BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) - No caminho do cinema existem vários obstáculos, pelo menos desde a pandemia. Não é difícil enumerar. Um deles é a concorrência do streaming às salas. Outro é o abandono das salas pelo público por medo de ficar em lugares fechados, mesmo após o fim da pandemia. O terceiro é o fim de janelas de exibição, como o DVD. O quarto é o preço dos bilhetes de cinema. O quinto é a dificuldade de encontrar informação sobre os filmes em cartaz.
Essa é uma situação que atinge quase o mundo inteiro, cada um com suas particularidades. "Vivemos um momento de reestruturação completa do negócio", resume Pedro Butcher, crítico e professor de cinema na Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro.
Este é um dos raros momentos, desde o surgimento do cinema, em que todos os segmentos do audiovisual, da produção à exibição, enfrentam ao mesmo tempo uma situação de crise. É em função disso que o 16º CineBH, realizado em Belo Horizonte todos os anos, montou um painel com diversas mesas de debate em torno da questão.
É verdade que entre os expositores faltou algum representante das grandes empresas distribuidoras. Pois, como chamou a atenção o crítico Marcelo Miranda, temos tido nos últimos tempos momentos em que um novo filme do Homem-Aranha é capaz de ocupar quase todo o parque exibidor brasileiro.
Mesmo esse fenômeno não é tão simples. Por um lado, ele acontece em função de o público juvenil ser aquele que já voltou a frequentar as salas. Ao mesmo tempo, porém, faltam outros filmes para dividir a atenção entre os candidatos a grande bilheteria.
Esse é um setor, aliás, em que os brasileiros deixaram de concorrer desde, pelo menos, 2019, o que impõe uma questão. O que seria necessário para que voltem neste momento de reorganização do negócio do audiovisual?
Segundo Butcher, há dois fatores essenciais. "Uma nova ordenação do mercado associada a uma política pública para o setor." É tudo o que não temos. Por regulação do mercado entendamos, primeiro, cota de tela para filmes brasileiros e, segundo, regulação dos canais de streaming, criando, entre outros, uma cota de produção local bancada por cada canal.
Na perspectiva de Butcher, ainda não existe uma perfeita compreensão do que sejam os canais de streaming, ou seja, é preciso ver essas companhias menos como empresas exibidoras (ou mesmo produtoras) de audiovisual do que grupos interessados em "orientar as tendências do mercado".
Trocando em miúdos, cada vez que damos um clique, conectamos alguma série ou fazemos um "like" estamos oferecendo informação a esses grupos. E essa informação é mais preciosa, acredita Butcher, do que a assinatura de um streaming.
Ele exemplifica que quando o Amazon concede a seus assinantes o direito de encomendar produtos sem pagamento de frete, já não se sabe mais o que é essencial no negócio -que os filmes da sua plataforma de streaming sejam vistos ou que o assinante encomende outros produtos à companhia. "A empresas como Netflix, Apple e Amazon interessa descobrir o comportamento do consumidor."
A ser verdadeiro o raciocínio -e Butcher é um estudioso do assunto, tendo produzido uma importantíssima tese sobre a relação entre a indústria dos Estados Unidos e o cinema brasileiro no começo do século-, podemos esperar um mundo totalmente controlado por essas grandes corporações.
Alguns movimentos nessa direção já são, a rigor, detectáveis -a desvalorização do trabalho crítico (tudo o que retira o espectador da condição estrita de consumidor de um produto), que começa antes dos streamings, e o apagamento da história do cinema (o audiovisual passando a ser visto como objeto de um presente perpétuo).
Nesse quadro, e mesmo sem a presença de representantes dos grandes estúdios, existem questões diferentes a propor. Lídia Damatto, da O2 Play, por exemplo, equacionou parte de seus problemas graças a um acordo com o streaming Mubi.
Isto é, o streaming consente que a O2 Play exiba os seus filmes em salas, antes mesmo do lançamento na plataforma, o que já aconteceu com longas como "Crimes do Futuro", de David Cronenberg, que havia acabado de ser exibido no Festival de Cannes, e "Drive My Car", de Ryusuke Hamaguchi, ganhador de um Oscar.
É uma maneira de manter filmes autorais no circuito de salas, num mundo que se transforma febrilmente, sob o impacto das novas tecnologias, mas mantém desde 1948, basicamente, a mesma legislação (1948 foi o momento em que a lei antitruste nos Estados Unidos obrigou os grandes estúdios a se desfazerem de suas salas de exibição).
Na mesma direção vai Cosimo Santoro, distribuidor internacional, apenas com uma observação pessimista a mais. "Nos últimos anos não há mais um interesse especial pelo Brasil na Europa." Nessa altura, Butcher lembrou que uma das razões desse fenômeno é o fato de que hoje há "muito mais coisas feitas do que o mercado pode absorver".
Problema que sente na carne Daniel Queiroz, distribuidor da Embaúba Filmes, cujas produções são sempre autorais e quase sempre rejeitadas pelos grandes exibidores. Uma exceção se abre para ele, agora, com "Marte Um".
Lançado em 34 salas (no Brasil existem cerca de 3.000), o filme chega, em sua terceira semana, a 70 salas. O público cresceu, já mais que dobrou os números do maior sucesso da distribuidora até aqui ("Arábia", que ganhou o Festival de Brasília de 2017 e quase todos os grandes prêmios disputados no Brasil, além de alguns no exterior).
No caso de "Marte Um" existe o efeito da indicação do filme como representante brasileiro ao Oscar, determinante para o aumento do número de salas e mesmo de público. Para os próximos filmes, sem Oscar ou algo similar no caminho, Queiroz voltará a seu alvo anterior -10 mil espectadores em salas. E depois? Depois, talvez, os frequentadores do streaming da sua própria distribuidora.
Situação difícil? Sem dúvida. Mas, como lembra Santoro, não mais complicada do que a dos investidores que compraram ações da Netflix na pandemia e, agora, viram seu valor desabar em 70%.
Entre imprevistos do mundo (pandemia), transformações tecnológicas contínuas e a completa ausência de regulamentação das atividades do streaming no Brasil, distribuidores e produtores audiovisuais que foram ao CineBH este ano se veem diante de um futuro incerto para a atividade no Brasil. Incerto, mas não necessariamente sombrio.
Embora todos vejam o país como dependente de tecnologias criadas no exterior, acreditam na possibilidade de uma regulação que amenize as incertezas e permita a convivência das salas de cinema (sim, algumas empresas já começam a abandonar o mercado) com os serviços de streaming e televisão.
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