SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O escritor Salman Rushdie vive em perigo há mais de três décadas, desde que um decreto religioso clamou por sua morte. Apesar de não haver por ora informações sobre a motivação do homem que o esfaqueou na sexta-feira (12), o episódio reacendeu o debate sobre a violenta intersecção entre a literatura contemporânea, a liberdade de expressão e o fundamentalismo.

Em 1988, Rushdie incomodou leitores fanáticos ao publicar seu romance "Versos Satânicos". O livro, de realismo mágico, costura a história de dois indianos no Reino Unido com a vida de Maomé, o profeta do islã que viveu nos séculos 6 e 7. O título se refere ao episódio, narrado por certas fontes islâmicas, em que Satã enganou Maomé ao soprar-lhe versos autorizando o politeísmo.

A ideia de que Satã influenciou o Alcorão, ainda que temporariamente, é perigosa. Líderes religiosos hoje rejeitam o episódio com base na doutrina de que Maomé era moralmente infalível --e não poderia, pois, se enganar e minar a autoridade do Deus único do islã. Rushdie tocou, assim, em um ponto sensível ao dedicar todo um romance aos tais versos demoníacos.

O livro, no entanto, tem diversos outros elementos indigestos para os fundamentalistas. Maomé aparece com o nome de Mahound, usado por cristãos no passado para vilipendiar o profeta. A cidade sagrada de Meca é chamada de Jahilia, termo árabe que se refere à era de ignorância anterior ao islã. Rushdie empresta o nome de esposas do profeta Maomé para prostitutas.

A publicação de "Versos Satânicos" coincidiu com um crescente extremismo entre alguns setores islâmicos, plasmado na instituição de um regime ultra-religioso no Irã após a revolução de 1979. Em 1989, o aiatolá Khomeini --a máxima autoridade do país em termos de fé e política-- emitiu um edito religioso pedindo que muçulmanos matassem Rushdie para puni-lo pela heresia.

O decreto de Khomeini acabou popularizando o termo fatwa, às vezes soletrado como fátua em português. Mas essa leitura extrema e literal da fatwa que é defendida pelo aiatolá não representa a riqueza do islã nem a sua história de tolerância.

Mais do que um decreto, uma fatwa é uma opinião religiosa. Um indivíduo procura um mufti com uma dúvida e o mufti responde com uma fatwa. Ambos, "mufti" e "fatwa", tem a mesma raiz no árabe. Em tese, uma fatwa não é um imperativo. Um fiel tem liberdade para ignorá-la ou até procurar uma segunda opinião.

Na versão extrema do aiatolá, porém, a fatwa contra Rushdie teve o peso urgente de uma lei. A ordem era clara: Khomeini exigia que muçulmanos matassem o autor. Foi como extremistas entenderam a mensagem, e foi com base nessa interpretação radical que eles tentaram nessas três décadas alvejar Rushdie.

O presidente iraniano Mohammad Khatami chegou a anunciar em 1998 que seu país não apoiava mais a fatwa. Ele foi desmentido, porém, por líderes religiosos que disseram que apenas o autor do decreto poderia cancelá-lo. Khomeini morreu em 1989, logo após emitir a fatwa. Em teoria, o decreto segue válido, para os radicais.

O Irã dos aiatolás e a violência dos extremistas que há décadas perseguem o autor de "Versos Satânicos" não falam em nome do islã. Se o esfaqueamento de Rushdie tiver tido motivação religiosa, tampouco deve se transformar em um argumento para criticar todos os muçulmanos com base nos atos de alguns.


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