LOS ANGELES, EUA (FOLHAPRESS) - Em uma entrevista, o romancista norte-americano William Faulkner disse, em tradução livre, que "a única responsabilidade do autor é com a própria arte" e "honra, orgulho, decência, segurança e felicidade devem ser colocados em risco para se ter o livro escrito".
Essa imagem do gênio atormentado que deve ser perdoado por todos os seus atos em nome de um propósito maior podia ser atraente e aceitável em 1956, quando Faulkner explicou sua filosofia profissional. Mas certamente ganhou outros contornos nos dias de hoje. E é neste terreno fértil para discussões acaloradas sobre abusos, cultura do cancelamento e obstáculos de vida que floresce "Tár", primeiro filme do diretor Todd Field desde "Pecados Íntimos", de 2006, e indicado a seis categorias no Oscar, na terça-feira (24).
"O ato da criação é totalmente egoísta. Ele não funciona muito bem com a vida cotidiana, não é educado", diz o cineasta na estreia do longa no supertecnológico cinema do Museu da Academia, em Los Angeles, em outubro do ano passado. "Isso me soa como uma justificativa", rebate a atriz Cate Blanchett, protagonista do filme. "Você fala que só funciona fora da vida, mas interpretar algo tão intenso me fez sentir mais viva que nunca."
A vivacidade é percebida na tela. A história da ascensão e queda de Lydia Tár, a maior condutora de música clássica da era moderna, uma discípula de Leonard Bernstein, ganhadora do EGOT (termo para quem tem prêmios Emmy, Grammy, Oscar e Tony) e primeira mulher a liderar a Filarmônica de Berlim, é tão bem conduzida, interpretada e contada que muitos acharam que era a biografia uma figura real.
A revista New York fez um artigo intitulado "49 fatos sobre Lydia Tár". Nas entrevistas, Todd Field lista com precisão os detalhes de vida sua personagem como se fossem verdadeiros. O filme mergulha num realismo obsessivo em suas intersecções com o lado de cá da câmera: no início da trama, Tár está prestes a lançar suas memórias, "Tár on Tár" pela Nan A. Talese, da editora Doubleday, e concede uma longa entrevista em público para o escritor Adam Gopnik, da The New Yorker, dentro do festival produzido pela tradicional revista.
O fabuloso estudo de personagem orquestrado por Field e Blanchett foi até elogiado eloquentemente pelo diretor Martin Scorsese quando "Tár" e sua protagonista levaram os prêmios principais do New York Film Critics Circle, no início de janeiro: "Nós existimos na cabeça dela. Experimentamos só por meio da sua percepção. O mundo é ela. Tempo, cronologia e espaço se transformam na música pela qual ela vive. E não sabemos aonde o filme vai. Apenas seguimos a personagem na sua esquisita e perturbadora estrada rumo ao seu destino final ainda mais estranho".
É uma estrada que parecia pavimentada rumo à glória. Depois das tarefas promocionais em Nova York, onde tem um embate antológico sobre Bach com um jovem estudante de música, Tár, vivida por Cate Blanchett, retorna para suas funções em Berlim, onde prepara sua filarmônica para a gravação ao vivo da única grande peça que falta em seu repertorio, a Quinta Sinfonia de Mahler --que ganhou nova vida no streaming depois da estreia do longa. Na cidade, ela mora com a esposa, interpretada por Nina Hoss, também parte da orquestra, e a filha adotiva, vivida por Mila Bogojevic, num apartamento luxuoso que poderia ser capa de uma revista de decoração europeia. Suas manhãs se dividem entre planejamentos importantes e cafés com mestres da música clássica.
A sua vida perfeita e a carreira invejável conquistada a duras penas e estudos, segundo a própria personagem, começa a ruir com a notícia do suicídio de uma antiga instrumentista da filarmônica. A garota deixou provas das suas relações sexuais com Tár, que, após o término do caso, teria colocado a amante numa lista negra que a impossibilitava de assumir qualquer emprego em filarmônicas de prestígio.
O que parecia um estudo bem-feito de personagem vira uma sinfonia complexa de gêneros que vai do horror clássico sobrenatural kubrickiano ao drama psicológico, discutindo relações de poder, ego, privilégio de elites (intelectuais ou não) e a carta branca que alguns recebem por serem considerados "gênios".
"O que amo neste roteiro é a importância de analisar as estruturas de poder, mas também a cumplicidade das pessoas que facilitam o funcionamento desta estrutura e se beneficiam dela", explica Cate Blanchett, que entrevistou diversas maestrinas para o papel. "Poderia ser uma arquiteta ou gerente de banco, mas é na grande narrativa da música clássica em que o filme faz seus questionamentos sobre estruturas de poder no mundo moderno, mas não os responde."
O fato de o filme mostrar uma maestrina lésbica abusando da sua posição de poder para obter ou facilitar relações sexuais gerou críticas de Marin Alsop, uma das raras condutoras num campo dominado por homens. "Tantos aspectos superficiais de 'Tár' parecem se alinhar com minha vida pessoal. Assim que assisti ao filme, não fiquei preocupada, mas ofendida como mulher, condutora e lésbica", declarou a líder da Sinfônica de Chicago ao jornal britânico "The Sunday Times". "Há tantos homens com casos documentados que poderiam servir de base para o filme. Em vez disso, colocaram uma mulher no papel com os atributos destes homens."
Alsop não cita nominalmente os acusados. No entanto, há casos recentes na música clássica envolvendo abusos de poder e ataques sexuais. James Levine, pianista e condutor ligado à Metropolitan Opera de Nova York, morto em 2021, foi acusado de abusar de nove alunos, em 2018. No mesmo ano, Charles Dutoit, diretor artístico e principal maestro da Orquestra Filarmônica Real, em Londres, renunciou ao cargo após denúncias de agressão sexual.
Todd Field não se mostra alheio às críticas por sua escolha ousada. "É uma operação que existe há muito tempo na música clássica, que é basicamente masculina", diz o cineasta. "Ao fazer um filme que tenta questionar estruturas de poder me parece importante a capacidade de abstração, porque te possibilita olhar para o sistema de uma maneira diferente, como se fosse quase um conto de fadas. Afinal, com exceção de grandes condutoras como Marin Alsop ou Nathalie Stutzmann, há poucas oportunidades para mulheres nesta área."
Quando questionada pelo escritor Jonathan Franzen, que conduz a conversa no Museu da Academia, se a inversão de gêneros no topo da pirâmide de poder mudaria alguma coisa, a atriz Cate Blanchett é direta. "Posso ter vivido embaixo de uma pedra, mas ainda não experimentei um sistema matriarcal", responde Blanchett, que aprendeu a conduzir e tocar piano clássico com uma pianista húngara para o papel. "Para saber como funcionaria esse sistema [matriarcal], ele precisaria existir. Esse filme é um exame do poder e da corrupção do poder. Haveria menos nuances se fosse sobre um homem."
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