RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - No verão carioca de 1982, uma turma de saudáveis malucos liderada por Perfeito Fortuna ergueu no Arpoador a lona do Circo Voador. No mesmo ano, a estrutura se mudou para a Lapa, onde cravou seu lugar na história da música brasileira a partir de projetos como Rock Voador ?série criada por Maria Juçá, que iniciava ali sua história com a casa da qual hoje é a diretora.

Ao longo dos últimos 40 anos, o espaço foi um dos definidores da cena do rock brasileiro dos anos 1980. Abriu-se para a geração de Chico Science, Nação Zumbi e Planet Hemp. Firmou-se a partir de 2000 como o palco maior de revelações como Letrux, Rubel, Siba e Metá Metá.

Recebeu espetáculos históricos de grandes nomes brasileiros ?Gal Costa, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto, Jards Macalé, Marina Lima, Gilberto Gil, Tom Zé, Paulinho da Viola? e internacionais ?de Ramones a Franz Ferdinand. Virou salão de bailes como a Domingueira Voadora (pilotada por Severino Araújo e Paulo Moura) e o Baile do Almeidinha (de Hamilton de Holanda).

Em meio à celebração dos 40 anos, a Folha de S.Paulo convidou artistas que passaram pela lona e que a representam de alguma forma a fazerem perguntas a Juçá. Na entrevista, a diretora do Circo fala dos desafios de gerir o espaço e tenta explicar a sua tão propalada "magia".

Também menciona o fechamento da casa em 1996, logo após o prefeito eleito Luiz Paulo Conde ter sido vaiado lá ao ir comemorar sua vitória nas eleições, num show da banda punk Ratos de Porão. A casa só seria reaberta em 2004.

Hamilton de Holanda: Juçá, como foi para você no começo enfrentar o ambiente do show business masculino e machista?

Juçá: O primeiro contato era com desconfiança. Num ambiente quase que inteiramente masculino, a cultura machista não dava crédito para uma mulher, ainda mais totalmente fora dos padrões: jaqueta de couro, tatuagem, olhar de superioridade. A dúvida era se eu aguentaria a levada do rock, mas algumas bandas se colocavam deliberadamente numa postura de proteção, talvez alimentadas pelo sentimento que nutriam pelas mulheres, vistas como sexo frágil. Era algo totalmente machista também.

Tom Zé: Será que o Circo tem ideia do conjunto de emoções que se soma ao próprio encanto de se apresentar num palco tão emocionante e olímpico?

Juçá: Ideia a gente tem alguma, mas não há muito tempo para sentir os prazeres de tão nobres sentimentos. Percebo as alterações no brilho dos rostos das pessoas, tanto dos artistas quanto do público, quando um show começa e quando termina. Aquele tempo de troca de emoções entre palco e plateia coloca todo mundo no paraíso de Baco. Saímos dali achando que se aquilo é pecado, o inferno é o nosso destino. Como disse Chico Buarque: "Não existe pecado do lado de baixo do Equador". O Equador é a Lapa profana com seu filhote libertário: o Circo Voador. E você é a nossa catedral, nosso espelho e nossa combustão.

Kiko Dinucci: Juçá, vale a pena doar tanto tempo da sua vida à cultura? Bate um desânimo? Ou tudo se justifica quando você vê o Circo Voador cheio num ritual sem igual?

Juçá: Eu sempre digo que faço o que gosto, e isso vale a pena, apesar de todos os perrengues que já passei. Eu seria muito infeliz contando latas de sardinha para vender em supermercado, ou contando dinheiro. O desânimo nunca bateu, mas cansaço, sim. Muitas vezes. O Circo Voador passou por situações difíceis como o fechamento do espaço pelo período de oito anos. Depois, foi reaberto pela ação popular movida por mim e com apoio manifesto de 15 mil pessoas.

Então, quando vejo o Circo Voador cumprindo seu papel de alavanca propulsora para a carreira de novos artistas, o encontro de artistas consagrados e novos, num convívio entre contradições onde todos se tornam iguais, sinto o sabor da vitória e fico totalmente recompensada.

Mahmundi: O Circo além de ser uma casa de shows é também um lugar de criação, ensaios, invenção, em uma série de projetos que passam dentro dele. Qual ou quais projetos que passaram por lá foram importantes para trazer mudanças para o próprio espaço?

Juçá: No princípio, o Rock Voador, a Domingueira, o Domingo do Corpo, entre outros, colocaram o Circo na vanguarda, mas o projeto Favela Festa ?um festival que durava três dias e que trazia a produção da arte criada nas favelas cariocas, reunindo música, teatro, cinema, artes plásticas, moda e dança? foi o que costurou a vanguarda das vanguardas.

A favela como patrimônio artístico e cultural, como centro de efervescência e criatividade. A cada noite, o hip hop, o funk, o samba tomavam conta de todos os espaços do Circo. Artistas como Luiz Melodia, Elza Soares, Flávio Bauraqui, Ivo Meirelles e baterias das escolas de samba, Mr. Catra, Junior e Leonardo, entre outros consagrados, apadrinharam as edições em gestos de carinho para com a rapaziada que estava chegando.

E ali tudo se misturava numa absoluta certeza que a arte é capaz de colar o que o homem descola. Outro projeto enriquecedor foi a Mostra Livre de Arte, a Mola, onde alunos de faculdades de arte, professores e coletivos diversos traçavam um painel da diversidade da arte popular brasileira. Do Amor, Os Azuis, Ska Jazz Favela Beats, Curumin e Mallu Magalhães foram alguns dos artistas que passaram pelo evento quando estavam começando.

Guto Goffi: Você sabe que, além de termos tocado na lona do Circo Voador no Arpoador no verão de 1982, o Barão Vermelho lançou o primeiro disco na lona da Lapa. Estamos muito ligados a essa história de 40 anos. Quero saber de você se a transgressão oferecida por essas bandas que começaram lá, com nossas músicas e atitudes, ajudaram a construir a imagem libertária que o Circo tem no cenário nacional.

Juçá: Com certeza as bandas traduziam no palco e nos seus trabalhos o que queríamos dizer. E essa é uma das mais viscerais funções da arte, especialmente da música. Bandas como Barão, Paralamas, Titãs, Legião Urbana, Lobão, Blitz, RPM, Camisa de Vênus, Kid Abelha, Inocentes, Cólera, Ratos de Porão, Racionais MCs, Coquetel Molotov, Plebe Rude, Capital Inicial e tanto outros abriram passagem para uma geração anos 1990 riquíssima. Daí vieram Planet Hemp, Chico Science, o Rappa, Cássia Eller, Cidade Negra, Skank, Pato Fu, Boato com Pedro Luis, Cabelo, Los Hermanos, Raimundos, Jota Quest, Obina Shock.

Esses músicos se encontravam debaixo da mesma lona com Caetano Veloso, Gil, Chico, Ney Matogrosso, Melodia, Benjor, Elza, Angela Ro Ro, Hermeto Pascoal e por aí vai. O Circo Voador é o resultado de toda essa pororoca musical que se chama Brasil.

Hoje temos uma cena maravilhosa, caminhando pela trilha traçada por Marcelo D2, Black Alien, BNegão, Mano Brown e todos os que pilharam a juventude para se atirar no hip hop e no funk. Artistas como Criolo, Emicida, BK, Djonga, Xamã, Filipe Ret, entre outros, e a explosão do funk, capitaneada pelo sucesso internacional de Anitta, Ludmilla e muitos outros nomes, vem conquistando o mundo e fortalecendo os novos.

Letrux: Juçá querida, acredito que você deva ter 12 mil histórias mirabolantes sobre os 40 anos do Circo, mas em datas celebrativas, e nos tempos difíceis que correm, gosto de lembrar dos ataques de riso. Você lembra de algum episódio no qual você tenha chorado de tanto rir no Circo Voador?

Juçá: Lembro de uma situação que vivi com a Made In Brazil, banda ícone do rock, fundada nos anos 1960. Convidei a banda para se apresentar no meu programa Rock Voador, que acontecia sempre aos sábados, e que estava se transformando num ponto de observação das gravadoras, imprensa e empresários do meio musical. Isso era 1984.

A banda chegou com uma carreta de som que a gente nunca tinha visto na vida. Nosso som era raquítico naquela época. A gente ficou olhando meio cabreira para aquela coisa gigante e aqueles homens de preto, com roupas tacheadas e pulseiras medievais de couro com pontas que mais pareciam armas de guerra.

O vocalista se chamava Cornelius Lúcifer. Eles próprios montaram o som e luz, nos ignorando totalmente. Invisíveis na arquibancada nos sentíamos um piolho do rock. De repente, a gente se olhou, olhamos para a cena e caímos num ataque de riso incontrolável. As lágrimas desciam do rosto. Durante a passagem de som, era tão potente a resposta daquele mar de caixas, amplificadores e pedaleiras que nada mais era possível acontecer além de volume. E quanto mais assistíamos a passagem de som, mais ríamos. Parecia aquela situação de quando a gente experimenta o primeiro baseado e fica rindo da própria lerdeza.

Jorge Du Peixe: Qual foi a primeira impressão que você teve em relação à reação do público no primeiro show do Chico Science e Nação Zumbi no Circo Voador?

Juçá: Foi assim: "O mundo mudou!" Lembro de ter ficado extasiada com a revolução que estava assistindo e que se passava dentro do Circo Voador. Chico Science e Nação Zumbi influenciaram não só os músicos de sua geração, mas estenderam sua influência para um raio com dimensão planetária. A ousadia de trazer a música regional, numa simbiose com música eletrônica e ensaios de hip hop, trouxe uma trama musical não existente.

Otto: Minha querida Juçá, o que faz do Circo Voador esse lugar tão especial para todo mundo que sobe ao palco ou assiste aos shows. Que energia é essa? Que magia é essa?

Juçá: Macumba. O Circo é macumbeiro. Os tambores que batem ali não batem em outros lugares. Todo músico é macumbeiro. Imagina o trabalho de tantos artistas, trazendo seus espíritos e seus ancestrais, se juntando ao público que para cá vem disposto a soltar o espírito da prisão, das amarras e amar a vida livremente, transpirando o que a gente chama de magia. Veja você, Otto! O que acontece nos seus shows, onde todos, músicos e plateia, saem como se tivessem tomado um banho de luz. É muito bonito isso. Não tem explicação. É só sensação.

Juçara Marçal: Fico pensando no equilíbrio entre o sonho e as questões com patrocinadores, fechar as contas com bilheteria. Como é lidar com esse embate que, imagino, seja constante e seja uma equação difícil de resolver? De um lado, o desafio de manter a filosofia do Circo de sempre apresentar novidades e a pluralidade da música e, de outro, lidar com as questões financeiras, que impelem a busca de grandes nomes para garantir grandes públicos.

Juçá: Essa é a parte mais árida, mas também a mais mágica. O Circo vive a economia do caos em seu mais puro e absoluto sentido. Não há regra. Ganha dinheiro, paga e cria. Quanto mais ganha, mais cria. São investimentos em artistas novos para manter sua função, investimentos em projetos sociais, como nossa escola na rua Joaquim Silva, que atende 500 jovens e adultos em cursos livres gratuitos, a nossa creche para cem crianças em horário integral, nossa escola livre de artes com oferta de oficinas dentro da própria lona e também a construção permanente do nosso acervo.

Tudo isso são programas do Circo para a gente esticar nossos recursos. Há um tempo, pedi e ganhei de um economista, ex-professor da Fundação Getúlio Vargas, um plano de viabilidade econômica que pudesse dar uma orientação sobre os caminhos da economia que o Circo Voador deveria seguir. Depois de duas semanas de acompanhamento de nossas atividades, da potência do trabalho que desenvolvíamos e da agilidade com que as coisas rodam dentro do Circo, ele, que na hora do sufoco era alçado à função de vendedor de ingresso e caixa de pagamento instantâneo, nos deu o veredito: "Não mexam nisso. Isso aqui é a economia do caos e funciona perfeitamente".

Temos hoje o apoio da Heineken, o que facilita muito a manter nossos programas sociais. A saúde financeira do Circo é um malabarismo constante, que emite sinal de sirene às vezes ?é a parte mais cansativa. Mas fazemos essa alquimia equilibrando shows de artistas consagrados e novos.

Mart'nália: Meu ano começa só depois do show no Circo, abrindo o verão em janeiro. Me sinto muito energizada para encarar o ano todo. E muita gente fala isso para mim também, que se sente da mesma forma. Você sabe dessa importância do Circo para a vida do artista e do público? Como é fazer parte assim da vida das pessoas?

Juçá: Nenhum verão começa no Circo Voador sem o seu show. Isso é tradição. Nada é mais carioca, mais alegre, malicioso e sensual do que o show da Mart?nália. Um beijinho, um abração, um riso aberto, muito samba e lá estamos nos acabando no samba no pé, para quem sabe sambar, ou mesmo nos rebolados mais desajeitados de brasileiros e estrangeiros que se jogam nessa festa. E lá vem o verão carioca pronto para sacudir tudo o que não presta, liberar geral e se largar pela cidade.

Os artistas e o Circo vão se aconchegando um com outro até chegar ao ponto máximo onde tudo vira família. Acredito que seja essa harmonia que a gente procura na vida. No Circo não tem contratante e contratado. Tem é cumplicidade. Nossa vida é assim com som e confusão, cor e paixão. Me sinto amiga de todos os artistas que ocupam o Circo, mas com um pouquinho de cerimônia porque senão vira caso.

Jonathan Ferr: Quais os planos do Circo Voador enquanto agente cultural potente, para fomento das novas cenas artísticas do Rio de Janeiro, que comumente precisam ir para São Paulo para ganharem a visibilidade que o Rio não entrega?

Juçá: Nós somos realmente potentes e nosso recorte é fortalecer, trabalhar com os novos para criar cena, formar plateia, estreitar o tempo entre o trabalho dos artistas e seu público. Temos uma vantagem sobre São Paulo porque concentramos num mesmo palco a diversidade da música. Nosso esforço é concentrado. Essa é também a percepção dos artistas de São Paulo e dos demais estados. O Circo é um território de encontros da música no Rio. Em São Paulo, felizmente os artistas têm mais campo, mais dinheiro, mas isso provoca uma dispersão.

Gostaríamos de ter recursos para abrir projetos mais constantes para a nova cena, mas precisamos nos manter em campo porque temos outros braços abertos que incluem os nossos programas sociais. Isso sai das mesmas receitas que resultam nos shows. Vamos continuar buscando os novos. Sei que é muita gente. Precisamos mais. Quem sabe se quando esse desastre de governo acabar, o novo governo possa se comprometer em promover encontros entre empresários, produtores e artistas para que a cultura seja tratada como um produto essencial para nossas vidas.

Jards Macalé: Juçá, o seu circo, que se transformou em nosso Circo, que sempre me acolheu tão bem, faço essa pergunta: com quantas lonas se faz um Circo Voador?

Juçá: Macalé, a primeira lona é a nossa pele, depois vêm as outras camadas. "Tô na lona" é estar sem dinheiro. "Beijar a lona" é perder o round. "Esticar uma lona" é improvisar uma moradia. Para chegar na lona sonora do Circo Voador, a gente atravessa todas essas anteriores. O bom dessa história é que essa lona é nossa, é da Lapa, é do Rio, é do Brasil, é do mundo. Ninguém vai meter a mão. Se ela furar, a gente se junta e coloca mais uma camada.

Como me gritava o mendigo da Lapa sempre que me via: "Aí, loura, a Lapa é nossa". Que o diga Amir Haddad, Augusto Boal, Henrique Diaz, Raul Mourão, Cabelo e tantos outros que montaram seus tetos ali, bem pertinho dos Arcos.


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