FOLHAPRESS - Centenas de canoas posicionadas estrategicamente no mar, lanças com miras certeiras, flechas que alcançam longas distâncias e gritos de guerra. Importantes batalhas do Brasil quinhentista, que não raro terminavam em rituais antropofágicos, ganham vida nas descrições requintadas do jornalista Rafael Freitas da Silva, autor da biografia "Arariboia: O Indígena que Mudou a História do Brasil", publicada pela Bazar do Tempo.

Da etnia temiminó, Arariboia nasceu provavelmente em 1520 e morreu em 1589. Batizado como Martim Afonso de Souza, liderou indígenas para lutar ao lado dos portugueses contra os ocupantes franceses do Rio de Janeiro, aliados dos tamoios. Arariboia cobrou pelos seus esforços e recebeu extensão significativa de terras e uma pensão do governo.

Fruto de um trabalho intenso de pesquisa em fontes primárias, sobretudo relatos dos jesuítas dedicados à catequização dos povos originários do Novo Mundo, "Arariboia" ganha ainda mais importância no Brasil de hoje.

Passados mais de 500 anos dos primeiros conflitos, agora não são os conquistadores europeus os seus algozes. Indígenas estão sob uma ameaça doméstica incessante com a devastação de seus territórios em nome da mineração e do agronegócio.

Nesse sentido, a biografia do indígena Arariboia colabora para ampliar a visão dos não indígenas a respeito daqueles que já estavam na América quando chegaram os colonizadores. Colabora porque ajuda a construir um panorama mais integral de um indivíduo. Ao individualizar a história de Arariboia, o autor lhe devolve uma humanidade que lhe foi extraída enquanto coletivo. Com a humanização restaurada, o que se enxerga é um personagem complexo e contraditório, como toda pessoa.

Parte dessa desumanização dos indígenas, aliás, é fruto de um imaginário fomentado pela própria literatura, como aponta o escritor Cristino Wapichana. Em um artigo publicado na revista Quatro Cinco Um, o autor aponta que "Macunaíma: O Herói sem Nenhum Caráter", de Mário de Andrade, reforçou um persistente sentimento anti-indígena no país.

Mesmo com a virtude de resgatar as nuances do personagem, a biografia não consegue se descolonizar. Todavia, tal impossibilidade é fruto da própria colonização do conhecimento. As fontes primárias todas estão contaminadas pela visão do conquistador, as secundárias beberam na mesma fonte. Não parece, entretanto que fazer o caminho inverso seja viável. Para demonstrar o ponto de vista do biografado, a alternativa seria escrever ficção, que não é a proposta da obra, que preenche importante lacuna sobre Arariboia.

Um exemplo de como a colonização afeta a construção da linha do tempo é que momentos como batizado de Arariboia ?já adulto?, casamento em cerimônia católica e "santa unção" antes da morte são aqueles que ganham relevo na história, uma vez que foram registrados de algum modo pelos jesuítas.

Em passagens de contexto histórico, há relatos de como os padres atuavam para "moralizar" as relações, impondo que os portugueses se casassem com as indígenas com quem tinham relações ?não necessariamente consensuais. Prejudicada pelo ponto de vista exclusivo do europeu, esses relatos escondem uma realidade brutal em que as mulheres indígenas eram frequentemente estupradas.

Mas é sabido que os jesuítas atuaram em favor dos indígenas brasileiros em diversos momentos da história ?apesar da imposição da catequização, não é possível olvidar. Assim, "Arariboia" se soma a outra publicação recente, "A Batalha", de Fernanda Verissimo e Eloar Guazzelli, que sai pela Quadrinhos na Cia, que narra especialmente uma batalha de 1641 nas Missões Guaraníticas, erguidas em território que hoje abrange o Sul do Brasil, Paraguai e Argentina.

No episódio, os indígenas apoiados pelos religiosos emboscaram paulistas que armavam um ataque para sequestrá-los e escravizá-los, as chamadas bandeiras ou expedições bandeirantes.

ARARIBOIA: O INDÍGENA QUE MUDOU A HISTÓRIA DO BRASIL

Avaliação Bom

Preço R$ 76 (248 págs.); R$ 57 (ebook)

Autor Rafael Freitas da Silva

Editora Bazar do Tempo


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