(FOLHAPRESS) - Nunca faltou sinceridade a Helvécio Ratton. Um pouco de malícia, talvez. Professar sempre um claro catolicismo progressista levou seu cinema um tanto conservador a se escudar com frequência em boas causas.
Para não ir longe, sua defesa -honesta- dos religiosos acusados de dedurar Marighella à polícia, esbarrava em cenas de tortura inteiramente despropositadas, tanto pelo que mostravam -óbvio e hiperbólico- como pela ineficácia.
Mas isso parece ter despertado Ratton para outro lado das coisas: ao cineasta não basta a boa-fé. É preciso por a sua pele em jogo. Eis o que ele faz desta vez, enfrentar os próprios fantasmas e invadir francamente o domínio do terror. A própria trama o demonstra.
De cara, temos um desanimado Manfredo, vivido por Eduardo Moreira, enfrentando as várias questões de sua vida: a ambição profissional -solapada pelo próprio desânimo, diga-se-, a concorrência do colega oportunista por uma promoção, o incômodo caso amoroso com a mulher do patrão, o próprio patrão, sadicamente vago em suas intenções.
Mas o pior é o desânimo, que o leva a um psiquiatra, o doutor Pink. E este, para começar, diz que Manfredo precisa lembrar da primeira coisa que lhe ocorre quando pensa na infância. E a lembrança está lá: um corredor vazio, com um crucifixo ao fundo.
A câmera avança até mostrar uma bela mulher seminua diante do espelho. A mãe, naturalmente. Assustado, Manfredo tenta se livrar de Pink.
É aí, no entanto, que começa sua jornada de pavor, pois Pink não se mostra nada disposto a largar o pé do no cliente. A situação logicamente presta seu tributo a Kafka, mas também a Edgar Allan Poe -para não falar de Freud, já que no teto do consultório de Pink o que Manfredo vê é a imagem estilizada de uma vagina: a matriz.
E para não falar, claro, de Murilo Rubião, elegante mestre do conto fantástico, em quem o roteiro se inspira.
Essa jornada tétrica se fará acompanhar de terrores mais imediatos: pessoas que invadem a vida de Manfredo sem serem chamadas -inclusive um inquietante adolescente-, um farmacêutico com suas injeções, pesadelos que parecem invadir a realidade -um inconsciente tributo a Wes Craven e seu Freddy Kruger, talvez?-, feridas que marcam seu corpo assim como seu espírito.
Essa espiral de dores serve para nos lembrar de o quanto a fé -católica, em princípio- pode ser um desconforto na vida das pessoas, bem mais do que um conforto. Mas, sobretudo, serve a Ratton para mergulhar no mundo de terrores em que se opõem essas duas imagens, a cruz e a vagina, a salvação e o pecado,
Se é quase impossível não notar a feliz escolha de atores e tipos do elenco -bem dirigidos, no mais-, é um pouco surpreendente, embora não incômodo, que a luz tenha mantido um tom linearmente realista, quando vários momentos do filme parecem sugerir uma fotografia mais próxima do expressionismo, e que um sugestivo quadro colocado dentro do quarto de Manfredo -nada menos do que dentro do quadro- tenha ficado sempre tão em segundo plano.
A ousadia de Ratton não está, em todo caso, no estilo; antes na maneira incisiva como nos conduz a um mundo de terror tão terrivelmente próximo de nós. Ou será melhor dizer: tão dentro de nós, como o lodo que atormenta Manfredo.
O LODO
Quando Estreia nesta quinta (13) nos cinemas
Avaliação Muito bom
Classificação 14 anos
Elenco Eduardo Moreira, Renato Parara, Inês Peixoto
Produção Brasil, 2020
Direção Helvécio Ratton
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