LOS ANGELES, EUA (FOLHAPRESS) - A três horas de barco, numa comunidade ribeirinha do Pará, pessoas de macacão comprido branco, capuz, luvas, máscaras e viseiras caminham lentamente em busca dos moradores nas habitações de palafita. Eles levam na mão um termômetro infravermelho que mais parece uma arminha de brinquedo.
É a equipe do SUS, o Sistema Único de Saúde. que chega em plena pandemia de Covid-19, no final de 2020, numa das cenas mais surreais do documentário "Quando Falta o Ar", dirigido pelas irmãs paulistas Ana e Helena Petta.
"A realidade era mais forte do que qualquer ficção que a gente pudesse inventar", disse Helena, médica infectologista que em 2016 ajudou a criar com a irmã a série "Unidade Básica", primeiro seriado médico de ficção brasileiro, exibido pelo canal pago Universal.
"A ficção tem um tempo diferente, tanto que estamos filmando a terceira temporada só agora e para exibir no segundo semestre de 2023", continuou Helena num hotel em Los Angeles, onde veio para fazer campanha por uma vaga no Oscar. "Havia uma urgência em 2020, eu tinha muitos colegas próximos na linha de frente, e resolvemos filmar. Mas queríamos algo diferente do jornalismo porque as pessoas já tinham visto de tudo."
Vencedor do festival É Tudo Verdade, o documentário tem um ritmo muito diferente das reportagens impactantes de TV. Não tem desespero nas filas dos hospitais por uma cama ou um cilindro de oxigênio, nem políticos discursando contra ciência. As diretoras se focam nos heróis que seguraram a onda da Covid, um grupo formado majoritariamente por mulheres.
"Como disse Albert Camus, em tempos de grandes tragédias, há mais coisas a se admirar nos seres humanos do que desprezar. E acho que encontramos isso", disse Ana. "Encontramos mulheres de grande inspiração que conseguiam, no meio de uma situação limite, encontrar um lugar de humanidade e delicadeza."
"Não ficamos fugindo dos homens, filmamos quem encontramos e, em todos os níveis, as mulheres lideravam, desde chefia, limpeza, enfermagem", disse Ana. "É uma questão bem profunda, não é bom, todo mundo deveria cuidar de todos."
No lugar do corre-corre de um pronto-socorro, comum nos dramas hospitalares da TV, a dupla filma o cotidiano da pandemia em busca de certa poesia, como quando enfermeiras dão um banho de leito num paciente entubado ou uma médica coloca Amado Batista para um idoso doente recém-acordado.
A equipe do documentário, formada por apenas cinco pessoas, percorreu cinco estados brasileiros entre outubro de 2020 e janeiro de 2021, tomando todos os cuidados necessários de maneira "neurótica". Eles se testavam frequentemente, desinfetavam os equipamentos diariamente e se mantinham juntos e isolados fora das filmagens.
Os registros mostram agentes comunitários e médicos do SUS em diferentes ambientes, como o Hospital das Clínicas de São Paulo, um presídio em Salvador, comunidades ribeirinhas na Amazônia e na periferia de Recife. Há também o trabalho das equipes de lavanderia dos hospitais, dos coveiros e dos funcionários que removem corpos nas residências.
No momento, as irmãs inverteram os papéis. A médica Helena está em Hollywood na campanha do Oscar --a lista de 15 pré-indicados sai na próxima quarta-feira (21)--, enquanto a irmã cineasta e atriz Ana está "batendo cartão" numa UBS --as Unidades Básicas de Saúde, parte do SUS-- de São Paulo para protagonizar a terceira temporada de "Unidade Básica". Agora a série será inspirada em casos da pandemia e na relação entre profissionais da saúde e pacientes da comunidade.
"Existe um imaginário construído pelas séries norte-americanas de grandes hospitais chiques e privados, do glamour do médico especialista, do cirurgião", disse Helena, que trabalhou cinco anos numa UBS antes de se especializar no estudo de novas narrativas no audiovisual sobre o universo da saúde e da medicina, tema de seu doutorado na USP.
"Já em 'Unidade Básica', a gente discutia como retratar de maneira diferente e criar um tempo maior de observação na narrativa para trazer outra dimensão do que é o cuidado em saúde."
Desde setembro, Helena está na Universidade Harvard, em Massachusetts, como pesquisadora convidada do Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos. Ela conta que desde 2019 a Escola de Saúde Pública da universidade utiliza episódios da série na sala de aula.
"Os estudantes de medicina querem ser 'House', não querem estar na ponta atendendo doenças prevalentes", disse Helena. "Essas doenças parecem mais fáceis, mas são muito complexas de resolver porque é preciso entrar no universo do paciente, entender onde ele mora, onde trabalha. E a série acabou virando um ótimo recurso educacional."
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