RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Um dos mais importantes eventos de cinema do país, o Festival do Rio passou por maus bocados em edições recentes, por causa da pandemia e da falta de patrocínios. Mas aos poucos parece se recompor, conforme atesta a edição deste ano -entre 6 e 16 de outubro, serão exibidos cerca de 200 filmes pela cidade, inclusive no tradicional Cine Odeon, na Cinelândia, que passou um bom tempo fechado.
Ali, nesta quinta será exibido (para convidados) "Império da Luz", de Sam Mendes -de "1917"-, drama em que Olivia Colman interpreta uma mulher que vive um romance com um homem negro bem mais jovem. A partir de sexta, dia 7, o evento traz aos cariocas filmes importantes da atual temporada, como "The Banshees of Inisherin", de Martin McDonagh, que levou dois prêmios no Festival de Veneza, "Peter von Kant", de François Ozon, que abriu o de Berlim em fevereiro, e "Close", de Lukas Dhont, Grande Prêmio do Júri no de Cannes.
Entre os nacionais, estão "Três Tigres Tristes", de Gustavo Vinagre, vencedor do Teddy -voltado a filmes LGBTQIA+- em Berlim, "Pérola", em que Murilo Benício adapta a peça homônima de Mauro Rasi que foi um hit nos anos 1990, e "Regra 34", de Julia Murat, vencedor do Leopardo de Ouro em Locarno. A programação completa está no site do festival.
Menos badalado em termos de prêmios, mas contundente como de hábito na filmografia de seu realizador, Sergei Loznitsa, "O Julgamento dos Nazistas de Kiev" se destaca como um dos grandes documentários do evento. Narrando fatos passados nos anos 1940, mas com certo diálogo com o atual conflito na Ucrânia, o filme é uma espécie de primo de "Babi Yar. Context", de 2021, em que Loznitsa revisitava o assassinato de mais de 33 mil judeus em uma única noite, quando os nazistas tomaram Kiev, em 1941.
O cineasta ucraniano volta a vasculhar imagens de arquivo quase desconhecidas da época para recompor o tribunal que julgou os militares que comandaram as atrocidades alemãs na Ucrânia -alguns trechos, aliás, ele próprio já tinha inserido em "Babi Yar".
"Em 1946, um evento muito importante aconteceu em Kiev: a execução pública de dezenas de comandantes alemães. Mas se você pergunta sobre isso às pessoas na Ucrânia, eu diria que apenas uma a cada cem saberia do que você está falando", diz Loznitsa. "Acho que dou minha módica contribuição ao relembrar esse acontecimento."
O filme remonta aquele julgamento, buscando seguir a cronologia dos fatos. Quando os militares se explicam, alguns assumem prontamente sua culpa, enquanto outros preferem dizer que apenas seguiam ordens ou que estão pagando pelo que agentes não capturados também fizeram. Testemunhas dos crimes de guerra são igualmente ouvidas, e seus relatos são sempre atordoantes.
Há algo de estranho, no entanto, no modo como os acusados se expressam. De acordo com Loznitsa, as falas das testemunhas são autênticas, mas a dos réus, não.
"A principal diferença dos julgamentos de nazistas na Alemanha é que os processos na Ucrânia foram organizados para fins propagandísticos soviéticos", afirma o diretor. "Todas as falas dos réus foram preparadas, e eles foram treinados. O período de interrogatório durou seis meses e existem transcrições das falas verdadeiras, então podemos ver o quanto os discursos foram preparados previamente. Foi diferente dos julgamentos ocidentais, a presunção de inocência nunca esteve lá. Era uma justiça falsa".
O filme faz coro com a obra de Loznitsa em geral, em que ele busca denunciar os excessos do governo soviético -sobretudo de Stálin-, recompondo fatos sobre a Segunda Guerra que foram distorcidos ou ocultados. Tendência que não foi revertida nem após o fim da URSS.
"Nos últimos 30 anos, os historiadores e acadêmicos ucranianos não fizeram o trabalho que deveriam, e o conhecimento desses fatos históricos não foram suficientemente tornados públicos, não viraram parte do conhecimento geral", ele diz.
Talvez essa falta de memória histórica explique um pretenso aumento de grupos neonazistas no país nas últimas duas décadas, conforme denunciam vozes como o cineasta Oliver Stone, no documentário "Ukraine on Fire", de 2016, dirigido por Igor Lopatonok, que Stone produziu. Mas mesmo morando fora da Ucrânia há décadas, em Berlim, Loznitsa diz não acreditar que tal movimento seja efusivo em terras ucranianas.
"Eu pessoalmente nunca entrei em contato com nenhum neonazista na Ucrânia. Em qualquer país existem partidos e grupos ultranacionalistas e geralmente são 1% ou 2% da população. O mesmo vale para a Ucrânia, e os partidos que seguem essa ideologia nunca foram eleitos para o parlamento", diz o cineasta.
"Essa noção geral de que o neonazismo está presente no país é criada pela mídia e propaganda da Rússia, que se dedica a mostrar isso ao mundo. Na verdade, a Ucrânia se radicalizou com a guerra, é fato, mas ainda assim não creio que essas ideias estejam presentes ali como dizem os russos."
A entrevista foi concedida no último Festival de Veneza, em setembro, quando Vladimir Putin ainda não tinha convocado o plebiscito em que, segundo o Kremlin, os habitantes do leste da Ucrânia disseram preferir ficar sob custódia russa, e não mais sob o governo ucraniano. Mas já à época, Loznitsa dizia não crer existir uma animosidade natural entre os dois povos.
"É uma guerra entre duas civilizações: uma totalitária e uma liberal-democrática. Vejo muita gente tentando transformá-la em uma guerra étnica, o que pode nos levar a consequências muito perigosas, como as que o mundo experimentou na Segunda Guerra".
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