SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Como representar a xenofobia e o racismo? Em "Infiel", HQ que sai pela editora Pipoca & Nanquim no final de janeiro, esses preconceitos encaram corpos flácidos e disformes com garras, dentes e palavras que dilaceram. O odor é de carne estragada que, já acinzentada, atrai todo tipo de insetos e larvas.

Pornsak Pichetshote e Aaron Campbell, dois nomes de relevo do quadrinho americano, se juntaram para reimaginar o terror de casa assombrada em uma versão contemporânea do gênero clássico.

A HQ conta a história de Aisha, uma jovem americana muçulmana de origem paquistanesa que, após o prédio em que sua sogra, que é branca, sofrer um ataque terrorista, se muda para lá com seu marido e sua filha. Com o tempo, Aisha e seu grupo de amigos de diferentes etnias descobrem que o edifício está assombrado por entidades que se alimentam de xenofobia -abundante por lá.

O quadrinho não é a única obra que revisita o gênero. "A Maldição da Residência Hill", série de Mike Flanagan inspirada em um livro de Shirley Jackson de 1959, é um exemplo de história de casa assombrada que ganhou bastante popularidade nos últimos anos. O diferencial de "Infiel", além da arte aterrorizante de Campbell, está em discutir um tema urgente, sobretudo nos Estados Unidos.

"Para mim, foi uma maneira de usar o terror e os quadrinhos para participar dessa conversa sobre raça que eu sentia que, em 2018, não estava ocorrendo de verdade", diz Pichetshote, que começou sua carreira como editor da Vertigo, selo de gibis adultos, e hoje escreve para a TV e para as HQs, além de fazer parte da produção de filmes da DC.

Aaron Campbell se juntou depois ao projeto e deu forma às ideias de Pichetshote. O ilustrador abusa do preto em páginas inteiras para detalhar os monstros, num traço que fica entre o absurdo e o realista, à moda do japonês Junji Ito. A paleta do colorista José Villarrubia refina o grotesco ao adicionar camadas vermelhas de podridão.

"Muitas vezes para mim parte de pegar duas coisas que colidem e geram alguma fricção que me faz pensar 'ei, aqui tem uma história que não foi contada antes'", disse Pichetshote sobre como funciona seu processo criativo. "Algo que acho interessante é abordar coisas que não estamos discutindo."

E, ao buscar trazer novos assuntos para a pauta, o escritor conta que busca garantir que os trará da forma mais informativa, responsável e empática possível. Para isso, Pichetshote gosta de mergulhar na pesquisa antes de escrever suas histórias em quadrinho.

A opção pela temática de "Infiel" remete à vida do autor, que é filho de imigrantes. Os pais do quadrinista foram da Tailândia para os Estados Unidos antes de ele nascer, em busca de melhores oportunidades.

Quando o autor tinha 12 anos, no entanto, eles voltaram para a Tailândia, convencidos de que, a partir dos acessos que tiveram nos EUA, poderiam ter uma vida melhor lá do que novo país -o que se mostrou verdade. "Eu fui criado sob a falha do sonho americano. Experimentei em primeira mão como ele não funciona para todo mundo", disse.

Pornsak conta que a ideia para o quadrinho surgiu ainda em 2009, quando Obama foi eleito pela primeira vez. Ele via o país se parabenizando por ter lidado com o racismo e, ao mesmo tempo, a islamofobia crescente, sem que ninguém enxergasse a incoerência entre as duas coisas.

Ao longo da década seguinte -que caminhava para a primeira eleição de Donald Trump em 2017, um ano antes da publicação original do quadrinho-, o escritor observou avanços no debate sobre racismo e quis fazer parte da discussão com a obra.

Pichetshote vê os quadrinhos como uma forma de começar discussões e acredita que o terror tem uma capacidade especial para isso. "É preciso tomar cuidado para que não vire algo exploratório, mas o próprio objetivo do terror é incomodar", explica. "Podemos falar sobre questões sociais que não nos deixam confortáveis no terror, se for feito corretamente, porque o gênero nos dá permissão para perturbar".


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