SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 1951, o estudante Bruno Furlanetto não conseguiu acompanhar todas as récitas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Afinal, eram vários os concertos, o dinheiro era pouco e ele passava a maior parte do tempo na faculdade de direito. Mas, aos 90 anos, ele ainda se lembra do espanto de ter assistido ao nascimento de uma rivalidade que entraria para a história da música.

No Municipal do Rio, cantaram na mesma temporada Renata Tebaldi e Maria Callas, as duas sopranos mais famosas do século 20. Funcionário do teatro, Furlanetto conta que Tebaldi causou furor na plateia, com sua atuação em "La Traviata", de Giuseppe Verdi.

"Foi um sucesso monumental, fiquei deslumbrado, porque ela tinha uma voz lindíssima", diz ele. Segundo Furlanetto, Callas não teve tanto sucesso com "Tosca", de Giacomo Puccini, motivo de desagravo para a cantora de origem grega. As divas se revezavam nas óperas, concordando que não dariam "bis" para não ferir o orgulho alheio.

Tebaldi não cumpriu o acordo e ainda substituiu a rival numa das récitas. Enfurecida, Callas deu um ataque, arremessando um tinteiro de mármore na cabeça do organizador da temporada. Depois do episódio, ela nunca mais cantou no Brasil. Já Tebaldi, esteve no país nos três anos seguintes, se apresentando no Municipal de São Paulo, que, agora, em seu centenário, organiza duas noites de gala em sua homenagem.

Sob a regência de Roberto Minczuk, a orquestra do teatro resgata o repertório executado há 71 anos, com a soprano italiana Maria Pia Piscitelli, o tenor, também italiano, Marco Berti, o baixo Rodolfo Giugliani, além do Coro Municipal.

No programa do concerto, constam árias como "Pace, Pace Mio Dio", de "La Forza Del Destino", de Verdi, "Vissi D'Arte", excerto de "Tosca", outra vez Puccini, e "La Mamma Morta", da ópera "Andrea Chénier", composta por Umberto Giordano.

Berti e Piscitelli concordam que a voz de Tebaldi era incomparável entre as cantoras de sua geração. "Era uma artista muito sensível, com doçura e sensibilidade, sabendo sublinhar o texto que cantava", afirma Piscitelli. "Ela se transformou na voz da ópera no mundo."

Filha de um violoncelista e uma enfermeira, Tebaldi nasceu na pacata Pésaro, na região central da Itália. Nos primeiros anos de vida, quase morreu, vítima da poliomielite. Foi também na infância que se interessou pelo canto, mentindo a idade para, aos 16 anos, ingressar no conservatório. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o maestro Arturo Toscanini convidou a jovem para cantar na reabertura do Teatro alla Scala, em Milão.

Depois do concerto, Tebaldi ganhou de Toscanini o apelido que a acompanharia por toda a carreira -a voz de anjo. Seu repertório pendia entre toda obra verdiana e o verismo, uma corrente da ópera que surgiu no fim do século 19. Em última instância, a soprano levou a tradição italiana ao mundo, impressionando as plateias do Covent Garden, em Londres, e do Metropolitan, em Nova York.

Tebaldi foi mesmo uma cantora ímpar. A gravação de "Pace, Pace Mio Dio", de 1959, revela sua destreza técnica, em meio ao desespero da personagem Lenora, que reza para morrer em paz. O tema inicial, "andante", imprime a tensão, fenecida no solo da flauta e no dedilhado da harpa.

Como nenhuma outra soprano de peso intermediário, ela empurra a primeira sílaba ("pa"), arrastando a nota inicial no tempo até encontrar a segunda nota, o fim da palavra ("ce"), num perfeito "legato", termo que se refere à técnica de ligar duas notas sem estabelecer pausas entre elas. Dramática, exclama por três vezes "maledizione!" -maldição, em italiano-, encontrando altíssimo si bemol.

Por ironia, o apogeu de sua carreira se deu entre os anos 1950 e 1960, no momento de maior rivalidade com Callas -a tigresa, que completa cem anos em 2023. Para o mundo moderno, elas desenharam a figura da diva, conceito presente na ópera antes de se banalizar em passarelas e telas. A palavra "diva" vem de deusa e pode ser usada como sinônimo de prima donna, a principal cantora de uma casa de ópera.

Em geral, o termo designa o comportamento autorreferente das sopranos, sempre vaidosas, às vezes irascíveis. A disputa entre as primas-donnas, duas lindas mulheres, era alardeada nos jornais da época.

"Tebaldi é um violino Stradivarius tocado por um diletante; eu, um instrumento comum tocado por um gênio", disse Callas, venenosa. Em outra ocasião, descartou qualquer semelhança entre as duas -"seria comparar champanhe com conhaque". A soprano italiano preferia ser mais direta. "Tenho uma coisa que Callas não tem: um coração."

Naquele tempo, a imprensa brasileira acompanhou de perto a rivalidade. Em 1958, a Revista da Semana louvou Tebaldi como a melhor cantora em atividade, proferindo vitupérios contra a tigresa. No mesmo ano, uma manchete do Correio da Manhã alardeava - "não fizeram as pazes as duas cantoras".

A dupla tinha um temperamento bem diferente. Callas, que só se vestia de Dior, era intratável, um modo de esconder as tragédias amorosas que acumulou em vida. Tebaldi, usava os vestidos do ateliê milanês Rosita Contreras, nunca se casou e não abria a vida pessoal para a imprensa. Na visão de Piscitelli, a rivalidade foi muito estimulada pela imprensa, tanto que as duas cantoras chegaram a fazer as pazes, depois de um concerto no Metropolitan, em 1968.

Na tarde desta quarta (26), Piscitelli, bronzeadíssima, fez o primeiro ensaio para a gala. Usava um vestido simples, verde e florido, mas mantinha certa fleuma. Com as mãos nos bolsos, parecia não se esforçar na interpretação das árias. "Eu não sou uma diva", diz ela, que canta na Ópera Estatal de Viena e no La Scala. "Só quando estou em cena, depois, sou uma mulher como todas as outras."

No intervalo do ensaio, Minczuk, o regente, contou que o símbolo da prima donna ainda exerce fascínio entre as pessoas. "Todas as pessoas reclamam das divas, mas sem elas não há a menor graça, elas são heroínas, como todo cantor lírico tem que ser", afirmou. "A ópera é um mundo de beleza e glamour."

ÓPERA GALA - TRIBUTO À RENATA TEBALDI

Quando Sex., 20h; sáb., às 17h

Onde Theatro Municipal de São Paulo - pça. Ramos de Azevedo, s/nº

Preço R$ 10 a R$ 60

Classificação Livre

Elenco Roberto Minczuk (regência), Maria Pia Piscitelli (soprano), Marco Berti (tenor) e Rodolfo Giugliani (barítono), Orquestra Sinfônica Municipal e Coro Lírico Municipal


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