FOLHAPRESS - "O Manto da Noite", de Carola Saavedra, tem uma arquitetura ambiciosa. Dividido em seis partes, mobiliza diferentes gêneros e configurações temporais distintas, procurando uma combinação complexa de pontos de vista em torno de experiências que ecoam aspectos históricos do continente sul-americano.

Buscar sentido na soma de suas partes, isto é, encontrar a possibilidade de uma compreensão totalizante do livro, é tarefa para um leitor capaz de elaborar hipóteses de interpretação com base no reconhecimento das referências. Não é o caso desta resenhista, que pretende apenas descrever elementos e características possivelmente relevantes para uma leitura mais qualificada.

A primeira e a última parte formam uma moldura para as demais, destacando-se graficamente em itálico. Nelas, uma voz feminina se dirige a uma interlocutora também feminina, atendendo a um apelo ("Você quer que eu fale" é a frase que inaugura o livro).

Em "Pré-escrito" se apresentam alguns aspectos centrais ao conjunto -em especial, a ideia de que há uma ilha a se buscar- e se anuncia uma relação que é de maternidade e também de rompimento com o tempo histórico ("eu te carregava em meu ventre, durante meses, anos"). Já "Pós-escrito" soma a metamorfose aos processos de gestação e morte, propondo ao mesmo tempo uma circularidade para a obra e uma concepção cíclica do tempo baseada no corpo feminino.

A segunda parte, "Primeiros anos", é uma narrativa convencional, feita de verbos no presente, em torno de uma menina de três anos que chega ao Rio de Janeiro para encontrar os pais. Criada pela avó e falante apenas de espanhol, ela não tem memória da convivência e, por isso, desconfia não ser filha do casal.

O registro se modifica a seguir, em "Cordilheira". A cadeia montanhosa antes vista do avião se torna agora personagem, dialogando com uma figura feminina que fala em primeira pessoa. A personificação é apenas uma manifestação da convivência entre os seres: no nível da frase, a separação sintática é muitas vezes atenuada, de modo que as falas de diferentes personagens ocupam um mesmo período: "Vejo que voltou ao corpo anterior, sim, ainda não me acostumei".

Uma proliferação de mortos intensifica o conflito entre história e natureza que o leitor já havia intuído nessa altura do livro. Por meio da protagonista feminina, entre os mortos (não) chorados coletivamente destacam-se os mortos associados ao sofrimento pessoal -aqui parecem retornar a menina e seus supostos pais, num reencontro que elabora e perdoa a convivência difícil.

A narração é marcada como cadeias de associações aparentemente livres e condensações, levando o leitor a supor que está diante de um sonho. As referências reconhecíveis ganham ares de material diurno aproveitado na elaboração onírica. Tudo leva a crer que é a menina da parte anterior que, crescida, sonha.

Os limites seguem se embaralhando a seguir, em "Diário carioca", com registros inicialmente cotidianos e convencionais, por vezes até enfadonhos, de uma escritora que vê frustrado seu desejo de publicação. Ela afirma estar escrevendo um novo livro -aliás, gravando um novo livro, pois um problema nos braços a impede de escrever os próprios textos.

É de se supor, então, que ela mesma não possa estar escrevendo seu diário, o que exige do leitor a criação de mais uma hipótese para a compreensão da estrutura do livro -necessidade reforçada pelo relato dos eventos do dia 19 de novembro, a última entrada, que convém não revelar para evitar o spoiler.

O problema da narração é parcialmente suspenso em "Caliban à deriva", um capítulo dramático. Aqui a referência fundamental se esclarece: pondo em cena personagens em busca de uma ilha, a seção retoma "A Tempestade" de Shakespeare e, com a memória de debates desenvolvidos por Montaigne, recria a problemática entre humanismo e colonialismo representada pelos personagens da peça.

Mas, a partir de sucessivos encontros vividos pelo Caliban de Saavedra -com Sycorax, sua mãe, Ariel e Dioniso-, a ilha é deslocada em sua função de signo: passa a se associar ao prazer humano, que inscreve no corpo a falta. "Tudo já aconteceu. O mundo acabou e recomeçou mil vezes", afirma a narração, que retorna na conclusão do texto dramático.

Essa é apenas uma das manifestações da circularidade, que no repertório do romance se soma ao passado histórico, ao futuro distópico e à fantasia fora do tempo. Já o presente, cristalizado desde o início na figura do natimorto, parece estar reservado à elaboração do luto.

Em uma passagem capaz de sintetizar a tentativa de costurar tempos e traumas individuais e coletivos, uma das personagens afirma: "Fizemos o que foi possível com o que o passado nos deu. Esse fluxo de palavras e silêncios, passagem de uma cadeia que se formou muito antes de nós". Que se possa interpretá-la como realização literária, para além de seu desejo de construção.

**O MANTO DA NOITE**

Avaliação Regular

Preço R$ 64,90 (160 págs.); R$ 37,90 (ebook)

Autor Carola Saavedra

Editora Companhia das Letras


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