RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Lá se vão 35 anos de carreira e mais de 30 produções na televisão e Elisa Lucinda, 64, ainda se vê desafiada a cada início de trajetória de uma nova personagem. Em 'Vai na Fé', ela vive Marlene, a matriarca de uma família evangélica da qual a protagonista Sol [Sheron Menezzes] faz parte. A candomblecista não só tem aprendido louvores mas, principalmente, chamando a atenção para o respeito e a tolerância religiosas.
Em conversa com a Folha de S.Paulo, Elisa também fala sobre o protagonismo negro pela segunda vez consecutiva no horário das 19h na Globo e lembra que por muitos anos tentou, em vão, ser escalada para o papel de uma 'mocinha' nas novelas: "Não por falta de talento ou por 'boniteza'. O problema foi mesmo racial."
Ela também falou sobre sua relação com Regina Duarte, de quem foi muito amiga. Por causa de divergências políticas, não se falam mais e chegaram a bater boca nas redes sociais. Elisa diz não aceitar que a ex-companheira de trabalho defenda o bolsonarismo. "Foi uma decepção e uma grande dor vê-la a favor de um cara que dissolveu o Ministério da Cultura, que odeia gays, que acha que artista é bandido. Realmente, ela entrou em um caminho muito doido. Não sei nem te dizer."
PERGUNTA - Sua personagem em 'Vai na Fé' é evangélica, e você é candomblecista. Há alguma dificuldade maior neste papel?
ELISA LUCINDA - Estou amando a Marlene, que não é uma evangélica radical. O amor dela está no Evangelho, está na família e no próximo. Ela pode até achar que o trabalho da Sol, dançando funk, não seja uma coisa de Deus, mas ela vai apoiar a filha. O amor passa por cima do moralismo e do preconceito. Interpretar essa personagem é um exercício de respeito e tolerância às outras fés.
P. - Você se inspirou em alguém?
EL - Me inspirei em algumas pessoas que conheço, uma delas é a Ilca, mulher de um pastor, e também na mãe da minha assistente. Eles são modernos, petistas e evangélicos. São pessoas muito amorosas e acolhedores. Eu quis também fugir da evangélica caricata e aí, neste caso, me inspirei nas minhas tias. Eram pobres, muito bem vestidas e atentas à sua aparência e com muita dignidade.
P. - O que a Marlene trouxe para você?
EL - Estou aprendendo louvores com amor. Marlene é uma personagem interessantíssima e passa uma mensagem de tolerância religiosa. Espero que o Brasil aprenda não só com a Marlene, mas com todo aquele núcleo, a não tratar pessoas de religiões de matrizes africanas com tanto desprezo. Geralmente, o audiovisual é cruel nos estereótipos com os umbandistas e candomblecistas porque mostram os pais e as mães de santo de forma caricata e isso é desrespeitoso.
Vai na Fé' é a segunda novela seguida das 19h cuja protagonista é negra. O núcleo tem uma trama forte... (interrompendo)
P. - Sim... É um avanço. Demorou?
EL - Demorou, mas avançamos. Tivemos grandes atores negros que passaram a vida na teledramaturgia servindo café, abrindo portas e dizendo 'sim, senhor' ou 'pois não, senhora'. Tiveram artistas que morreram sem ter um papel que eu tenho hoje na minha idade. É duro. Mas temos um avanço precioso que precisa ser comemorado. Quando eu comecei a trabalhar na TV, nova, eu não pude ser mocinha. Não por falta de talento ou por 'boniteza'. O problema foi mesmo racial.
P. - Te incomoda falar da Regina Duarte? Vocês estão brigadas por conta das questões políticas?
EL - Nós éramos muito amigas. Frequentei muito a casa dela em São Paulo e todas as vezes que podíamos nós nos encontrávamos. Uma parte minha a ama e outra parte está em luto. Foi uma grande professora de televisão e uma parceira incrível. Foi uma decepção, uma grande dor vê-la a favor de um cara que dissolveu o Minc (Ministério da Cultura), que odeia gays, que acha que artista é bandido. Realmente, ela entrou em um caminho muito doido. Não sei nem te dizer.
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