PARATY, RJ (FOLHAPRESS) - Uma quadrinista que não escreve cartuns delicados e sensíveis como a sociedade espera, mas aborda com violência temas como aborto, estupro, e as pequenas indignidades que fazem parte do cotidiano das mulheres. Uma poeta e contista que questiona os ideais de beleza feminina de certas elites e a visão da maternidade como algo sagrado, sem falhas.

Na mesa "Dançar a palavra", no terceiro dia da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a cartunista e quadrinista Fabiane Langona e a poeta e contista argentina Cecília Pavón, uniram-se para discutir como contestam clichês sexistas por meio da literatura e das artes visuais.

Um dos cartuns de Langona, exibido nos telões da tenda principal da Flip, mostrava uma mulher fazendo um aborto, olhando para o rosto do bebê e enxergando ali os traços do homem que a havia estuprado. O cartum, feito para uma revista, acabou censurado pelo editor da publicação, que achou a obra muito violenta.

"O desenho não é mais violento do que as situações que as mulheres enfrentam no cotidiano", disse a gaúcha Langona, autora de vários livros, que publica uma tirinha diária na Folha, "Viver dói."

Ela é conhecida pelo teor feminista e político de seus desenhos. Apesar de haver o estereótipo de que artistas visuais ou cartunistas farão desenhos "sensíveis", delicados, ela enfatizou a importância de usar imagens violentas em determinadas circunstâncias. "Violência, sanguinolência, às vezes são a única forma de passar uma mensagem e atingir objetivo."

O mediador da mesa, o escritor Joca Reiners Terrón, mencionou um cartum de Langona que retrata o corpo de uma mulher com divisões semelhantes às de desenhos de boi no açougue, e com frases tipicamente machistas endereçadas às mulheres.

"Quem nunca se sentiu assim passando na rua? Muitas mulheres se identificaram com essa objetificação constante, que acontece não só nas ruas, mas também na publicidade e no cinema."

A argentina Pavón, que emergiu da cena underground argentina dos anos 90 e é considerada uma das principais poetas do país, usa aspectos do cotidiano para questionar "verdades" sobre as mulheres. Para ela, é importante que o humor possa lidar com temas considerados tabu, como aborto e maternidade. "A maternidade é sempre tratada de forma solene, sagrada, e é preciso entender que a maternidade também tem seus fracassos, e precisa ser alvo do humor", disse Pavón.

"A minha literatura também tem a ver com isso, com a ideia de que as mães não precisam ser sempre exitosas, podem fracassar, é uma experiência humana."

Terrón citou um conto de Pavón intitulado "I want to be fat" (Quero ser gorda), de 2008, com epígrafe "everybody deserves to be fucked" (todo mundo merece transar), em que grupo de mulheres usam roupas com espumas para parecerem mais gordas e saem pela cidade em uma espécie de "happening" artístico.

A argentina afirmou que as artes visuais foram muito importantes para ela como escritora desde que ela co-fundou a editora e espaço artístico Belleza y Felicidad no fim dos anos 90, na Argentina. "As artes visuais se mesclam à literatura, a escrita é também uma performance."

No conto, as mulheres vão a bairros de classe alta em Buenos Aires onde há um pressuposto de que as mulheres precisam ser muito magras e se vestir de determinada maneira.

"Não temos pelo, não suamos, estamos impecáveis, bela, recatada e do lar, é surreal essa cobrança social da perfeição", disse Langona, acrescentando que seus quadrinhos que fazem humor sobre certos temas considerados tabu pelas mulheres, como aqueles que humanizam uma mãe que não está com vontade de ficar com o filho naquele dia, geram reações ambíguas. "As mulheres se identificam, mas ao mesmo tempo se ofendem."

Ao final da mesa, perguntada sobre a necessidade de termos heroínas mulheres na literatura e nos quadrinhos, Langona concluiu: "As heroínas estão aí nas ruas todos os dias, andando de ônibus, trabalhando, vencendo suas dificuldades".


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