PARATY , RJ (FOLHAPRESS) - A manhã deste domingo (28) trouxe à Casa Folha, na Flip, a francesa Annie Ernaux, que venceu o Prêmio Nobel de Literatura no mês passado, em um diálogo com o jovem escritor carioca Geovani Martins.

São dois autores celebrados por obras muito diferentes e distantes em geografia e geração, mas que revelaram pontos de contato insuspeitos e uma admiração mútua que tornou a mesa o testemunho de uma troca de experiências.

Um exemplo é a maneira como abordam fatos históricos dentro de seus livros --se Ernaux escreve sobre recortes de sua vida em obras como "O Lugar" e "Os Anos", Martins criou ficção partindo da linha do tempo da instalação das UPPs no Rio de Janeiro no romance "Via Ápia".

"É necessário incluir o pessoal dentro de um contexto histórico, porque fatos políticos têm incidência no destino de cada um de nós" disse Ernaux. "Oito dias depois que me vi grávida e sem vontade de ter o filho, Kennedy foi assassinado. Aquilo para mim não tinha a menor importância, mas precisei mencionar para situar o que estava contando."

Martins afirmou que quis registrar aquele período específico do Rio a partir de histórias que não foram vistas, na "perspectiva intimista" dos jovens negros que tiveram suas vidas afetadas pela chegada ostensiva da polícia à favela.

Outro ponto de contato foi quando os autores lembraram suas mães. "É doido porque vivemos num lugar com estrutura patriarcal, mas com relações matriarcais na nossa casa", disse o carioca. "Escrevo livros por causa da minha avó, uma grande contadora de histórias, e da minha mãe, que me levava na Bienal do Livro. Falar sobre mães pretas é falar sobre a criação do país."

Ernaux disse que, ao escutar Martins, ficou pensando que sua mãe era uma "mulher potente num mundo que as submete aos homens". "Minha mãe era a pessoa forte do casal. Ela sempre amou ler, encorajava que eu lesse o tempo todo. Quando eu falei a ela com 20 anos que queria ser escritora, ela disse 'se eu soubesse na época, eu também quereria fazer isso'."

A francesa voltou a tocar num dos pontos-chave de sua obra, a descrição crua do aborto clandestino que fez quando era universitária, no livro "O Acontecimento". Ela afirmou ter escrito com a intenção de que nenhuma mulher mais vivesse uma situação como essa.

"Eu descrevi em detalhes o que houve para que se soubesse como é. No hospital a gente é desprezada, tratada como cadela. A proibição é algo imposto por um poder masculino e religioso e que fere a dignidade das mulheres. Como é que podemos aceitar isso?"

O diálogo direto entre os escritores voltou quando surgiu o tema da educação como meio de mobilidade social.

"Estudar, para uma população que foi escravizada e nunca teve reparação histórica, era a única saída para ter perspectiva de futuro", disse Martins. "Minha mãe tinha uma convicção forte disso, dizendo que eu precisava estudar para romper com tudo isso. Mas no fim o diploma também não resolve, o que resolve é o contato, o que chamo de privilégio da mediocridade branca."

Ernaux, que foi professora de escola pública, afirmou que o sistema educacional francês é um funil invertido --poucos chegam até o fim, sendo progressivamente eliminados.

Durante toda a mesa, a Nobel de Literatura demonstrava vontade de escutar e responder diretamente às reflexões de seu jovem interlocutor, cuja obra já declarou admirar.

Ao final da mesa, ela disse que o livro de contos "O Sol na Cabeça", que fez Martins despontar, "foi uma revelação" para ela. "Tive a impressão de viver realmente com aquela população tão forte e viva da favela. Senti uma fraternidade mesmo não sendo brasileira."

Ela em seguida pegou seu exemplar do livro e leu um trecho que havia sublinhado porque a havia feito pensar. Depois, o próprio Martins leu a página na edição brasileira.

Ele afirmou que "Os Anos", livro em que Ernaux escreve sobre sua vida com maior amplidão cronológica, foi uma leitura importante para ele e "um dos poucos livros de autores brancos que li esse ano, mas preencheu bem a cota".

Em seguida, ao comentar que conseguiu identificar sua própria juventude nas páginas escritas pela francesa, elogiou a capacidade da literatura em conectar tempos e espaços tão afastados --exatamente, por sinal, o que aconteceu neste encontro na Casa Folha.

Ao se despedir, a Nobel de Literatura agradeceu pela acolhida efusiva dos últimos dias e disse que "nunca iria esquecer" sua estada no Brasil. O evento foi realizado em parceria com a Casa República.org.


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