SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Ao ouvir os arranjos de corda e de piano, junto às quebras de tempo delicadas de "There'd Better Be a Mirrorball", faixa que abre o álbum "The Car", do Arctic Monkeys, é quase impossível imaginar que se trata da mesma banda que bateu o recorde de disco de estreia --"Whatever People Say I Am, That's What I'm Not"-- vendido mais rapidamente no Reino Unido em todos os tempos.
Do quarteto que fazia um rock de garagem vigoroso, com baterias ágeis e riffs diretos, pouco sobrou em 2022.
Mas há no vídeo de divulgação do primeiro hit da banda, "I Bet You Look Good On The Dancefloor", de 2005, uma dica do que o Arctic Monkeys viria a se tornar. Antes da entrada da bateria estrondosa e do banho de guitarras distorcidas, o vocalista Alex Turner dá um recado --"não acredite no hype".
Em "The Car", álbum que chega ao streaming nesta semana, os Arctic Monkeys solidificam o caminho que vêm seguindo, premeditado pela frase do jovem Turner, desde "Tranquility Base Hotel & Casino". Foi a partir desse disco de 2018 que a banda tirou o pé do acelerador e trocou as guitarras pelos órgãos e pianos num estilo retrô bem distante da farra festiva de seu álbum mais bem-sucedido, "AM", de 2013.
O novo trabalho do quarteto é uma fuga ainda maior do rock balançado e urgente e dos refrões de embalar festivais --o grupo, aliás, encabeça o Primavera Sound, que acontece em São Paulo em novembro-- que marcaram o seu auge comercial. Mas, se não tem o apelo pop de outrora, "The Car" mostra uma banda que resiste à ideia de repetir ideias e virar um cover de si mesma.
Mais importante, é um trabalho que parece fiel ao acompanhar o envelhecimento de seus integrantes. Depois de virar ícone do indie rock mais acessível que floresceu nos anos 2000, os Arctic Monkeys deixaram o cabelo crescer e entraram numa fase um tanto mais sombria, com "Humbug", de 2009, e "Suck It and See", de 2011.
É nessa época que Turner incorpora um arquétipo do roqueiro inatingível, culminando em "AM", álbum de rock feito para os estádios e pistas de dança, com um toque de sensualidade e mistério. O vocalista adotava uma persona blasé com visual no estilo de "Grease - Nos Tempos da Brilhantina", gel no cabelo, óculos escuros e jaquetas de couro.
Se Turner fez fama escrevendo letras cheias de sacadas sobre histórias urbanas de uma juventude boêmia nos pubs de Sheffield, cidade natal da banda, hoje, aos 36 anos, ele não poderia ter uma abordagem mais onírica. É difícil distinguir personagens e histórias lineares nas músicas de "The Car", em que o vocalista cria cenas enigmáticas para construir um mosaico poético que dialoga mais com a emoção do que com a razão.
Nisso, há uma diferença substancial em relação ao último trabalho do Arctic Monkeys. Ainda que soe aéreo, "The Car" não tem a pegada de ficção científica de "Tranquility Base Hotel & Casino", um álbum conceitual que cheira a David Bowie e é ambientado na Lua.
"Não fique emotivo, não é sobre isso. O ontem ainda está vazando pelo quarto", ele canta, cheio de ternura, na faixa de abertura, pronunciando cada palavra com a clareza de quem está com a boca quase colada no microfone. Hoje, Turner soa cada vez mais como um crooner, indo dos graves profundos a versos cantados inteiramente em falsete.
Esteticamente, as orquestrações dão a cara de "The Car", uma obra extremamente melódica e sentimental, que soa como um filme europeu dos anos 1970 e lembra os álbuns iniciais da carreira solo de John Lennon. Tudo isso costurado por uma melancolia sutil, que se insinua mas nunca chega a dominar totalmente o sentimento das músicas.
Em praticamente todas as faixas de "The Car", as baterias são delicadas, como se fossem tocadas com as pontas dos dedos, e os fraseados de guitarra surgem aqui e ali, como apenas mais um elemento dentre as camadas de cordas e órgãos. Se "I Ain't Quite Where I Think I Am" tem algum balanço, lembrando outros momentos do Arctic Monkeys, todo o resto mal parece ter sido feito por uma banda de rock.
E, de fato, desde "Tranquility Base Hotel & Casino", a construção das obras do grupo tem ficado cada vez mais centrada na figura do vocalista. Turner, hoje morando entre Londres e Paris, compõe no piano e grava versões demo de praticamente tudo antes de chamar os outros integrantes para acrescentar suas partes. O Arctic Monkeys é cada vez mais um reflexo de seu líder, ainda que ele não seja o mesmo de anos atrás.
Isso é algo que, de maneira indireta, ele parece assumir em "Big Ideas", música definida na letra como "a balada do que poderia ter sido". É como se Turner dissesse que não é mais capaz de sustentar a figura do rockstar, o rosto de uma geração, que leva à banda ideias geniais de grandes hits, como no passado.
Soa como uma recordação saudosa do grupo no palco, com o foco de luz apontado para si, tocando em grandes festividades --como nas Olimpíadas de Londres, há dez anos-- e levando o público à histeria. "Mas agora as orquestras nos cercaram, e eu não consigo de jeito nenhum me lembrar de como isso funciona", ele canta.
Nessa linha, "The Car" resulta em um disco sem hits evidentes, possivelmente a obra menos pop e carismática da carreira do Arctic Monkeys. É um álbum que combina muito mais com uma vitrola e um quarto escuro num momento de reflexão do que com a comunhão de milhares à frente de um palco de festival.
Se o preço de se manter verdadeira é chegar a menos gente, a banda parece disposta a pagar. Afinal, se agora, envolta em orquestras, ainda resta algo da época das camisas polo desgrenhadas, isso é a crença de que o hype não vale a pena.
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