misturavam com a natureza expressando sua força e seu mistério.

Também merece ser lembrada "A história de Ana Raio e Zé Trovão", produzida pela TV Manchete em 1991. Esta novela, escrita por Marcos Caruso e Rita Buzzar, se destacou por não ter locações fixas, sendo gravada quase totalmente em externas. Não houve nenhuma cena gravada em estúdio e a trama foi a primeira e única obra itinerante da teledramaturgia brasileira, sendo gravada em oito cidades de seis estados do país. Apesar do enredo principal se focar na busca da protagonista pela filha sequestrada e em seu romance com o peão-violeiro Zé Trovão, o roteiro da novela parece ter como principal objetivo mostrar as culturas regionais. As viagens pelo interior ganharam destaque, numa tentativa de retratação da vida cotidiana dos componentes de uma companhia de rodeio, o que permitia a demonstração das peculiaridades, costumes e lendas de cada cidade pela qual passavam os protagonistas.

Bem mais tarde, a segunda versão de "Paraíso" (2009) voltou a retratar a vida e as lendas interioranas, com a história de amor impossível entre o filho do diabo e a santinha. Já o recente remake de "Meu Pedacinho de Chão", com seu universo lúdico, manteve as expressões e o sotaque "caipirês", mas pode ser considerada mais uma novela-fábula do que uma trama rural, já que seus figurinos e recursos cenográficos remetem a histórias infantis como "O Mágico de Oz" e "Alice no País das Maravilhas". Enfim, tenho sentido falta da abordagem dos universos interioranos na telinha. A segunda versão de "Meu Pedacinho de Chão", apesar de primorosa, não se mostrou disposta a suprir esta "carência" e é por isso que recebi com tanta satisfação a notícia da reprise de "O Rei do Gado".

Apesar do retorno à faixa das 18h e de sua redução em termos quantitativos, pode-se dizer que a telenovela rural se firmou como um subgênero viável e bem sucedido da teledramaturgia, retratando a cultura caipira, seja através de uma perspectiva saudosista, para aqueles que abandonaram o campo, seja com o pressuposto de que esta formação cultural ainda sobrevive, apesar da mudança demográficas do país. O que nos resta é esperar que o retorno de "O Rei do Gado" traga consigo todo o potencial das novelas rurais, para que elas voltem a ser produzidas e reconquistem seu espaço.


Paula Faria é jornalista e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, além de especialista em TV, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Também é publicitária pela Faculdade Estácio de Sá e desenvolve pesquisas relacionadas à comunicação, cultura e identidades, mais especificamente sobre ficção seriada televisiva e música popular brasileira.