SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Skinamarink" significa nada. A palavra é título de uma velha cantiga da língua inglesa inventada na Broadway no início do século passado, usada para incentivar abraços entre pais e filhos. A popularidade é tamanha que, em 2003, Xuxa marcou gerações ao gravar uma versão nacional, batizada de "Skinimarinki".

O termo ganhou conotação sombria nos últimos meses, em especial entre os mais novos. Isso porque "Skinamarink", filme de terror canadense de baixíssimo orçamento que chega esta semana aos cinemas brasileiros, se tornou sensação nas redes sociais. Os jovens, antes acalentados pela música, aprenderam a temer a palavra.

É uma inversão de sonho a pesadelo bem literal. Ambientado no início dos anos 1990, o filme acompanha duas crianças que certa noite se veem sozinhas em casa, aterrorizadas por uma estranha criatura que jamais mostra o rosto. Portas e janelas desaparecem, brinquedos vão parar na parede e o lugar, antes um lar, é mergulhado em trevas.

Mas o público nunca é apresentado a qualquer um dos personagens. As crianças são vistas sempre aos pedaços ?seja de costas, pelos pés ou atrás de móveis. O monstro só é ouvido, em sussurros abafados pelo som degradado, como se fosse uma fita do século impregnada de bolor. A estética granulada acompanha todos os aspectos técnicos do longa, e o deixa com cara de proibido, como se estivesse abandonado em um sótão por 30 anos.

Resta ao público, imerso em escuridão, mirar um sem fim de corredores e paredes, que levam qualquer um ao desespero. É como se o jovem diretor, de apenas 31 anos, tivesse filmado os piores medos da infância, seus e do público.

Há quem diga que o projeto é o começo de um subgênero: o "liminal horror", um tipo de terror etéreo, como sonho lúcido amaldiçoado. Ao empilharem diferentes distorções de imagem e som, esses filmes constroem um não-lugar, que causa estranheza e desconforto. Sem um assassino, um mar de sangue ou espíritos amaldiçoados, a imersão sugestiva é o que dita o tom.

A experiência atraiu muitos fãs. Basta procurar o nome "Skinamarink" no TikTok para ouvir gente apresentando o filme como o terror mais assustador da história. São mais de 60 milhões de visualizações acumuladas entre os vídeos com as duas hashtags mais populares sobre o filme na plataforma.

Para Fernanda Vicentini, professora de conteúdo e social media da ESPM, o caminho da produção nas redes sociais foi tão importante para o sucesso de "Skinamarink" quanto o formato, que foge do esperado para um filme do gênero. Isso atrai a atenção do público do TikTok, por sua vez.

"É um componente grande de identificação. Pesadelos de infância envolvem abandono, são questões universais que o diretor soube abordar."

Nem Kyle Edward Ball, o diretor do filme, sabe explicar o alcance de seu primeiro longa nas redes sociais. À reportagem, ele afirma ter recebido elogios de todo tipo de público, incluindo aquele com mais de 60 anos. Mas as reações mais apaixonadas vieram das novas gerações, diz ele.

O sucesso pegou o cineasta desprevenido até em questão de timing. "Skinamarink" vazou na internet no fim de outubro, durante a exibição em um festival de cinema espanhol e meses antes da data de lançamento pensada pelos distribuidores.

O que era para ser um pesadelo na carreira de um diretor tão novo se revelou o contrário. A viralização ajudou na divulgação. Em vez de só estrear no streaming, o longa conseguiu estrear nos cinemas americanos no começo do ano. Da noite para o dia, um filme de flerte com o cinema experimental, orçado em US$ 15 mil, cerca de R$ 78,5 mil, por meio de uma vaquinha online, arrecadou US$ 2,1 milhões, R$ 11,01 milhões.

"Não sei se teríamos uma resposta desta magnitude se o filme não tivesse vazado no Halloween e se os jovens não tivessem se apaixonado por ele", diz Ball sobre esses resultados. "O sonho aconteceu, o que é insano."

O impacto online do longa é adequado às suas origens. Foi na rede social Reddit que Ball chamou a atenção do público pela primeira vez com o Bitesized Nightmares, canal de YouTube em que produzia vídeos curtos baseados nos pesadelos contados por usuários.

O canal nunca foi um sucesso, mas ajudou o diretor a identificar um padrão entre os pesadelos relatados, justo a premissa de "Skinamarink": estar preso em casa, com os pais desaparecidos e vulnerável a uma ameaça à espreita.

O longa não para nas interações com a internet. Diagnosticado esquizofrênico, Ball diz ter interesse de anos por sonhos e pesadelos. É um assunto que todos pensam a todo momento de maneira inconsciente, diz, e a falta de controle envolvida o fascina.

A ideia de "Skinamarink" surgiu dessa obsessão, mas só foi para o papel na pandemia, durante a segunda onda de contaminações da Covid-19. O período de dificuldades e o reforço do isolamento levaram Ball a se fechar para o mundo, e escrever o filme o ajudou a sair do aperto emocional.

O diretor ainda analisa o que colocou na produção. "Fico pensando se não há algo no fato de eu ter esquizofrenia que se relacione com o monstro ser uma voz que vive mandando os personagens fazerem coisas, por exemplo."

O filme é guiado pelas pequenas decisões criativas. Com o som, por exemplo, Ball mexeu com frequência na ferramenta de distorção do áudio para fabricar os ruídos que permeiam a história. Ele se preocupou em reduzir aos poucos o volume, e há uma sequência inteira em que não há som. Segundo o diretor, é algo que aumenta a agonia.

O mais curioso é que "Skinamarink", tão analógico na forma, é um filme digital por imposição. O diretor afirma que apenas a tecnologia mais recente permitiu filmagens no escuro do jeito que a produção almejava, e diz que a estética granulada, associada aos filmes em película, foi inserida na pós-produção.

"Nós não seríamos capazes de filmar em película do jeito que queríamos, mesmo se usássemos as câmeras mais recentes da Kodak. É um filme que evoca os anos 1970, mas que nunca seria feito naquela década."

O longa também tem óbvias discrepâncias de época, mas que fazem parte do charme. Junto da estética setentista, a história se passa em 1995, quando Ball tinha a mesma idade dos protagonistas. Mas as crianças da história assistem a desenhos animados dos anos 1950, uma decisão que evita problemas com direitos autorais e alimenta o clima onírico.

Essas combinações ilustram a salada de referências de "Skinamarink". Ball cita clássicos do horror como inspirações estéticas, incluindo "O Exorcista", de 1973, e o slasher "Noite do Terror", de 1974. Mas também diz que ficções científicas como "2001: uma Odisseia no Espaço", de 1968, e "Solaris", de 1972, foram essenciais para a narrativa lenta. Por fim, há Michael Snow, nome influente do cinema experimental, que é entendido como pilar da abordagem.

Este último é decisivo na atmosfera do filme, segundo Pedro Tavares. Curador do Ecrã, festival de cinema experimental, ele diz que "Skinamarink" dialoga com o trabalho de Snow e com o cinema estrutural, vanguarda dos anos 1960 que aniquila as narrativas clássicas para fazer reinar a forma sobre o conteúdo.

Para o diretor do filme, há uma intersecção natural entre o horror e o experimental. Enquanto outros gêneros, como o drama e a ficção-científica, mantêm estruturas e mudam apenas , o horror passa por mudanças mais aceleradas.

"O terror é o meio mais dinâmico de todos, pois precisa sempre se reinventar. É o gênero mais experimental."

Não à toa, o cineasta vê um novo momento na produção atual do gênero, em que o horror é instigado a aderir a narrativas menos formulaicas. Seu próximo filme, porém, deve seguir caminhos diferentes.

Ele pretende seguir no cinema experimental e, mais importante, com produções de baixo orçamento, mas sem continuar a história que o alçou à fama. "Eu não posso fazer ?Skinamarink? de novo. Se eu fizer, vai parecer velho no momento que sair."


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