Entrevista com o escritor e professor Cineas Santos

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Entrevista com o escritor e professor Cineas Santos

Entrevista com o escritor e professor Cineas Santos

Daniela Aragão 21/09/2016

Daniela Aragão: Como começou o despertar da palavra em sua vida?

Cineas Santos: Eu morava no Sertão do Caracol, num lugar chamado Campo Formoso, onde não havia água, nem livros. A literatura que se fazia lá era oral, as pessoas contavam histórias à noite, debulhando feijão ou milho. Histórias muito pavorosas, mula sem cabeça, lobisomem. Uma noite, uma tia minha chamada Odete, começou a cantar um folheto de Cordel. Eu não sabia o que era Cordel, mas aquilo me impressionou de tal forma, que comecei a chorar. Quando ela terminou a narrativa, eu estava em prantos. Ela ficou sensibilizada com aquilo e me perguntou sobre o que me levava a chorar. Eu disse: quando eu crescer quero fazer isso. Ela respondeu: “- então trate de aprender a ler”. No sertão não tinha nada, não havia água, escola.

Daniela Aragão: Imagino sua ansiedade.

Cineas Santos: No dia seguinte, procurei minha mãe e disse que queria aprender a ler. Ela começou a me ensinar as primeiras letras, num curto espaço de tempo, eu já estava lendo. Quando cheguei a São Raimundo Nonato, para estudar na escola, eu já sabia ler, escrever e contar. Pulei a alfabetização e entrei no primeiro ano C. Comecei a ler todos os folhetos de cordel, que tinham em São Raimundo Nonato e até decorava alguns. Então, meu primeiro contato com a poesia começou ali.

Daniela Aragão: A partir dali você já sentiu o impulso da manifestação de uma escrita pessoal?  

Cineas Santos: Eu lia muitos folhetos e até chegava a decorar alguns. Um dia, meu irmão mais velho, me convidou para fazer um folheto. Eu já tinha certo domínio do heptassílabo, pois ouvia aquilo e já sabia a medida do verso. Ele disse que o tema do folheto era “O namoro de hoje em dia”. Argumentei que eu nada sabia de namoro. Ele sugeriu entrar com a matéria-prima e eu com a forma. Seria um folheto a quatro mãos. Ele me contou histórias escabrosas sobre namoro, que me deixaram arrepiado. Eu ia então, dando forma ao que ele me contava. Ficou muito picante a coisa, muito sem-vergonha, na verdade (risos).

Daniela Aragão: A palavra como possibilidade de subversão e evasão.

Cineas Santos: Fiquei entusiasmado com aquilo e resolvi mostrar para alguns colegas lá de casa. Não percebi que minha mãe, uma matriarca sertaneja, estava por perto. Quando meus amigos saíram de casa, mamãe me deu uma baita surra.  Disse que eu não podia continuar fazendo sacanagem.

Daniela Aragão: E as primeiras leituras?

Cineas Santos: Nessa época ainda não havia livro em minha vida. Destaco,  no ginásio Dom Inocêncio, a existência de um livro da Aída Costa, bastante famoso. Trata-se de uma antologia escolar, que tinha além das lições de análise sintática, uma parte de poesia. Eu só me interessava por poesia. Descobri Olavo Bilac, Viriato Correia, Paulo Setúbal, Gonçalves Dias, Raimundo Correia. Menotti Del Pichia e Manoel Bandeira.  Eu adorava o Alphonsus Guimarãens, não me interessava minimamente pela parte gramatical, só queria ler os textos. O contato com a literatura mais formal deu-se então por meio dessa antologia. A partir daí, comecei a me interessar pela literatura como um todo. Eu lia também textos em prosa, chegava até a decorar pequenos textos.  Nessa época, a literatura me chegava ainda sem as descobertas do modernismo, ia até Menotti Del Pichia, com Juca Mulato.

Daniela Aragão: Como se deu a vinda para Teresina?

Cineas Santos: Quando terminei o ginásio em São Raimundo, minha mãe decidiu que eu deveria vir para Teresina. Ela era uma matriarca e só usava verbos no imperativo. Jogou-me em cima de um caminhão com uma carga de feijão e disse: “- vá”. Não tinha retorno, era uma catapulta que me jogou no ar.

Daniela Aragão: É preciso coragem.

Cineas Santos: Vim para Teresina com dezessete anos, sem conhecer ninguém. Primeiramente, fui tentar me hospedar na “Casa do estudante” e não deu certo. Acabei morando na Upes, união piauiense dos estudantes secundaristas. Era uma casa caindo aos pedaços, que acolhia alguns náufragos. Eu vim obrigado, pois não queria sair de minha aldeia. Minha mãe só dizia:  “- faça, levante”. Não havia meio termo com ela. Eu estudava no Liceu Piauiense e por lá encontrei um livro do professor Válter Wey, uma antologia composta quase que essencialmente de poesia. Neste livro, me deparei com o “Poema de sete faces”, do Drummond. Aquela escrita me causou estranheza, algo de prosaico. Não tinha rimas. Eu não parava de querer ler aquilo e decorei um poema rapidamente. A partir de Drummond, descobri outros poetas modernistas. Foi um portal da literatura para mim.

Daniela Aragão: A forma liberta dos modernistas te inquietou?

Cineas Santos: Muito. Antes não havia nenhum problema, a rima e a métrica davam o roteiro. Na poesia moderna, o verso livre é um complicador, pois não possui parâmetros, a não ser a sua própria sensibilidade. Para penetrar naquele universo era difícil. Me apaixonei pela poesia: leio poemas  todos dias. Leio os clássicos, os modernos e os divulgo.

Daniela Aragão: A poesia e sua singularidade.

Cineas Santos: Dia desses descobri uma frase de Freud: “Aonde quer que eu vá, um poeta já chegou antes de mim”. Sempre soube: três pessoas no mundo são especiais: os profetas, os filósofos e os poetas. Os profetas possuem uma missão:salvar as almas, os filósofos tentam explicar as coisas do mundo, até o inexplicável, às vezes são muito chatos. Os poetas não explicam nada, não querem salvar ninguém, só provocar emoção estética. Os poetas dizem as mesmas coisas que os profetas e filósofos, só que com mais beleza.

Daniela Aragão: Você se tornou professor e escritor.

Cineas Santos: No segundo grau eu era péssimo em matemática, física e biologia. Só me interessava pelas “matérias fáceis”, chamadas de “matérias de mulher”. História, geografia, literatura. Não queria papo com ciências exatas. Aos trancos e barrancos, conclui o segundo grau. Fiz vestibular para direito e comecei a lecionar imediatamente em cursos, na época chamava-se Curso Madureza, depois Supletivo e hoje Eja, curso para adultos. Trabalhei vinte e cinco anos como professor de literatura e língua portuguesa.

Daniela Aragão: Acabou mergulhando na gramática?

Cineas Santos: Aprendi gramática quando quis. Percebi que era preciso usar a gramática, como esteio para a construção do texto. A gramática sempre a serviço do texto. Nessa época comecei a escrever crônicas, algumas para o jornal mural da escola. Publiquei na imprensa de Teresina, fundei o jornal alternativo denominado “Chapada do Corisco”, em 76. Comecei também, no mesmo período, a editar os poetas do Piauí, não parei mais.

Daniela Aragão: Considero o humor um dos pontos altos em sua escrita.

Cineas Santos: Sempre me preocupei com o riso, se eu não tiver coragem de fazer humor comigo, não posso fazer humor com o mundo. Certa vez, Drummond declarou, numa entrevista para o Zuenir Ventura, que todos os dias pela manhã fazia careta no espelho. Isso se dava, segundo o poeta, para anteceder a surpresa com a risada do outro. “Quando alguém rir de mim, não tirará vantagem, pois já ri primeiro”.

Daniela Aragão: A capacidade de auto ironizar-se é uma destreza luxuosa.

Cineas Santos: As pessoas sofrem com um sentimento que considero pavoroso: egolatria, ou seja, se levam muito a sério. Observe que meus textos, incluindo crônicas e outros gêneros, constituem a negação, nunca sou. Sou o anti-herói, o bobão. Eu desarmo as pessoas que queiram me sacanear. Essa arma do humor é muito importante, uso a autoironia.

Daniela Aragão: Você faz de certa maneira o que os modernistas implantaram, que é a quebra.


Cineas Santos: Sim. Houve uma época em que eu era muito agressivo. Quando fazia faculdade de Direito, eu era muito violento. Descobri que aquilo era burro, pois o máximo que conseguia era a adesão de alguns ressentidos. Eu não queria me tornar o autor dos que não têm voz, não quero ser arauto de ninguém. Descobri que você pode dizer coisas muito interessantes, utilizando uma linguagem mais suave e com mais humor. Parei de bater de frente, passei a ser mais sutil.

Daniela Aragão: O humor vem dessa sutileza e agudeza de seu olhar, como é possível perceber no livro dedicado à memória de sua mãe. Como você consegue, num processo tão doloroso, que é a vivência do Alzheimer, contrapor a alegria?


Cineas Santos: Vou pegar uma coisa dolorosa, que é uma doença como o Alzheimer e dramatizar? Vai se tornar uma caricatura. Eu queria fazer um texto que fosse leve, lírico no qual se pudesse alternar o riso e o pranto. Há momentos que são comoventes. Há o sofrimento de minha mãe, mas contorno com certa dose de humor.

Daniela Aragão: Há uma passagem inesquecível, como no momento em que você narra o episódio do aniversário dela.

Cineas Santos: Na festa de aniversário de 80 anos dela, quando eu convidei-a para ir para casa, ela me disse: “Não me obrigue a ser indelicada: não possa sair da festa sem cumprimentar a aniversariante”. Era algo surreal.

Daniela Aragão: Escrevê-lo foi uma catarse para você?

Cineas Santos: Era muito complicado. Levei dezessete anos para fazer este livro. Só me sento para escrever quando tenho tudo pronto na cabeça. Eu não sabia o tom a imprimir na narrativa, mas sabia que não queria um texto doloroso. Eu queria algo festivo e generoso, tudo o que representasse a minha mãe. Ela era violenta, festiva, alegre e generosa. Autoritária ao extremo, batia em nós até com o facão e, ao mesmo tempo, era capaz de dar a última gota d’ água da casa dela para um pedinte. Ela era um ser paradoxal. Eu não podia descrever uma mãe linear. Ela era lúcida e louca.

Daniela Aragão: Como se deu a recepção a esta obra?

Cineas Santos: O que me agrada em relação a este livro é que os médicos estão indicando-o para os cuidadores de pessoas com Alzheimer. O livro não é sobre Alzheimer, mas aborda as estratégias para se lidar com essa doença. Minha mãe falava uma doideira e, ao invés de corrigi-la, eu inventava uma doideira ainda maior. De repente, minha mulher ouvia e dizia que eu estava louco. De certa maneira, ao entrar no reino de loucuras de minha mãe e não cortá-la, com correções impossíveis de serem realizadas, fazia com que ela não ficasse na solidão de seu devaneio. Fazer este livro me trouxe muita alegria.

Daniela Aragão: Observo uma força extraordinária nas mulheres nordestinas. Isso é verificável no relato que você constrói sobre sua mãe, no depoimento que o poeta Salgado Maranhão me concedeu há alguns meses, em que também fala sobre a intensidade da mãe dele. Vejo e me impacto com a força dessas mulheres, que parecem estar na vanguarda, no sentido de que são corajosas, autônomas, destemidas.

Cineas Santos: Muito. Na minha região ninguém fala “aquele é o Francisco do João”, fala “Aquele é o Francisco da Chica”. Na minha região, todo filho tem uma mãe, isso demonstra a força do matriarcado. As mães são muito fortes, a minha até era forte demais. Minha mãe tomava conta de tudo. Acho isso muito bonito no sertão. Era muito comum o sertanejo migrar para São Paulo, para tentar a vida fora. A mãe fica. Então é ela que segura o pau da barraca; caso contrário, os filhos se dispersam. Apesar do machismo, no nordeste aflora um forte matriarcado. As mulheres conseguem viver sem o marido, que, em geral vai embora, para o garimpo, para não sei onde. Ela segura os filhos e com mão de ferro. Ela é disciplinadora:não quer o filho ladrão, ela quer filho encaminhado. Isso é muito nosso, muito o sertão. O sertão é essencialmente matriarcal, é vero.  

Daniela Aragão: Nossa conversa me remete a antológica obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. O escritor elabora toda uma poética da natureza em confluência com o homem e a terra. A terra, enquanto elemento primordial é fêmea, geradora.

Cineas Santos: Aquela natureza áspera. O homem não foge ao seu destino, como diz Riobaldo em “Grande Sertão Veredas”. O homem está preso naquele universo de cipó. Euclides trata muito bem dessa sina.

Daniela Aragão: Sua escrita traz a força da oralidade.

Cineas Santos: Tenho hábito de conversar sozinho. Permanentemente estou conversando comigo. Faço para mim mesmo conferências, sobre, digamos, cultura. Às vezes as pessoas passam na rua, veem e acham que estou ficando louco. Vou fazendo perguntas e respondendo, de forma que, quando alguém me propõe alguma coisa, já tenho todo um arsenal pronto para desenvolver.

Daniela Aragão: Como surgiu seu trabalho para a televisão?

Cineas Santos: Eu nunca gostei de televisão e sempre tive um pé atrás em relação a ela. Parece um crime você utilizar um veículo, com tamanha penetração para emburrecer as pessoas. Considero isso criminoso, é falta de governo e desrespeito pelo patrimônio brasileiro. Como é que o estado concede um instrumento para ganhar dinheiro e imbecilizar as pessoas? As tais “vídeo cacetadas”,por exemplo, são uma clara demonstração do nível de perversidade da nossa televisão. As pessoas caem, machucam-se e os telespectadores ficam rindo.  Ou um programa que ri dos homossexuais, dos bêbados, dos loucos.

Daniela Aragão: Foi um convite então?

Cineas Santos:  Um dia, o dono da “Cidade Verde”, anunciou no ar que eu iria fazer um programa na TV dele. Eu disse, de imediato, que não estava a fim de fazer. No entanto ele insistiu, mas impus a condição de que não tivesse editor, nem chefe. Não haveria previamente nenhuma pauta.

Daniela Aragão: Toda a dinâmica do programa é elaborada e conduzida por você?

Cineas Santos: Exatamente. Nunca houve interferência de ninguém em meu programa. Obviamente, problemas técnicos que surgem não dizem respeito a mim. A concepção do programa, os quadros, a dinâmica é minha.

Daniela Aragão: O programa traz a marca da espontaneidade, que deixa tanto o entrevistado à vontade, quanto favorece a criação de um clima de intimidade com o telespectador.

Cineas Santos: Tenho escalado os convidados, porém não chego para gravar com roteiro prévio: acontece na hora. Acho que a parte melhor deste programa é que ele comprova que o povo não é burro e não quer porcaria. Certa vez, fui parado na rua por um mendigo. Meti a mão no bolso para dar-lhe um trocado. Me surpreendi quando ele me disse “- Gosto de seu programa”. Ele falou que gostava do quadro “Cadeira na calçada”. Ele ainda sabia o nome de cabeça, fantástico.  Me emociona, quando percebo que o programa saiu de minha posse e torna-se do telespectador.

Daniela Aragão: Observei uma qualidade considerável na TV local. Há uma valorização do artista local destacável em vários programas.

Cineas Santos: Isso começou com a “Cidade Verde”. Este canal passou a fazer uma programação mais voltada para o Piauí. As demais emissoras, quando perceberam que estavam perdendo a audiência, passaram também a explorar este filão. Isso é muito bom, pois todos ganham, a TV tem que abrir um espaço para a sua própria terra.

Daniela Aragão: Por que até hoje as grandes emissoras permanecem ignorando a produção do norte e nordeste?

Cineas Santos: Certa vez, quando estive no Rio de Janeiro, procurei o escritor Esdras Nascimento, com o propósito de lhe entregar uma antologia de autores piauienses. A obra tinha como temática o rio Parnaíba. Como o cidadão era piauiense, acreditei que poderia se interessar.Ele, de imediato, afirmou que era para eu não esperar que ele escrevesse nada sobre o livro, pois não iria falar sobre uma  obra que não despertaria interesse no Rio de Janeiro.  

Daniela Aragão: Como se deu sua recusa ao convite do escritor Ignácio de Loyola?

Cineas Santos: Trouxe para Teresina o Ignácio de Loyola Brandão e Wander Piroli. Loyola, na época, pertencia à  Editora Três  e me convidou para ir para São Paulo. Ofereceu-me trabalho, residência próxima e tal. Falei: Loyola, abra a janela da tua sala e dá uma olhada. Você irá encontrar pelo menos um deles, mais competente do que eu, mais necessitado e já pronto para você. Aproveite então. Meu lugar é na minha aldeia. Não quero ser famoso, quero apenas ser notável em minha aldeia, ser reconhecido pelas coisas que faço na minha aldeia.

Daniela Aragão: Você poderia falar sobre o seu projeto “A cara alegre do Piauí”?

Cineas Santos: Este projeto nasceu em 1977. Uma realização que o estado deveria ter encampado: estabelecer um intercâmbio entre a capital e o interior do Piauí, que é muito esquecido. Um grupo de amigos muito pequeno, composto por seis pessoas, pegamos um fusca velho e começamos a desenvolver o trabalho por nossa conta e risco. Levamos informações da capital para o interior e vice-versa. Resultou em muitas coisas bonitas, o projeto ainda está vivo, porém em ritmo mais lento.   Trata-se de um diálogo entre a capital e o interior. De Floriano para lá, o Piauí não dialoga mais com a capital, o diálogo se faz com Goiânia, Salvador, Brasília, Rio de Janeiro.

Daniela Aragão: Daí então o tal projeto de se dividir o Piauí?

Cineas Santos: Este projeto está aí. Teresina não estende a mão e o interior também não. Ficam dois pedaços do Piauí falando coisas diferentes. Lamentavelmente, o estado não assumiu este projeto.  Nosso projeto é voluntário, nós que realizamos tudo. Levamos oficinas de dança, teatro, violão, além de aulas de português e história para os professores da rede pública. Um projeto que deveria ser do estado, não meu.

Daniela Aragão: E seu belo livro sobre a história de uma gatinha “A metade extraviada”?

Cineas Santos: Nunca criei gato, só cachorro. Eu adoro mulher bonita, sofro desta doença (risos). Havia uma mulher muito bonita, que trabalhava num banco. Recorri a ela para me auxiliar na leitura de um contrato, que estava com uma letra mínima, o que dificultava muito a leitura. Ela disse: “- Só não te empresto meus olhos, porque eles também não servem”. Perguntei- lhe então se era míope e ela disse “- Meus olhos não são azuis, como eu gostaria que fossem”. Aquilo me deixou griladíssimo: uma mulher cujos olhos não serviam, porque não eram azuis.

Daniela Aragão: Então a inspiração foi uma mulher.

Cineas Santos: Fui para casa com a ideia de fazer um cordel sobre uma mulher, que não gostava de seus olhos, porque eles não eram azuis. A história acabou se transformando na narrativa da gata. Os olhos da gatinha são cor de palha, mas ela queria ter olhos azuis. Até que descobriu que os pardais são feiosos e felizes e bailam no azul. As histórias vão ganhando a própria dinâmica quando escritas.

Daniela Aragão: Este livro traz uma percepção intuitiva plena de lirismo e delicadeza.

Cineas Santos: É uma gatinha, veja que algumas características dela são curiosas. Ela gosta de chuva caindo, música suave, carícia. No entanto, não é uma gata servil, subserviente, não fica se esfregando em ninguém. Aquela história eu gosto muito.

Daniela Aragão: E o personagem Mário de Andrade?

Cineas Santos: A figura do Mário me fascina muito. O Genivaldo, um maravilhoso ilustrador, não conseguia fazer o personagem que eu queria. Quando estou escrevendo um livro, já elaboro em minha mente toda a concepção visual do personagem e suas cores. Quando vi a cara de americano, com queixo quadrado e óculos quadradinhos, que ele construiu para o meu personagem, não aceitei. Falei:  Geni, eu quero óculos fundo de garrafa, rapaz. Ele me trazia outras tentativas. Até que mostrei a ele uma foto de Mário de Andrade e expliquei que gostaria de algo daquela maneira. Ele me trouxe então o desenho do Mário de Andrade e achei ótimo.

Daniela Aragão: Acabei encontrando os gatos como meus grandes companheiros. Vim a descobrir que os felinos, no decorrer da história, são grandes companheiros dos escritores.

Cineas Santos: Ferreira Gullar teve um gatinho que morreu e agora ele tem uma gatinha, que ganhou da Adriana Calcanhotto. Guimarães Rosa adorava, José J Veiga,também. É comum encontrar essa relação afetiva entre gatos e escritores. Nise da Silveira permitiu que os gatos fossem levados para os asilos, pois notou que os pacientes ficavam mais sossegados com a presença dos felinos. O gato é um velho companheiro do ser humano, embora ele não tenha dono. Ele é um animal de uma independência incrível. O gato se afeiçoa ao humano, mas ao mesmo tempo tem o seu espaço.

Daniela Aragão: Qual o seu trabalho mais recente?

Cineas Santos: Estou organizando uma antologia chamada “Baião de todos”, que está completando vinte anos. Vou fazer a segunda edição comemorativa, com trinta poetas. Adoro trabalhar em grupo, não sou individualista e nem gosto de fazer carreira solo. Músicos, artistas plásticos, professores, todo esse universo me fascina. A amizade é um dos traços que distingue o ser humano dos demais seres. Veja que os cães, mesmo sendo amigos, na hora da comida se estranham, a não ser que estejam satisfeitos, saciados. O homem é o único que chama o outro para comer. Você, que é de Minas, sabe que quando chega na casa de uma pessoa, ela tem o maior prazer em te convidar para comer.

Daniela Aragão: O que é a literatura para a sua vida?

Cineas Santos: A literatura é a minha praia. Raramente vou à praia, pois sou sertanejo e não tenho o menor interesse pelo mar. O mar, para mim, é para ser visto de longe;vou à praia para ler. Armo uma rede e fico lendo. Sou um animal de lagoa, de riachinho. As pessoas vão para a praia para beber, curtir, pegar sol. Eu não preciso de sol, já peguei todo o sol na minha infância, no sertão, já estou seco de sol. Vou à praia para ler, então a literatura é o meu mundo. Eu tenho uma praia, eu tenho uma pátria. Enquanto existir literatura e eu tiver a possibilidade de ler, estarei em algum lugar situável no mundo. Me sinto muito bem na literatura, fazendo, lendo, ou divulgando a literatura dos outros. Quando leio um bom poema compartilho, pois o que é bom é para ser mostrado.

Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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